Tiger 900 Rally Pro

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domingo, 16 de agosto de 2015

Viagem de moto à Patagônia (Ushuaia) (Triumph Tiger 955/ 16150 km) – Brasil, Argentina, Chile e Uruguai - 14 Jan a 14 Fev 2007














     EXPEDIÇÃO PATAGÔNIA

16150 km de moto pelo Brasil, Argentina, Chile e Uruguai,
cruzando a Patagônia, até Ushuaia

(Triumph Tiger 955i)
(Em parceria com Katia, Maurício e Armando)


     Essa viagem ocorreu num momento em que, de certa forma, estava buscando resgatar esse espírito das "grandes viagens", que havia já algum tempo estava meio de lado em função das demandas familiares, profissionais e um pouco também devido ao meu envolvimento intenso com o triathlon e com o Ironman nos últimos anos.

     Não foi uma viagem fácil, sob vários aspectos. A começar por conseguir coloca-la em prática. O planejamento e a preparação da moto e do equipamento quase me venceram com as suas intermináveis opções e dúvidas. Preocupações sobre ir sozinho ou acompanhado, questões de custo da empreitada e a sempre presente preocupação com a segurança na estrada foram outros desafios que exigiram certo jogo de cintura.

     Deixar o aconchego do lar, com a Thaís com seus belos quatro anos de idade, foi ainda mais difícil.

     Poucas semanas antes da partida prevista, por indicação de um amigo, acabei me juntando a um grupo do Rio de Janeiro que estava saindo na mesma época pra fazer um roteiro semelhante ao que pretendia fazer - Katia e Mauricio, marido e mulher, e Armando foram meus novos amigos e parceiros de viagem por quase todo o percurso.

     Em Ushuaia o Armando resolveu voltar sozinho pro Brasil, e alguns dias depois eu também me desliguei do casal e segui meu rumo solo.

     A viagem em si, além de muito bonita e memorável, foi uma grande escola. Passamos por situações as mais diversas e inesperadas. Desde calor sufocante a frio congelante, tempestades de vento, estradas de rípio, divergências no grupo, saudade de casa, êxtase, medo, cansaço, euforia, teve de tudo.

     À época inventei de relatar trechos da viagem em e-mails, que enviava a uma pequena lista de amigos mais próximos. Transcrevo abaixo esses textos, com o inigualável sabor do calor do momento, pra contar um pouco como foi a "Expedição Patagônia".

(Curitiba, Outubro de 2016)








E-MAILS ENVIADOS A AMIGOS NO DECORRER DA VIAGEM:



Brasília, 12 Jan

     Prezados amigos, depois de amanhã, domingo, 14 de janeiro, estarei partindo para uma dessas viagens que não se faz todo dia: 15 mil km de moto, de Brasília a Ushuaia, extremo sul da Argentina, passando pelos Andes, Chile, litoral do Oceano Pacífico, Patagônia, Parque Torres del Paine, etc. Gostaria de partilhar essa experiência com os amigos que, de alguma forma, fazem parte desse "contexto". Pretendo mandar mensagens sempre que possível, ao estilo "relato de viagem"...

     Estou indo numa moto TRIUMPH TIGER 955i (para aqueles pouco acostumados ao mundo motociclístico, é uma baita moto (três cilindros, 105 cavalinhos de potência)!), junto com outros três companheiros de viagem do Rio de Janeiro, com os quais vou me encontrar em Curitiba. Serão 34 dias de viagem. 

     A Mari e a Thaís não vão junto desta vez... mas estão vibrando com o projeto e torcendo muito, tenho certeza. 

     Bem, estou naquela fase "maravilhosa" da "pré-partida"... Para quem nunca viajou de moto: é um negócio fantástico! Mas dá um certo trabalho montar o "esquema". Estou preparando a viagem há mais ou menos quatro meses. Então é isso. 




Brasília, 13 Jan

     Exaustiva a preparação final da viagem. Mas está tudo pronto. Acho. Hora de partir então. Desprendimento - é a palavra que tá rolando na minha cabeça hoje... Junto com infinitos raciocínios do que levar, como levar, como não esquecer, se o peso está compatível, se vai caber, se vai ser útil... Bem, tenho que escrever pouco porque já é tarde e amanhã vai ser um dia mais ou menos longo. Deixem-me esclarecer um pouco mais as circunstâncias: a Mari e a Thaís estão no Rio Grande do Sul, na casa da mãe da Mari. Amanhã, domingo, elas vão pra Curitiba, onde nos econtraremos na segunda-feira. Ficaremos por lá até quinta-feira, quando os companheiros de viagem chegam do Rio (eles estarão partindo nesse dia). Na sexta prosseguimos em direção à Argentina, e a Mari e a Thaís retornam a Brasília... Amanhã, domingo, vou até Campinas. Cerca de 900 km. Previsão de chuvas e trovoadas. Que bom. A tendência só pode ser melhorar. Bom trabalhar com boas tendências. Interessante: tão envolvente esse negócio que o tempo já se descolou da rotina: hoje não teve cara de sábado. Será que esse troço (uma moto de 215 quilos com top case e dois alforjes laterais plenos...) vai funcionar?... 




Campinas, 14 Jan, dia 1

     Ahhh, nada como o primeiro dia de uma grande viagem e aquele pensamento infalível: "o que é que eu tô fazendo aqui?"... Então partimos. O dia rendeu bem. Saímos de Brasília às 06:45 e, conforme previsto, pegamos chuva e tempo ruim, alternando entre chuva fraca, chuva forte, úmido, neblina, e, no final do dia, sol e calor. Pronto: a TIGER perdeu aquela inocência imaculada de máquina de garagem... 

