Tiger 900 Rally Pro

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domingo, 21 de fevereiro de 2016

"El Cruce 2016" - Corrida de montanha de 100 km em 3 dias, Argentina e Chile - 12 a 14 Fev 2016







Ao som de dois violinos numa encosta distante

El Cruce 2016 – Corrida de montanha de 100 km em três dias,
 por trilhas nas montanhas da Cordilheira dos Andes

(mais um capítulo da série "ou vai ou racha")


Há muito, muito tempo, numa galáxia muito distante, ouvi falar de uma corrida épica que cruzava os Andes da Argentina para o Chile através de trilhas nas montanhas. Na sexta-feira, dia 12 de fevereiro de 2016, por volta das oito da manhã, descia de uma Van no meio de uma região montanhosa próximo de San Martin de Los Andes, simpática cidade argentina situada na aprazível região dos lagos, pra dar início à tal empreitada.




O “El Cruce” está na sua 15ª edição e se consolidou, nesse tempo, como uma corrida de montanha muito difícil e muito bonita, que nos propõe a percorrer aproximadamente 100 km em três etapas, predominantemente através de single tracks através das montanhas, unindo Argentina e Chile no percurso. A organização da prova provê toda a logística de acampamento e alimentação entre essas etapas, mas no percurso os corredores devem ser autossuficientes em suas necessidades.




Nesse ano havia cerca de 2700 inscritos, de 33 diferentes países, e a prova foi dividida em três largadas, em dias distintos: na quarta-feira já havia largado a categoria “solo avançado”, na quinta foi a vez das “duplas”, e na sexta dos “solo amadores”, em que me incluía. Nessa última categoria havia cerca de um mil inscritos, e pra não tumultuar a largada e o percurso, as saídas foram feitas em levas de 120 corredores a cada 10 minutos. Nesse primeiro dia fui incluído na sétima leva, acho que por ordem alfabética.

Por volta das sete da manhã havia sido a apresentação para o check-in numa praça à beira do Lago Lácar, em San Martin, ocasião em que foi verificado o material obrigatório que cada corredor deveria levar e em que foram organizados os grupos de partida. Pouco depois fomos embarcando em Vans e sendo transportados numa rápida viagem de 20 minutos até o local da largada propriamente dito, já no alto das montanhas que circundam a pequena cidade.

Sentada ao meu lado no veículo estava uma menina de seus vinte e poucos anos com uma cara quase de choro. Em determinado momento ela puxou conversa:

- Es tu primero Cruce?
- Si.
- Estás nervioso?
- No... Y usted?
- Si. Entrenaste bien?
- Si... Y usted?
- No.
- Oh, no te preocupes. Va a ser tranquilo...

Disse a ela, fazendo uso da clássica mentirinha confortadora (e achando graça da situação).

Quando descemos da Van havia um pórtico de largada alguns metros adiante, com um tapete de cronometragem embaixo, um frio e um vento cortantes, e uns dois ou três staffs indicando o caminho: “Por ali!”. E estava dada a largada!


Pórtico de largada no primeiro dia


Comecei a correr logo, sem muita cerimônia, pra tentar aquecer um pouco. Essa primeira etapa era prevista pra ser de 40 km, com um desnível positivo de 1512m. Pouco depois da largada começaram os acentuados declives e aclives, amenizados por uma paisagem belíssima de montanhas altas ao redor, com vegetação densa e meio seca, e aquele silêncio típico só quebrado pelo tagarelar constante dos corredores que, a despeito da largada fluida, se aglomeravam na estreita trilha. Como larguei nas últimas levas, peguei muito trânsito pela frente.





Como material obrigatório levava na pequena mochila: 2 litros de água, um agasalho tipo “fleece”, uma jaqueta corta-vento, uma manta de emergência (dessas aluminizadas), um “vivisac” (que é uma espécie de saco de dormir impermeável), acessórios para o frio (gorro, luvas, lenço), além das comidinhas para o trecho. Por determinação da organização da prova é proibido levar qualquer produto em sua embalagem original. Tudo tem que ser levado em sacos plásticos tipo “zip”. Os géis de carboidrato tem que ser diluídos em água e levados em pequenas garrafas. Seguindo o meu “plano estratégico de alimentação e hidratação” (montado por mim mesmo), levava quatro sachês de gel diluídos em duas garrafinhas, algumas balas de carboidrato em gel, uma barrinha de fruta desidratada, uma barra de proteína e uns dois saquinhos de castanhas e amêndoas salgadas.


