Viagem à praia deserta
(mais um capítulo da série "eu e Deus")
Há um texto que diz que “entre as lições da vida natural, o
isolamento voluntário de alguns animais ensina coisas ao homem. Longe dos
períodos de acasalamento e de caça em grupo, eles procuram a solidão para
refazer sua energia, num encontro com a vida que se expressa como um ritual
sagrado (...)” (Luiz Carlos Lisboa).
Foi mais ou menos com esse espírito que acionei o botão de
partida da GS naquela manhã de terça-feira, 14 de outubro. O ronco grave e
convincente do bicilíndrico boxer preencheu o ar como uma explosão de força, quase
como uma trilha sonora a embalar o impulso de cair na estrada.
O destino era a Praia do Cassino, no Rio Grande do Sul,
conhecida como “a maior praia do mundo”, onde pretendia fazer um trekking e desligar
um pouco do ambiente urbano de todo dia.
"Descendo" pela BR 101, sob um céu cinzento e sendo espreitado
por radarzinhos de velocidade que se espalharam como praga por essas nossas
belas rodovias, não consegui escapar à indefectível “síndrome do primeiro dia” –
uma mistura de sentimentos e sensações que iam da ansiedade pelo que estava por
vir às questões práticas da viagem, passando por certo pesar por estar deixando
meus grandes amores em casa.
Sempre acho que há nesses sentimentos ambíguos das partidas
mais apego à nossa querida “zona de conforto” do que propriamente dúvidas com
relação à brincadeira de dar um passeio, mas ainda assim é sempre um momento
delicado.
Lá pelo final da tarde, 650 km depois, estacionei meu
cavalinho mecânico num pequeno hotel na cidade gaúcha de Osório, e permiti-me um
merecido descanso.
No dia seguinte a estrada abandonou o aspecto formal e o
intenso movimento da BR 101 do dia anterior, transformando-se em uma via de mão
única, atravessando os pampas gaúchos em torno do Parque Nacional da Lagoa do
Peixe, num filete de terra entre o mar e a gigantesca Lagoa dos Patos. O dia
estava bonito, contrariando os maus prognósticos vigentes, e os cerca de 300 km
até a cidadezinha de São José do Norte passaram rápido. Lá peguei uma balsa que
em 40 minutos fez a travessia para o porto da cidade de Rio Grande.
Mais vinte e poucos quilômetros e estava no Balneário do
Cassino, que, apesar do nome sugestivo, não tinha nada de extraordinário ou
paradisíaco. Achei sem dificuldade uma Colônia de Férias do Exército que existe
por lá, onde já havia feito uma reserva.
Ao descer da moto fui prontamente recebido pelo Tenente
Noecir (responsável pelo espaço), que me convidou pra tomar um café e bater um
papo, sem pressa e sem compromisso. Esse é um dos grandes valores do nosso bom
e velho Exército: a capacidade de fazer com que pessoas até então desconhecidas
se identifiquem rapidamente numa sincera camaradagem.
Instalei-me na casinha, arrumei minhas coisas e fiquei pronto
pra partir para o trekking na manhã seguinte. Mas ao acordar no outro dia o tempo estava
virado num clima de tempestade – chuva intensa e decidida, frio e vento de
arrancar telhas pelo céu afora. Aproveitei então pra exercitar minha paciência
e resignação e deixar o mundo rodar um pouco.
A intenção “oficial” era fazer a travessia desde o Balneário
Cassino, onde estava, até o farol do Chuí, que marca o extremo sul do Brasil,
distante cerca de 220 km. Todo o percurso é passível de ser feito pela praia
(inclusive por veículos motorizados), no entanto, entre um ponto e outro não há
nada de civilização ou ponto de apoio. Apenas o mar a leste, dunas de areia a
oeste e um céu enorme por cima de tudo. Ou seja, pra se lançar nessa
brincadeira é preciso estar com toda a logística de alimentação, barraca, saco
de dormir e apetrechos afins em dia e em ordem.
Na prática, pensei em fazer um “teste drive” e ver como a coisa
iria fluir. Passada a tempestade, o dia seguinte amanheceu nublado e com aquela
cara pouco convidativa, mas resolvi partir. Coloquei minha mochila e saí andando.
Os primeiros quilômetros renderam bem, mas logo relembrei como
é duro caminhar com uma mochila com toda a carga (não pesei, mas estimo que
estivesse com uns 18 kg) . Pouco depois de sair da zona urbana já não havia
mais sinal de civilização. Tudo se resumia a uma imensidão sem fim por todos os
lados, com um horizonte a perder de vista à frente.
Caminhei o dia todo num estado talvez meio “hipnótico”, mas
não totalmente alheio, pois um GPS de pulso marcava a lenta passagem dos
quilômetros, em contraposição ao rápido avançar do tempo.
Mais ou menos como havia imaginado, caminhar num cenário
desse funciona como um “exercício de mudança de perspectiva”. Perspectiva
mental e emocional, porque a geográfica não muda quase nada. Há um súbito e
intenso desligamento das referências habituais e os pensamentos ficam meio à
deriva, ocasionalmente atordoados apenas pelo desgaste físico e pelas
preocupações inerentes ao contexto.