     Chegamos em Campinas às quatro e meia da tarde, com 950 km rodados. Digo "nós" porque nesta etapa me acompanha o amigo Paulo Cézar, companheiro de velhos (Colégio Militar de Brasília, 1981...) e de recentes tempos, a bordo da "Brigite", sua poderosa Supertènèrè amarela, acompanhado da Carol, sua filha de doze anos, na garupa. Seguiremos juntos até Foz do Iguaçu, de onde eles retornam a Brasília, e eu sigo pra Argentina e Chile com o pessoal do Rio. 

     E eu tinha me esquecido como é duro viajar de moto... mas nada que mais estrada não resolva (o mesmo conceito dos bons treinos...). Então é isso. Bom ter partido. A propósito: a TIGER realmente é encantadora. Puro prazer de pilotar. E o conjunto moto-bagagem-piloto até que "funcionou" bem... Amanhã, Curitiba.



Curitiba, 15 Jan , dia 2

     Hoje estive pensando sobre a dualidade do motociclismo: tão forte, e tao frágil! A moto é um equipamento fantástico, imponente, potente, veloz, ágil, apaixonante... mas está a apenas um erro de distância da mais perigosa fragilidade. Exatamente como nossa própria vida... Então pus-me a pensar sobre como lidar com essa vulnerabilidade. Primeiro, técnica. Pilotagem técnica. Depois todos os cuidados de manutenção, equipamento, condições físicas adequadas, cuidados básicos de pilotagem defensiva... E por fim, e talvez o mais importante, aceitar a fragilidade! Estar disposto a correr os riscos, pagar o preço! Aceitação!... 

     Tudo tranquilo na estrada hoje, à exceção de algumas curvas das nossas estradas que, conjugadas com uma carga um tanto volumosa da máquina produziram uma certa sensação de insegurança, o que me levou à reflexão descrita. 

     Saímos de Campinas as 7:50 e as 12:40 "tocamos o solo" em Curitiba, sem chuva, sem sustos, sem problemas. E um doce reencontro com os amores da minha vida... Agora, parêntese na "Expedição Patagônia", para três dias de vivência família. 




Foz do Iguaçu, 19 Jan, dias 3 a 6

     De volta à estrada! Partir para voltar - talvez a maior motivação de viajar por viajar... Um mundo de possibilidades de reflexão: o por que das coisas... Então estamos efetivamente a caminho do nosso objetivo. Agora com a equipe completa. Os meus companheiros de viagem chegaram do Rio ontem, em Curitiba: Armando, pilotando uma outra TIGER amarela; Maurício, DR 800; sua esposa Katia, de V Strom 1000; e vindo até Foz, Luiz (62 anos), de BMW 650 GS. Hoje rodamos 650 km de Curitiba a Foz. Adaptamo-nos bem ao ritmo da viagem e à dança das estradas... mas não foi um dia fácil. Muita chuva, muitas curvas, aquele óleo da pista a tirar nossa tranquilidade e uma chegada complicada em Foz, debaixo de um temporal e num trânsito nervoso. 

     Amanhã pretendemos ir até Cordoba, na Argentina. A TIGER tem se revelado uma máquina espetacular: firme, precisa, rápida, forte - e tomara que resistente... Partir para voltar...






 
Os companheiros de viagem: Kátia, Armando e Maurício (marido da Kátia)


Em algum lugar entre Foz do Iguaçu e Pousadas, Argentina




Cordoba, Argentina, 21 Jan, dias 7 e 8

     Retas intermináveis na região das missiones argentinas!... em um dos trechos, apenas um, marquei 121 km sem troca de marcha, a sexta, o motor girando macio a 5000, 6000 giros, moderados 120, 130 por hora... overdose de estrada! Enganei-me na última mensagem: ontem, sábado, fomos de Foz a Reconquista, 200 km além do nosso planejamento. Hoje, domingo, sim, era o dia de chegar a Cordoba, onde estamos. 

     Entramos na terra dos nossos "hermanos" sem problemas e sem demora na fronteira. Pegamos a manhã de sábado com chuva. Depois o tempo foi abrindo e secando. Até a cidade de Posadas fizemos um trecho um tanto travado, devido a muita lama na pista e muitos caminhões na estrada. Depois a paisagem mudou radicalmente: as tais retas intermináveis, horizonte a perder de vista, céu amplo e bonito... "liberdade total"... 

     As estradas têm ótimo revestimento, sem nenhum buraco, mas também sem acostamento, mas são bem boas. As motos reagiram bem à gasolina de maior octanagem daqui. A DR engasgou um pouco no começo, mas parece que se acostumou. A TIGER do Armando teve uma "indisposição" ontem com o arrefecimento de água do motor - um desses problemas que aparecem do nada - mas aparentemente também já se resolveu. A minha TIGER continua muito bem, correspondendo a tudo. Das quatro motos, as nossas TIGER são as que têm feito a melhor média de consumo, o que, aliado ao preço muito mais simpático da gasolina dos nossos vizinhos (cerca da metade do preço no Brasil) contribui para manter o orçamento sob controle. 

     Bem, é isso! Na realidade ainda estamos na fase de "deslocamento" (estamos apenas "andando"). Como dizia uma frase num muro de um prédio à beira da estrada hoje: "Lo mejor esta por vir"... O motivo pelo qual fazemos as coisas... nossos motivos... importante isso... Fazer com o coração. De coração... e deixar o mundo girar. 