Muita poeira levantada... O que resultou em certa dificuldade pra respirar à noite.


Os primeiros quilômetros transcorreram na alegria e na leveza do maravilhoso estado de descanso em que me encontrava. Depois de dois meses de treinos intensos (e extensos), os últimos dez dias haviam sido de treininhos leves e regenerativos, o que já estava me deixando com saudades de correr com um pouco mais de liberdade.

Em determinada altura alcançamos as margens do imenso e lindo Lago Lácar, e seguimos margeando-o e desfrutando de seu belo visual por muitos quilômetros.




















Por volta do km 35 alcançamos o único posto de abastecimento da etapa – uma barraca com água, Gatorade, uns biscoitinhos, uns salgadinhos, bananas, essas coisas. Percebi que estava ligeiramente cansado, mas, de acordo com os dados do meu GPS, faltavam só 5 km pro final. Mas, ouvindo a conversa do staff da barraca com outros corredores, entendi que faltavam ainda 10 km pra chegada, e não 5, como pensava. Tudo bem, cinco, dez, que diferença faz?... Tomei um gole de Gatorade e retornei à aquela metódica contemplação dinâmica da natureza ao redor.





Pouco mais à frente o negócio começou a ficar meio tumultuado, por conta da estranha passagem da fronteira com o Chile. Pra manter a tradição, o percurso foi até a fronteira entre os dois países e nos fez cruzar para o lado chileno. Com isso tivemos que fazer todo o processo de aduana tanto de saída da Argentina, quanto de entrada no Chile e vice-versa (ou seja, fomos ao Chile e retornamos à Argentina em poucas centenas de metros). Passaporte, carimbos, controles de bagagem, tudo como numa fronteira normal. Com isso devemos ter gasto, ao todo, uns 40 minutos parados nas diversas filas desse processo. E parar de correr, nessa altura do campeonato, e ter que voltar a correr depois, definitivamente não é o mais indicado nessas situações, mas era o que tinha que ser feito. 



















Cerca de 3 km mais nos levaram à linha de chegada da etapa, às margens do Rio Hua-Hum, 6 horas e 15 minutos após o início. O Sr Garmin indicava que havia percorrido 45 km.


Chegada do primeiro dia



Tempo em movimento do primeiro dia


Mais uma vez havia Vans para nos levar dali até o acampamento, que não ficava distante. No rápido trajeto, dentro do veículo, só o que se ouvia era uma sinfonia de gemidos, sinal evidente de que a brincadeira não fora fácil, ainda que tenha sido apenas o começo.

Chegando ao acampamento, por volta das quatro da tarde, o tempo, que já vinha instável nas últimas horas, desestabilizou-se de vez em uma chuva fina. Peguei minha mochila (que havia sido transportada pela organização), localizei minha barraca, deixei as coisas lá e, sem pensar muito, me dirigi ao rio que havia ali perto para o devido banho. O frio do ambiente estava menos intenso que o da água, sendo assim, a imersão transformou-se numa sessão forçada (e gratuita) de crioterapia. Aguentei uns quinze minutos que pareceram uma eternidade, mas certamente valeu muito a pena.

De volta ao acampamento, vesti-me adequadamente e fui almoçar. No centro da grande área em que estavam montadas as centenas de barracas azuis dos corredores, havia uma enorme tenda de circo, dentro da qual funcionava o refeitório. O cardápio constituía-se de um setor de massas (macarrão com dois tipos de molho), outro (mais concorrido) de churrasco, no mais autêntico estilo “gaúcho bagual”, com uma animada turma de assadores distribuindo fartos pedaços de carne (de gado e de frango), além de acompanhamentos de salada verde e tomate, pães e frutas. No acampamento do segundo dia o cardápio seria idêntico.