Há que se destacar ainda o belíssimo ambiente sonoro. O som
incessante das ondas ao lado, envolvido pelas eventuais rajadas de vento e pelo
canto das gaivotas, e nada mais, cria um clima que beira ao sagrado, e que
induz à introspecção e à reverência.
Às cinco e meia da tarde meus dados de satélite informavam
que havia percorrido quarenta quilômetros. Então por que não andar mais um
pouquinho, até as seis? Ao final desses outros trinta minutos me dei conta que
estava exausto... Saí da faixa de areia, montei minha barraquinha e curti o
resto de luz do dia apreciando a sensação única de isolamento e silêncio ao
redor.
Recolhendo-me à barraca, descansei um pouco, preparei o
jantar (um muito bom estrogonofe de frango liofilizado com pão, com frutas
secas como sobremesa) e antes de me entregar ao sono profundo ainda dei uma
saída e, desligando a lanterna de cabeça pude contemplar a mais completa e
envolvente escuridão ao redor. Nem uma luz, nada, em todas as direções. Apenas
aquele sussurro místico do mar ali próximo a fazer companhia.
Ainda sem saber se no dia seguinte prosseguiria ou retornaria,
adormeci com aquela impagável sensação de cansaço extremo e um ar de leveza na
alma.
Na manhã seguinte, cumpridas as tarefas de tomar café,
desmontar o acampamento e arrumar tudo, caminhei os trinta metros de volta à
praia e me vi no momento de precisar tomar uma decisão. Se virasse para o sul
teria mais 180 km de areia pra caminhar. Se virasse para o norte estaria
voltando pra casa. Lembrei-me de um ditado que diz que devemos medir a
profundidade de um riacho colocando apenas um dos pés na água. Naquele momento
estava com um pé na água... Continuar seria colocar os dois pés. Dentre as
inúmeras variáveis em jogo naquela decisão, acabei sendo “convencido” pelo
sentimento de que é preciso sempre ter pelo menos uma ponta de prazer nessas
empreitadas, e naquele momento a coisa toda estava centrada muito mais no
desafio e no cumprimento de uma meta do que na gratificação de estar fazendo.
No fundo, no fundo, tenho pra mim que não tem sentido nenhum fazer
essas coisas. Tanto como não tem estar em casa no nosso cotidiano ou qualquer
outra coisa. A única diferença é que estamos mais acostumados com umas coisas
do que com outras. E embora reconheça que sempre há nessas empreitadas um que
de desafio, e por consequência uma certa “necessidade” de realiza-las, também
vejo que é preciso manter a graça, talvez ainda mais do que o espírito de
aventura.
E então resolvi me voltar para o norte, e retornar.
No caminho tive a oportunidade de conhecer um casal de
viajantes do Espírito Santo, o Marcos e a Neuza, que, vindo do Chuí numa
caminhonete, pela praia em que vinha caminhando, pararam do meu lado e puxaram
conversa. Inspirador exemplo... Os dois haviam transformado a pick-up numa
máquina de viajar. Contaram-me que o carro funcionava “quase como um
motorhome... na verdade, é um ‘mato home’” – disse-me o Marcos, entre risadas.
Encontrei-os ainda mais à frente, quando estavam parados para o almoço.
Convidaram-me para comer com eles e tivemos mais uma boa sessão de conversas.
Com tantas paradas e com o ritmo mais lento do que no dia
anterior, acabou faltando dia para a distância que tinha que percorrer, e ao
cair da noite, embora já estivesse nos arredores do Balneário Cassino, ainda
faltavam uns longos três ou quatro quilômetros.
Cheguei de volta à Colônia de Férias onde estava hospedado já
era quase sete e meia da noite, pouco antes de uma chuva daquelas que nos fazem
agradecer por estar num lugar abrigado.
Pra voltar pra casa foram mais dois dias de estrada com a GS,
cumpridos, devo dizer, com todo o prazer.
Apesar de não ter feito todo o percurso do Cassino ao Chuí, o
que seria certamente uma caminhada épica, só restaram boas lembranças e,
sobretudo, grandes ensinamentos. Afora as questões mais práticas, como a
necessidade imperiosa de treinamento específico, um planejamento mais
criterioso e bem feito de peso a se carregar e uma previsão de tempo necessário
para a travessia mais realista e sensata, acho que o que realmente nos
surpreende e “assusta” é o vazio da imensidão daquele ambiente, associado ao
fato de estar só e sem possibilidade de comunicação. É incrível como, sem
perceber, ficamos dependentes da nossa “sensação de segurança”, do nosso
celular sempre à mão, das pessoas à nossa volta.
A Praia do Cassino ainda é um raro espaço em que se pode
estar em contato com esse “nada” de uma forma extremamente simples e direta.
Basta sair caminhando. Não precisa pagar nada a ninguém, não precisa pedir
permissão, não precisa de guia, não precisa agendar nem entrar em fila de espera.
Em compensação... não tem apoio nenhum. Mas essa é a brincadeira.
Fica aqui o convite para um retorno, numa próxima ocasião.
Com amigos é sempre mais interessante... Talvez um retorno num outro formato,
de bicicleta, que tem a fantástica capacidade de manter a sensação de desafio,
de estar em contato direto com o ambiente e de ser mais lúdico (e um pouco mais
rápido) do que caminhar.
Gratidão por tudo.
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