Estudo da rota a seguir






Em um dos vários abastecimentos





A Tiger "pintada" com a poeira da estrada







Mendoza, Argentina, 22 Jan, dia 9

     Hoje foi um dia "pancada". Um pouco depois de Cordoba pegamos uma serra muito bonita, mas muito "travada" (curvas muito fechadas, estrada muito estreita, intenso movimento de carros). Subimos a 2000 metros de altitude, ficou frio, e um visual alucinante - aquela sensaçao de se sentir em outro mundo. Depois descemos tudo e caímos num deserto de quatrocentos quilômetros de extensão até Mendoza, de novo com aquelas retas infinitas, nenhuma cidade no caminho, pouquíssimos carros, vegetação rasteira, horizontes a perder de vista e um calor de rachar - muito, muito quente. 

     Neste trecho bobeamos e nos metemos no primeiro imprevisto da viagem: a DR do Maurìcio ficou sem combustìvel, pelas nossas contas e mapas, a 25 km da cidade mais próxima. A Katia ficou com ele (porque também estava quase sem combustível), debaixo de um sol de 50 graus, e eu e o Armando fomos à frente buscar gasolina. Felizmente achamos conforme o previsto e voltamos a eles em pouco mais de quarenta minutos. Tudo resolvido. As TIGERS ainda tinham mais de 100 km de autonomia... 

     Nesse posto cruzamos com outros dois motociclistas canadenses, de BMW 1200 GS, vindo do Canadá, indo pra Ushuaia como nós, pra depois voltar ao Canadá - total de seis meses de viagem, estavam com exatos três meses de estrada. É aquela história: referencial! Quando a gente começa a achar isso ou aquilo, basta mudar o referencial que tudo muda. 

     A chegada em Mendoza foi um grande aborrecimento: de novo o problema de achar hotel - combinar disponibilidade de vaga, localização, preço, estacionamento, etc! Complicado. A DR 800 do Maurício não tá muito contente com a gasolina pura e de alta octanagem dos nosso hermanos, e ele menos ainda com a situação. Essa questão, aliada ao stress natural da viagem e a outros fatores tem desafiado o velho problema das viagens em equipe: harmonia... Vamos ver no que vai dar. Amanhã ficamos por aqui, pra lavar as coisas, descansar um pouco, reestudar os mapas, e dar um tempo da estrada. 








As retas intermináveis (e quentes) do pampa argentino





Abastecendo a DR 800 do Maurício na estrada





Abastecendo a DR 800 do Maurício na estrada












Mendoza, Argentina, 23 Jan, dia 10

     Hoje tiramos o dia pra reorganizar as coisas, ou, mais exatamente, lavar, limpar, lubrificar. lavamos as motos, as roupas, higienizamos as roupas de cordura com álcool, enfim, demos uma geral. Aproveitamos também pra descansar um pouco e dar uma caminhada pelas ruas de Mendoza, que, aliás, é uma cidade bem legalzinha. Gostei particularmente do astral de montanha em função da proximidade do Aconcágua. A cidade é uma espécie de base para expedições à montanha, e por isso tem umas lojas de equipamento bem bacanas. 

     O Mauricio pretendia deixar a DR num mecânico pra regular a carburação, mas parece que mudou de idéia e resolveu deixar pra lá... 

     Amanhã planejamos atravessar os Andes e seguir pra Santiago, no Chile. É pra ser um dia curto, de 300 km, mas com várias atrações e, como sempre, coisas desconhecidas pela frente. A expectativa fica por conta do rendimento das máquinas com a altitude, pois devemos subir a cerca de 3000 metros.








Dando uma lavada na máquina pra levantar o moral







Dando uma bisbilhotada nas lojas de equipamento de montanhismo de Mendoza







Chillan, Chile, 25 Jan, dias 11 e 12

     Alucinante a beleza da Cordilheira dos Andes! Muito bonito mesmo! O dia de ontem já valeu a viagem. levamos o dia inteiro (das sete e meia da manha às oito e meia da noite) pra fazer os 380 km da jornada, de tanto que paramos pra fotografar, curtir, admirar. Essa região de alta montanha realmente é um capítulo à parte em termos de belezas naturais. 

     O lado argentino da estrada é belíssimo, com uma subida suave e com paisagens de tirar o fôlego. Visitamos a entrada do Parque Nacional Aconcágua, a Ponte dos Incas e várias curvas e "sights" da estrada. A fronteira com o Chile é dentro do túnel Cristo Redentor, de uns 3 km de extensao, a 3209m de altitude. Passamos pela aduana chilena sem problemas, gastando cerca de uma hora e meia pra papelada, revistas, perguntas, etc... 

     A descida do lado chileno é mais íngreme: começa com os famosos "Caracoles", uma sequência de várias curvas de 180 graus, as quais se faz em segunda marcha, com o motor a 1500 giros e freio dianteiro na ponta dos dedos. Ah! e muitos caminhões - grandes e pesados. 

     A estrada, que era muito boa do lado argentino, piorou sensivelmente no Chile. Terminamos o dia numa cidadezinha chamada Quillota, próximo de Santiago. 

     Hoje, quinta-feira, saímos cedo, passamos por Viña del Mar e Valparaizo, onde conferimos se o mar do Ocenao Pacífico tem o mesmo gosto do Atlântico, e prosseguimos para a cidade onde estamos agora, de acordo com o nosso planejamento. 