Barracas azuis dos corredores e a tenda refeitório

As mochilas que eram transportadas pela organização da prova

Churrasco gaudério

Caminhão de apoio da organização


Cumprido o rito básico de banho e alimentação, parti para o necessário descanso. As barracas são duplas, assim, esperava que a qualquer momento meu até então desconhecido parceiro de barraca chegasse, mas, no final das contas, não apareceu ninguém, e concluí que por algum acaso havia sido contemplado com o luxo de poder ficar sozinho num espaço que, a bem da verdade, era muito melhor mesmo para apenas um habitante.




Mais tarde ainda retornei à barraca refeitório para o jantar (cujo menu era o mesmo do almoço, igualmente animado e bem servido). Depois disso, sem rodeios, recolhi-me ao sossego do meu habitáculo. A chuva prosseguiu firme por boa parte da noite, compondo um agradável fundo sonoro com o tamborilar dos pingos no tecido da barraca, mas ao mesmo tempo deixando um fio de preocupação em relação ao dia seguinte. Dormi um sono profundo e ao mesmo tempo superficial, sem dores musculares, sem frio e sem divagações.

O segundo dia amanheceu nublado, mas sem chuva. Tomei um rápido desjejum – chá, leite ou café, pão, cereais, geleias, manteiga, frutas – e fiz os últimos ajustes pra partida. Nesse dia montaram as largadas na ordem do tempo que cada um fez no dia anterior, ou seja, os mais rápidos largariam primeiro, pra evitar congestionamentos na trilha. Fui colocado na segunda leva (de 120 corredores a cada 10 minutos).

Os primeiros quilômetros foram costeando o Lago Nonthué, ora pela margem, ora por dentro do próprio lago. No começo com uma altimetria um pouco mais amigável, fomos seguindo por entre florestas nativas, algumas estradinhas bem legais e morros cheios de estilo. A etapa tinha a previsão de ser de 30 km, com 1200 m de desnível positivo, e era tida como a mais fácil das três que percorreríamos.








Mais ou menos no km 22 encontramos o (único) posto de abastecimento da etapa. Água, Gatorade, bolachinhas, frutas e “bora correr”. Nesse dia, em função da largada coordenada com o tempo de cada um no primeiro dia, o fluxo de corredores na trilha foi bem mais disperso. Ainda passávamos uns aos outros de vez em quando, mas bem menos do que no dia anterior.





O caminho era bem marcado sempre por fitas sinalizadoras brancas e vermelhas amarradas nas árvores ou pedras do caminho, mas seguia também, de forma geral, a trilha mais evidente. Além disso, na maior parte do tempo era comum avistar o corredor à frente. Poucas vezes havia dúvidas sobre a direção a seguir. Houve apenas uma bifurcação, nesse segundo dia, em que um pequeno grupo de uns quatro ou cinco corredores passou batido numa sinalização e seguiu na direção errada. Pouco depois percebemos o equívoco, retornamos e achamos o caminho correto sem problemas.





O último terço dessa segunda etapa voltou a subir as montanhas, enveredando por uma região muito bonita e muito isolada, de onde se via longe em todas as direções. Já próximo do final, por volta do km 25, começo a sentir uma incômoda dor na altura da virilha direita. Logo o leve incômodo se transformou numa dor decidida que começou a dificultar a tração da perna para as passadas. “Dorzinha querida, quebre o meu galho e dê uma aliviada!” – vinha ansiando.








Os últimos 3 km foram de uma íngreme e aparentemente interminável subida. A temperatura despencou e a paisagem perdeu a inocência das altitudes mais baixas e assumiu aquele aspecto rústico de alta montanha. Negociando com a dor e tentando me abstrair do tempo, fui chegando à linha de chegada da segunda etapa, 4 horas e 10 minutos depois da largada. O GPS indicava a distância de 30 km percorridos.










Chegada do segundo dia




Tempo em movimento do segundo dia


Peguei minha mochila que havia sido levada pela organização e me dirigi à barraca. Parei ali alguns instantes pra deixar as coisas e dar uma reorganizada e logo saí pra ir deixar o GPS pra carregar no local destinado a isso. Nesse curto trajeto de não mais do que 50 metros minha perna travou totalmente na altura da virilha, aonde vinha sentindo as dores. Estava efetivamente mancando e morrendo de dor. Deixei o relógio pra carregar, voltei à barraca, tomei um relaxante muscular e apaguei por meia hora, na esperança de dar um “resset” na máquina. É incrível, mas funcionou! Acordei renovado, mas ao tirar o tênis descubro que as duas meias da marca suíça Compresport haviam rasgado no calcanhar – possivelmente devido a um ajuste incorreto na hora de calça-las -, ocasionando um pequeno esfolado por trás do calcanhar. Nada que um bandaid e um esparadrapo não resolvam.  Arrumei minhas coisas e fui procurar um lugar pra tomar um banho. Aparentemente a dor sumira, mas a preocupação se estabelecera.