     Hoje foi um dia particularmente difícil. As dificuldades variam todo dia... Hoje pagamos o preço do dia desgastante de ontem: estávamos todos com sono, cansados, quase incomodados sobre as motos. Soma-se a isso um trecho de estrada absolutamente óbvio e sem nenhum atrativo, paticularmente se comparado a ontem: 700 km de auto-estrada, com a irritante obrigacao de obedecer o limite de velocidade de 120 km/h!!! (pra nao arranjar problemas com "la policia"). 

     As máquinas vao bem. A DR parou de dar "chilique" e todas subiram e desceram os Andes sem reclamar. A TIGER é simplesmente espetacular. Parece uma nave espacial. E nessa velocidade de tartaruga tá fazendo 20 km por litro... Dá pra escutar ela falando: "enrola esse cabo, cara!!" - mas por essas bandas não convem... Paciência. 

     Bem, amanhã vamos a Villarica e Pucon, continuando em direção ao sul. O tempo tem estado ótimo: seco, sol, céu azul e hoje menos quente do que nos outros dias. É isso. A gente faz o que pode... (às vezes o que nao pode também, mas isso deixa pra lá...)






"Puente del Inca", Cordilheira dos Andes, Argentina






Feirinha de artesanato próximo à fronteira Argentina-Chile






Próximo ao Parque Aconcágua, Argentina






Próximo ao Parque Aconcágua, Argentina






Próximo ao Parque Aconcágua, Argentina






Descendo os "Caracoles", lado chileno da Cordilheira dos Andes











Villarrica, Chile, 26 Jan, dia 13

     Conversa nossa numa das paradas pra abastecer (mais exatamente do Maurício e da Katia): "é... temos que dar o braço a torcer... realmente a TIGER é campeã, em consumo, em potência, em tudo..."... 

     Realmente é uma senhora moto!! E não foi fácil chegar a essa conclusão ANTES de comprá-la! O que prova que o "processo decisório" foi feito direitinho. 

     Estamos em Villarrica. Fizemos um trecho curto hoje, de 380 km mais ou menos, seguindo pela Rodovia Panamericana, uma autopista dupla, em excelente estado. Em certo ponto a vegetação mudou radicalmente: começaram a aparecer umas arvorezinhas aqui chamadas de araucânias, parecidas com nossos pinheiros. A temperatura também mudou. De repente paramos no acostamento e todos sairam colocando roupas de frio... Daqui pra frente o frio deve começar a ficar mais insistente. 

     Villarrica é uma cidade às margens do Lago de mesmo nome e do vulcão também de mesmo nome. Na região tem ainda mais dois vulcões. É um local muito legal, muito ajeitado. Amanhã vamos fazer um caminho entre os três vulcões até encontrar a Panamericana de novo e seguir para Puerto Montt, nosso próximo destino, no final da parte pavimentada da "Ruta 5" aqui do Chile, de onde voltamos pra Argentina... 

     Na fase do planejamento da viagem uma das grandes dúvidas era se viria sozinho ou acompanhado... e, nesse caso, com quem... Na verdade só aderi a esse grupo do Rio três semanas antes de partir. Várias questões pesam a favor e contra fazer uma viagem dessa sozinho... O planejamento desses amigos do Rio é, digamos, 90% igual ao que faria sozinho. O atual planejamento prevê 32 dias de viagem, sozinho eu tinha previsto 25, mais algumas diferenças de roteiro, sendo a principal o próprio destino: na minha concepção da viagem iria "apenas" até Puerto Natales, onde ficaria uns cinco dias no Parque Torres del Paine. Agora vamos literalmente até o fim da estrada no continente americano: Ushuaia - um autêntico ícone de lugar distante e inóspito... Tem muito chão pela frente ainda. Até agora, já mais de 5000 km distante de casa.







Tomando um chá quente pra combater o frio





Puerto Varas, Chile, 27 Jan, dia 14

     Levamos uma "peia" do frio hoje! Saímos de Villarrica âs sete e meia da manhã. Quarenta minutos depois paramos num posto gelados até a alma, quase não conseguindo mais acionar seta, freio, embreagem... Hummmm... Nossas fantásticas luvas de goretex, simpatex, thermopro e outras invencionices tecnológicas (muito boas aliás) não serviram pra nada, e ficamos um tantinho preocupados... Demos um tempo, tomamos um chá, jogamos uma conversa fora e uma hora depois, com o sol um pouquinho mais disposto, prosseguimos, ainda com frio, mas suportável. 

     Puerto Varas, onde estamos, é muito bonito! A região é dominada pelos vulcões. O da localidade aqui é o vulcão Osorno. Realmente é uma paisagem de tirar o fôlego. Como foi um dia curto, de 350 km, chegamos por volta das 13 horas, deixamos as coisas no hotel e fomos ver o vulcão de perto, num passeio de 80 km (ida e volta) muito bonito - cinematográfico! 

     Viajar de moto é o seguinte: de certa forma a viagem é a moto! Se o caminho for bonito, interessante, tanto melhor. Se não for, quase não tem problema... Pilotar é um negócio muito bacana: a sensação de liberdade (ou talvez a liberdade) é palpável, embriagante. A rapidez, a agilidade, a posição e até mesmo o risco sempre iminente são estimulantes. Pilotando não se tem direito a distração, a erro, a mais do que um segundo para reagir a uma curva inesperada, ou a qualquer coisa que apareça do nada. A relação com a moto é quase afetiva, de cumplicidade, de absoluta intimidade. A gente cuida dela, e ela cuida da gente... 

     Lógico que tem vários "porens", mas até as adversidades podem ser divertidas, se bem resolvidas. Legal então. Chega. Amanha vamos dar um pulo até Puerto Montt, 26 km à frente, só pra dar uma olhada, depois retornamos até Osorno, pela Panamericana, e infletimos para leste, voltando à Argentina, em Bariloche. 

P.S. 1: O Armando, parceiro da TIGER. tá meio baqueado, com a garganta inflamada, um pouco de febre... mas ele vai ficar bom. 
P.S 2.: Nos últimos três dias, aproveitando que foram dias de pouca quilometragem, fiz três boas corridas (a pé)... com visual diferente, e deixando o mundo rodar...




 


O belo e imponente Vulcão Osorno


























Fim de tarde especialmente bonito em Villarica




















Pousada simpática em Villarica













Bariloche, Argentina, 28 Jan, dia 15

     Então estamos na Patagônia!! 

     A Patagônia é uma enorme região que se estende desde alturas norte de Bariloche até lá onde o vento faz a curva, no extremo sul do continente. Portanto, oficialmente, estamos na Patagônia, ainda que não naquela que queremos, a inóspita, ampla, selvagem, logo ali, um pouco mais para o sul. 

     Um dia cheio hoje. Atravessamos novamente os Andes e a fronteira Chile-Argentina, por um passo bem mais baixo do que o de Mendoza - acho que em torno de 2000 m. Também muito bonito, mas uma beleza diferente. Felizmente abandonamos a Panamericana e seu traçado sonífero. Assim que dobramos para o leste a estrada e a paisagem se modificaram radicalmente. Esquecemos do odômetro e do tempo e curtimos curvas e mais curvas emolduradas por paisagens exuberantes, lagos enormes, montanhas ao fundo... 

     Foi de novo um dia curto de quilometragem, algo em torno de 380 km, mas longo de tempo de estrada: muitas paradas pra fotografar, duas horas de papelada e carimbos na fronteira e uma velocidade cruzeiro baixa, devido às muitas curvas e ao jeitão da estrada.

     Na aduana encontramos um grupo de cicloturistas argentinos, dois caras e duas meninas, dando uma volta de três semanas pela região. Um dos caras tinha perdido a porca da roda traseira e estava meio em apuros. Saquei meu saquinho de porcas e parafusos e encontramos uma que serviu na roda da bike dele. Ele ficou muito contente, pois já estava pensando em abandonar... Deu saudade das viagens de bike... Completamente diferente de viajar de moto. Moto é muito muito legal, mas nada se compara ao silêncio e à introspecção do pedal... vantagens e desvantagens... 

     Amanhã voltaremos a andar uma distância razoável: cerca de 700 km até Sarmiento, reto em direção ao sul. Mais latitude e com certeza mais frio. O tempo hoje se comportou direitinho. Fez frio, mas defensável. É isso. 



Parte superior do formulário

Puerto San Julian, Argentina, 30 Jan, dias 16 e 17

     Para onde quer que se olhe só se vê céu e terra!!!... Um céu imenso, um horizonte imenso, longínquo... um filetezinho de asfalto se estendendo ao infinito... sem acostamento, sem placas, sem faixas... nem um poste, nem uma cerca, nem um nada... só arbustos baixos. E vento. MUITO vento! Como disse o Armando numa das paradas: "chega a dar uma sensação de desespero...!" Sensações... Pra mim tende mais a êxtase. 

     A mistura de todo esse visual com o barulho suave do motor (parece um avião), o vento absurdo, a adrenalina, a tensão, o cansaço, o tempo, a distância, os objetivos... formam uma sensação única, indizível! Estamos em plena Patagônia

     Ontem a viagem radicalizou-se e assumiu definitivamente sua "cara de expedição". De repente, a 110 por hora, entro, sem nenhum aviso, num trecho de rípio solto, de uma obra na estrada (rípio é um revestimento muito comum por aqui: em resumo, é uma estrada de pedra). Bem, o que fazer? Soltar o acelerador, deixar a moto dançar pra todos os lados... e prosseguir. Momento de sorte! 

     A moto do Armando voltou a aquecer. Ele acha que é devido a andar em alta rotação e baixa velocidade no rípio. Depois de aloprar com a situação e desmontar a moto em cima da calçada da cidade onde chegamos às nove da noite, parece que se resolveu... 

     O vento realmente é um negócio de louco: as motos andam completamente inclinadas (a uns 30 graus em relação à vertical...). É uma pilotagem maluca, tensa, difícil, perigosa. Tem horas que fica quase impossível dominar a máquina. É preciso reduzir marcha, inclinar o corpo, puxar com o braço. Principalmente cruzando com caminhões...

     O frio está administrável: põe roupa, tira roupa, e vai se levando... Hoje trocamos o óleo das motos em Comodoro Rivadavia, conforme planejado. Ou melhor, mais ou menos conforme o planejado, pois a oficina que era a referência para nosso atendimento nos recebeu muito mal, praticamente não quiseram fazer o serviço. Fomos parar na oficina caseira de um cara super simples, super simpático, super entusiasmado... Emblemático isso, como quase sempre: a oficina "autorizada" cheia de arrogância e condições, o fundo de quintal receptivo e eficiente... 