O banho desse segundo dia foi menos eficiente. Havia apenas um pequeno córrego nas imediações, de forma que só foi possível tomar um “banho de gato”. Voltei ao acampamento e parti para o almoço, e como havia chegado bem mais cedo do que no dia anterior, ainda foi possível tirar a tarde inteira para um muito bem vindo descanso na barraca, curtindo uma musiquinha nos fones de ouvido e deixando o mundo rodar.



Vida de acampamento: coisas secando e bate papo


Acampamento do segundo dia
































À noite, no jantar, a turma estava animada. Rolou uma música caribenha em alto volume nas caixas de som e a galera partiu pra festa. Danças, performances, cambalhotas, risadas, quase um baile de carnaval! A certa altura o diretor da prova interrompeu pra dar os avisos sobre o dia seguinte e o pessoal voltou a cair na real. O cara avisou pra gente se preparar pra guerra! A terceira etapa era nitidamente a mais dura, pela altimetria bem agressiva e pelo ambiente de alta montanha (de difícil acesso). Disse ainda que havia previsão de temperaturas negativas nos pontos mais altos por onde passaríamos. Então tá...







Essa noite realmente não foi tão confortável quanto a anterior. Em determinada altura acordei com frio, mas já estava na intensidade máxima dos meus agasalhos e saco de dormir. Ajustei então minha programação mental pra se adequar à demanda do momento e voltei a dormir sem problemas.

A largada no terceiro dia foi marcada pras sete e meia da manhã – bem mais cedo do que no segundo dia, em que fora às nove. Seguindo a orientação dos organizadores, equipei-me com uma segunda pele, a camisa da prova e uma jaqueta de fleece por cima de tudo. Ainda assim, pouco antes da largada, estava com muito frio.








Acabamos largando por volta das oito horas, segundo nos informaram, porque havia muito nevoeiro no alto da montanha, para onde iríamos. Novamente a ordem de largada seguiu a sequência do tempo de cada um no dia anterior. Novamente estava na segunda leva.

Os primeiros 4 km foram de uma subida muito íngreme e longa. Saímos de aproximadamente 1000 m de altitude para 1820 m. Não havia como correr. E quase também não dava pra andar... Em certos trechos era necessário recorrer a técnicas de “escalaminhada”. De tão lento, percebo que o GPS entra no modo “auto pause” automaticamente, mesmo quando estou em movimento. Constato que por um longo período o cronômetro não avança, ou seja, ele entende que estou parado. Na fase de treinamento experimentei usa-lo com essa função desligada, mas percebi que então ele marcava as distâncias a mais do que realmente fazia. Estranho esse comportamento num equipamento feito pra esse ambiente e pra esse tipo de atividade, mas fazer o que? Aproveitei pra me desligar do aparelhinho e me concentrar nos passos que tinha que dar.




Nesse começo voltei a sentir dor, agora na articulação da perna direita, por trás do joelho. Que beleza! Pelo menos estamos revezando os pontos de pane! Chegando ao topo da montanha que estávamos subindo, cerca de uma hora depois, a visão era maravilhosa, embora o céu estivesse cinzento, com aspecto de chuva, e a temperatura estivesse quase congelante. Percebo que consigo desenvolver bem na subida, quer dizer, nessa situação, a dor era menos intensa, mas as descidas me eram muito sofridas. O problema era que cerca de 80% do percurso dessa etapa era uma longa e interminável descida. Penso intensamente em soluções possíveis. Na pior das hipóteses, pensei, faço os 30 km da etapa caminhando, mas mesmo assim sabia que não seria fácil.




Tomo mais um comprimido relaxante muscular, meio por intuição, e vou tocando o barco. Agora começamos a descida pela longa encosta da montanha. Vou administrando a dor e a cabeça, tentando pensar que, afinal de contas, estou fazendo o que gosto, num ambiente espetacular, e havia treinado muito pra aguentar essa parada... Não ia ceder facilmente!