     A viagem interior?... Como diz uma dessas músicas: "a vida é pedra de gelo ao sol... não pare, não pense demais..." No que se pensa quando se está horas e horas na estrada?!... Mais ou menos como horas e horas sobre a bicicleta: a vida fica muito simples: estrada, curva, posição, concentração, nada... 



 



Trocando o óleo na oficina caseira de um mecânico local







"Sangue novo" 







O mecânico que nos auxiliou com a troca do óleo






A placidez do litoral em San Julian





Colônia de Pinguins em San Julian


















Em algum lugar próximo de Comodoro Rivadavia





Ushuaia, Terra do Fogo, Argentina, 03 Fev, dias 18 a 21

        Cume!

        54 graus de latitude sul.

        8750 km desde a saída.

     Chegar a Ushuaia de moto tem o fascínio e a insanidade das conquistas de altas montanhas. E, no nosso caso, muito parecido com um ataque ao cume. Ushuaia é um lugar emblemático - a cidade mais austral do planeta. Daqui não se pode ir mais a lugar nenhum por estrada, só voltar. Por isso, e por estar localizada na pontinha do continente, a cidade se intitula como "o fim do mundo". É um polo de atração de viajantes, expedições, aventureiros de vários tipos - jipes, motos, bicicletas... e carros de luxo, cruzeiros marítimos luxuosos, etc... 

     Mas antes disso a situação ficou insólita por aqui! Saímos de Rio Gallegos na quinta-feira às sete e meia da manhã, com a intenção de chegar a Ushuaia no mesmo dia (cerca de 700 km, mas com a travessia do Estreito de Magalhães num ferry boat, um trecho de estrada de rípio e duas aduanas pelo caminho). 

     Ficamos contentes com o dia magnífico: sol e céu completamente azul, sem uma nuvem - completamente atípico pra região. Ao chegar na aduana Argentina, a cerca de 100 km de Rio Gallegos, sentimos que aquele vento estava um tanto quanto forte demais... Alguns quilômetros à frente a situação ficou preta: quase impossível segurar as motos! Numa rotatória, onde havia uma dúvida pra onde seguir, ao parar, a Katia e o Armando não conseguiram segurar as motos e foram pro chão. Eu consegui parar no sufoco. Com muito custo levantamos as duas motos e prosseguimos até o local da travessia do Estreito de Magalhães - Punta Delgada. 

     Estava impossível fazer qualquer coisa. Para parar tínhamos que procurar um anteparo e parar com o descanso da moto já abaixado, fazendo um verdadeiro malabarismo! Alto nível de stress! Aí soubemos que os ferry boats não estavam operando devido ao vento muito forte. 

     Entramos numa cafeteria ao lado do local da travessia e pensamos no que fazer. Era mais ou menos 10 horas da manhã. Muito diálogo, planos, mapas, e às duas e meia os meus companheiros decidiram ir pra Puerto Natales, uns 300 km à frente, que seria nosso próximo destino. Fui contra. O vento estava igual ou pior do que na hora que chegamos. A Katia disse que não tinha tempo a perder parada numa cafeteria por causa do vento... Eu tenho sempre todo o tempo do mundo a "perder" e toda a paciência necessária pra qualquer coisa, até pra passar o dia inteiro numa lanchonete por causa do vento absurdo que estava lá fora... 

     Decidimos então que cada um faria como achava melhor. Separamo-nos. Eles se foram. Fiquei só. Esperei a tarde inteira, admirando aquele vento realmente espetacular. Tinha decidido ficar ali até ter condições mínimas de andar, e pernoitar num hotel a 15 km dali... no dia seguinte decidiria se continuaria até Ushuaia ou iria pra Puerto Natales. 

     Às oito e meia da noite meus companheiros desgarrados entram pela porta exaustos e assustados. Me contaram que saíram da cafeteria e conseguiram andar 15 km, sem conseguir voltar, por causa do vento. Pararam com muito custo num ponto de ônibus na beira da estrada, onde ficaram abrigados seis horas e meia, sem conseguir se quer virar as motos pra voltar para onde eu estava - logicamente muito melhor abrigado. 

     Às dez da noite o vento estava ainda forte, mas administrável. Fomos então para o hotel que eu havia previsto, que, por coincidência ficava ao lado da casinha onde eles passaram a tarde. 

     No dia seguinte acordamos sem saber como o tempo estaria e o que faríamos... As notícias eram de que o vento, anormalmente forte, continuaria assim. Montamos a bagagem nas motos ressabiados e pegamos a estrada em direção a Puerto Natales, todos um tanto frustrados por ter que abandonar o projeto de chegar a Ushuaia. 

     20 km depois percebemos que o vento estava mais razoável. Estava dando pra andar. Paramos num posto, abastecemos e resolvemos voltar. Daí por diante o vento realmente se acalmou. Continuou ventando, mas de forma "civilizada". Fizemos a travessia às 13 horas (a travessia dura 20 minutos). O trecho de rípio (130 km) foi bem menos problemático do que falam. Lógico que demanda um cuidado redobrado e o risco aumenta consideravelmente, principalmente ao cruzar com outros veículos, mas é bastante razoável. 

     Enfim, tocamos o solo em Ushuaia às 21:10 horas, sob um frio glacial. À parte as dificuldades, a região é belíssima. Impressionante a mudança da geografia! De repente, já na Terra do Fogo, acabam as planuras da Patagônia e começam montanhas com neve nos picos, lagos belíssimos, serras com curvas cinematográficas. Muito bonito mesmo. 

     Vamos ficar por aqui hoje e amanhã, pra descansar um pouco e nos preparar para a volta. Na segunda-feira começamos a voltar. Ainda não sei até onde permaneceremos juntos. Os objetivos e as relações do grupo perderam um pouco da qualidade necessária. Vamos tocando... 

     Eu vou para Puerto Natales, onde pretendo passar talvez um dia. Estamos a 1000 km da Antártica! Se tivesse estrada daria pra chegar em um dia bem rodado.

P.S: No dia da muvuca do vento encontramo-nos com um grupo de cinco motociclistas brasileiros de Cabo Frio-RJ, mais um jipão Dodge ano 1952 de apoio (uma verdeira relíquia), voltando daqui de Ushuaia, ou melhor, naquele dia voltando de San Sebastian, na Terra do Fogo. Tiveram três quedas naquele dia devido ao vento. Gente muito bacana, do Tubarões Moto Clube. Batemos altos papos. Estão voltando agora por dentro, via "ruta 40". Boa viagem pra eles.







Junto à cafeteria em que passamos várias horas esperando o vento amainar, 
no Estreito de Magalhães






Meus companheiros incomodados com a longa espera pela melhora das condições do vento














O Estreito de Magalhães (açoitado pela tempestade de vento)





















As motos do pessoal de Tubarão-SC






O grupo de Tubarão-SC e os meus parceiros de volta após várias horas fora






O belo fim de tarde no Estreito de Magalhães






Belo crepúsculo após um dia particularmente difícil






As motos e o jipão de apoio do pessoal de Tubarão-SC






O hotel em que passamos a noite próximo ao Estreito de Magalhães






Preparando pra embarcar no ferry boat no Estreito de Magalhães, 
no dia seguinte à tempestade de vento





4 de Fevereiro
Ushuaia, Terra do Fogo, Argentina, 04 Fev, dia 22

     Devo corrigir um comentário que fiz ontem, quando disse que não chegar a Ushuaia teria dado um ar de frustração ao grupo. Acho até que teria sim, aos outros, não a mim. Ushuaia tem status demais, exatamente como uma conquista, mas não passa de mais uma cidade, depois de um monte de quilômetros de estrada. Não chegar aqui, a rigor, não empobreceria em nada a viagem fantástica que estamos fazendo. Apenas não teria o "efeito marketing" de dizer: "oh!! eu fui a Ushuaia!" - bobagem. 

     Bem, hoje fizemos uns passeios pelas redondezas da cidade. Fomos até o final da "Ruta 3", que é o ponto exato onde a estrada termina e não se vai mais a lugar nenhum. Fica a 30 km da cidade. Tiramos a foto de praxe e curtimos o visual. A região é muito bonita. Depois fizemos uma caminhada num glaciar nas montanhas aqui perto. Também muito bonito. Está muito frio. De madrugada nevou nas montanhas ao redor da cidade. Amanheceu tudo branquinho. 

     Lavamos e lubrificamos as motocas e demos uma arrumada nas coisas. O Armando decidiu voltar direto ao Brasil pelo caminho mais curto. Segundo ele: "perdeu a paciência com esse negócio". É aquela velha história dos motivos: por que fazemos o que fazemos? Se nao for por motivos genuínos, sinceros, do coração, não dá pra resistir. Fazer pros outros, pra colocar foto na parede, só pra dizer que fez, pra "currículo", é um tremendo equívoco, e um perigo (a gente vê que acontecem coisas semelhantes no IRONMAN). 

     Eu próprio me policio muito com isso e fico constantemente tentando sentir a forca e a profundidade dos meus sonhos e devaneios. É a dicotomia entre o "ter feito" e o "estar fazendo". "Ter feito", evidentemente, é muito legal. É muito gratificante ter lembranças boas, história pra contar, etc... Mas isso não deve ser o único motivo. Tem que curtir o "estar fazendo". Afinal, o presente é o que conta. 

     A Katia e o Maurício voltaram a pensar em ir pra Puerto Natales, portanto devemos seguir juntos até lá, mas creio que de lá cada um deverá seguir rotas diferentes. 

     Então estamos começando a voltar... 

P.S: hoje encontramos um casal de colombianos viajando numa DL 650 VStrom (isso mesmo: 650! idêntica à 1000). Estão vindo da Colômbia e vão até Manaus, no Brasil. Três meses de viagem. Os dois em uma moto. Ontem vimos um casal de suíços em duas BMW 1200 GS, com mais bagagem que caminhão de mudança. Parecia um trator sobre duas rodas. Cada um com suas maluquices.







A placa clássica em Ushuaia






Belo visual da Baía em Ushuaia






Tradicional foto ao final da "ruta 3" - o último ponto da estrada no continente












Montanhas ao redor de Ushuaia







Navios no porto de Ushuaia












Puerto Natales, Chile, 6  Fev, dias 23 e 24

     Ontem viemos de Ushuaia a Puerto Natales: o dia variou entre gelado, gelado com chuva e gelado com chuva e vento, o que, logicamente, é uma combinação bombástica nestas latitudes e quase nos levou pro lado de lá do "limite da sustentabilidade". Usei minha "potência máxima" contra o frio - o que me fez parar de tremer por cerca de duas horas. Depois... não adianta! Nessa região e com essas condições não há roupa "normal" que dê jeito. O problema é o vento, que abaixa muito a sensação térmica. 