Não tenho ideia como nem por que, mas o fato é que dali a alguns minutos a dor desapareceu totalmente, e eu voltei a me sentir bem como de costume. Só ficou aquela pontinha de preocupação – “vai que a droga dessa dor volta...”. Aos poucos fui restabelecendo a confiança e voltando a encaixar um bom ritmo de prova.




A paisagem realmente correspondia à expectativa e se mostrava esplêndida. Montanhas a perder de vista, um lindo e enorme lago muito longe e aquele aspecto de se sentir num outro mundo...







Quem corre sabe que depois de certo tempo entra-se numa espécie de hipnose, em que tudo fica meio amortecido em volta e a percepção se restringe ao caminho à frente, à percepção da respiração, ao equilíbrio das passadas... Estava profundamente imerso nesse estado, quando, numa encosta pedregosa de um lindo trecho, começo a ouvir um som diferente e melodioso. Avançando um pouco mais percebo que se trata de uma bela música. Mais um pouco e consigo avistar dois rapazes tocando violino, absolutamente no meio do nada. Apenas aquele solo de violino, o vento, um longo caminho já percorrido e faltando muito ainda pra chegada. Confesso que foram momentos de profunda emoção. Que bela sacada terem bolado aquele presente! Tirou-nos, por alguns instantes, da dureza do momento diretamente para a suavidade de um mundo idílico.





Prosseguimos sempre descendo, ora atravessando belos trechos de mata com flores amarelas e árvores gigantescas, que pareciam fazer parte de um conto de fadas, ora de volta à encosta da enorme crista que vínhamos seguindo.





A certa altura entrei numa sequência muito divertida de uma descida muito íngreme. Era uma single track bem técnica e bem exigente. Foram vários quilômetros e minutos descendo forte. Em determinado ponto, correndo bem rápido (considerando o contexto), levantando muita poeira, passadas bem fortes e novamente aquela “hipnose boa”, aconteceu o que temia em cada movimento: a trajetória do pé esquerdo foi subitamente interrompida por um objeto rígido invisível em meio à poeira e à rápida troca de passos – provavelmente uma pedra ou uma raiz. De imediato me senti no ar, rebatendo repentinamente sobre o terreno à frente. “Senhores passageiros, lamento informar que estamos caindo! Apertem os cintos para um pouso forçado!!!” Aterrissei de peito no chão. Ouvi um “cruchhhhh” na altura do ombro direito e levantei-me quase tão rápido quanto caí. Ainda com gosto de terra na boca, olho para o lado e quase vejo a sorte me sorrindo sorrateiramente, como a dizer: “Quebrei teu galho dessa vez! Vê se se cuida melhor!”. Porque quedas assim são como uma roleta russa, podem dar em nada (como felizmente foi o caso) ou podem significar o fim da brincadeira.






Prossegui com um pouco mais de cautela, na medida em que isso era possível naquele estado de fadiga muscular e entusiasmo com a situação. Mais alguns minutos (ou horas...) se passaram e percebi nitidamente a mudança da vegetação e da geografia ao redor. Estávamos saindo da região de montanha e voltando à “normalidade” das terras mais baixas.

Um pouco mais e enxergo o posto de reabastecimento da etapa, ao lado de uma estrada, com muita gente ao redor. Chego ao local e vejo que há corredores gemendo pelos cantos, alguns encostados nas árvores, outros largados no chão. Paro por um instante pra tomar um gole de Gatorade e comer alguma coisa e quase vejo ao meu lado o fantasma da exaustão física, como a me dizer: “E aí, não quer descansar um pouquinho?”. Armadilha!!! Parar nessas horas é arriscar-se a perder a sutil homeostase do movimento. Sinto que é melhor voltar a correr logo. O pessoal da barraca incentiva-nos euforicamente: “Vamos!! Vamos!! Faltam só 8 km!!” Então volto a me ligar no meu GPS, que a essa altura marca vinte  km percorridos (fora o trecho não marcado no início). Ok, só oito!!

Volto à trilha e vou curtindo o jogo mental que se desenrola e a paisagem, que continua bela. Mais alguns quilômetros e chegamos a um parque muito bonito, com árvores muito grandes e o lago Lácar a aparecer por entre elas como uma visão fantástica, irreal. Começam a aparecer pessoas “normais”, não corredores. Parece que estamos chegando.




Mais algumas centenas de metros e já avisto o contorno da cidade de San Martin. Mais um pouco e começo a ouvir o agito da chegada. Incrível. 

Entro na praia do lago Lácar, ao fim da qual está montado o pórtico de chegada. Faltam uns duzentos metros. Entro no funil de chegada ao som estridente e emblemático de “We will rock you”!! Eu, que costumo ser muito frio nessas horas (e, tanto quanto possível, em todas as outras...), quase me emociono. Cheguei.















Tempo em movimento no terceiro dia






Algumas considerações:

Logística de transporte de ida e volta a San Martin de Los Andes: 

     A viagem foi quase uma procissão... Três pernadas de avião - Curitiba a São Paulo, São Paulo a Buenos Aires e de lá a Bariloche - mais uma de ônibus - de Bariloche a San Martin (e tudo de novo, na volta). Ao todo, contando vôos, esperas e tempo de estrada, foram cerca de 18 horas pra ir e 24 pra voltar. Uma jornada e tanto.




Equipamento

     Bastões de apoio: a maioria dos corredores usou aqueles bastões de apoio retráteis. Desde a fase de treinamento eu optei por não usa-los, por julgar que o custo-benefício não compensava, tendo em vista que nem sempre ele é útil. De forma geral ele auxilia bastante nas subidas, e eventualmente nas descidas. Mas acho que ele nos tira um pouco a percepção de correr com o equilíbrio do próprio corpo, e tende a nos acomodar um pouco à mecânica do seu uso, que é um pouco diferente da mecânica da corrida propriamente dita. Entretanto reconheço que é um equipamento bastante útil, apesar de não ter chegado a me arrepender de não os ter usado. Como tudo, tem vantagens e desvantagens.

     Tênis: usei os tênis Salomon S-LAB XT6, que, segundo pesquisei, são dos melhores pra esse tipo de corrida. Cumpriram de forma exemplar sua árdua tarefa. Excelentes, em todos os aspectos. Mas na fase de treinamento adquiri e usei temporariamente um modelo da The North Face chamado Ultracardiac. Dura decepção: apesar de excelente conforto, começou a descolar a sola com três semanas de uso e perdeu minha confiança. Reprovado. Nesse domínio, a Salomon está muito à frente.


Conceito:

     Recentemente li um editorial de uma tradicional revista brasileira sobre corrida em que o editor tecia uma dura crítica a essas "pseudo-corridas" em montanha, argumentando (entre outros aspectos a respeito dos quais talvez até tenha alguma razão) que não são corridas "de verdade", que são feitas só para os participantes tirarem fotos e se vangloriarem depois, etc... Ora, ora, ora, senhor editor!! Que que é isso!?... Isso me faz lembrar a rivalidadezinha que existe entre mountain bikers e ciclistas de estrada, estes achando que ciclismo "de verdade" é o de estrada, e que o MTB é uma variante menos nobre do esporte... Nada mais equivocado e preconceituoso!! Pra resumir a história, o fato é que cada esporte, e cada modalidade de cada esporte, tem sua riqueza e sua beleza. Querer compara-las é descabido, de tão diferentes que elas acabam sendo. E é mais ou menos isso que ocorre entre a corrida de rua e a corrida de montanha. São quase esportes diferentes. Um não é melhor do que o outro. Cada um tem suas virtudes e seus problemas. Mas adivinha qual é mais divertido!!


Contra ponto:

     Apesar de toda a beleza da corrida, do seu glamour e da bela história e lembranças que ficam, é lógico que existem contra pontos... O custo financeiro da brincadeira, o estilo talvez excessivamente espetaculoso da organização, o custo (difícil de avaliar) em termos de desgaste físico tanto no pré-prova quanto (principalmente) na prova em si. Mas é aquela história: motivos pra não fazer existem aos montes. Se for pra fazer conta, seja financeira ou subjetiva, o melhor é mesmo não sair de casa. Essas coisas tem um valor muito relativo. Depende, no final das contas, dos olhos de quem vê.






Gracias a la vida, que me ha dado tanto...