     O que deve funcionar são os sistemas "ativos" contra o frio: roupas e punhos aquecidos eletricamente, além de capacete e bota específicos para o inverno rigoroso. Esse nosso equipamento pra frio brasileiro não passa de quebra galho. Na situação atual não estou se quer preocupado com conforto. A preocupação é a perda do controle dos estágios seguintes: primeiro os reflexos, sensibilidade de mãos, e "atenção física" de forma geral. Depois tem a questão da hipotermia. Não dá pra brincar com esse negócio. 

     O Armando partiu de vez: seguiu na direção de Rio Gallegos, pelo caminho mais curto para o Brasil, conforme havia dito. Permanecemos Katia, Maurício e eu. 

     Hoje ficamos em Puerto Natales pra visitar o Parque Torres del Paine, o que fizemos durante o dia inteiro numa excursão dessas típicas, de van. O parque fica a 120 km da cidade, por uma estrada de rípio atualmente cheia de obras, desvios e trechos péssimos.

     Fez muito frio o dia inteiro, e a chuva ficou indo e vindo o tempo todo. Chegou até a cair um pouco de granizo. O parque realmente é muito bonito. Parece um pouco com a região de Agulhas Negras, só que em proporções macro: muito mais alto, muito maior, além dos vários lagos, de diversas e bonitas cores. 

     É um paraíso para os trekkers - ótimo lugar para passar uns dias caminhando e "esquecer do mundo". O único problema, digamos assim, são os preços - abusivos. Uma espécie de parque de caminhada de luxo aquilo lá. Um negócio meio estranho. Alguém aí conhece algum lugar pra andar por pelo menos uma semana sem encontrar ninguém, nem pagar nada? E que seja bonito, logicamente. 

     Amanhã retornaremos de novo à Argentina e vamos a El Calafate, se não virarmos picolé no caminho. 








Visitando o Parque Nacional Torres del Paine






"Torres del Paine" do jeito que costuma ser: fechado





Rio no Parque Torres del Paine







Lhama no Parque Torres del Paine





El Calafate, Argentina, 7 Fev, dia 25

     O encanto está no sujeito ou no objeto? De repente, numa curva, no alto de uma subida, debaixo de um céu azul e de um frio inquietante, descortinou-se uma das paisagens mais belas que já vi. Um horizonte infinito, montanhas ao fundo, um vale belíssimo. 

     Dia de imagens deslumbrantes hoje, e muito frio. De manhã um termômetro que estava por perto marcava zero grau. Viemos bem de Puerto Natales até aqui. À tarde fomos ao Glaciar Perito Moreno: um hipnotizante glaciar de 50 metros de altura e 14 km de extensão, com diversos tons de azul. O caminho pra lá também é absolutamente fantástico. Acho que esse foi o dia mais bonito da viagem. 

     Agora há pouco, voltando pra cidade, aconteceu um daqueles momentos "mágicos": luz de fim de tarde, estrada vazia, moto sem a bagagem, momentaneamente sozinho, visual apaixonante - muito especial.

     Amanha é dia de, de certa forma, começar mesmo a voltar: o objetivo é andar. 

   Hoje, como não choveu, o frio ficou num patamar negociável. O nosso amigo vento pintou de novo (em alguns trechos), levando-nos de novo aos trinta graus de inclinação. 

   El Calafate também é uma cidadezinha bem legal.

P.S. 1: antes de ontem cruzamos com um japonês numa BMW 650 Dakar, em cujo alforje tinha um adesivo com os dizeres: "Eu cruzei o círculo polar ártico". Em rápida conversa me disse que está viajando há nove meses, vindo atualmente do Canadá. A propósito, hoje cruzamos com quatro motociclistas canadenses, todos em BMW GS. Aliás, correção: dois desses quatro são aqueles que encontramos há umas duas semanas lá naquele deserto perto de Córdoba. 

P.S. 2: na penúltima mensagem fiz a antítese de Ushuaia. Creio que devo fazer a síntese: a viagem até lá vale muito pela paisagem. É uma região muito bonita. E, vá lá, a ideia de ir até a pontinha do continente, até a estrada acabar, tem lá o seu valor, o seu charme... Feito.







O belíssimo e hipnótico Glaciar Perito Moreno, em El Calafate, Argentina




























O belo visual num ponto da estrada em algum lugar da Patagônia




















A Tiger sob um céu artisticamente disposto


































Colonia, Uruguai, 10  Fev, dias 26 a 28

     Proa norte, a 6000 rotações por minuto, todas as antenas ligadas, paisagens passando rápido pelas "janelas" da minha máquina de viajar, o tempo se transformando em distância. Dias longos na estrada e certas condições não muito favoráveis me impediram de atualizar o diário da viagem nos últimos dias. Quantos dias faz que não escrevo? Bem, acho que desde El Calafate... 

     Na quinta, dia 8, colocamos as motos pra andar de verdade e fomos de El Calafate a Rio Gallegos, e de lá a Comodoro Rivadavia, num total de mais de 1000 km. Frio, vento e a vastidão infinita e linda da Patagônia. 

     Ontem, dia 9, "desliguei-me" do grupo e segui meu caminho sozinho. A Katia e o Maurício estavam planejando ir a Punto Tombo, ver colônias de pinguins e lobos marinhos. Pra mim não interessava, então resolvi fazer o que estava querendo a algum tempo: viajar solo. 

     Saí de Comodoro e fui até Bahia Blanca, rodando 1100 km. Nesse dia o "encanto" da Patagônia se desfez: as paisagens começaram a ficar, digamos, mais convencionais, as estradas mais movimentadas, o clima esquentou definitivamente, os ventos absurdos se foram, o horizonte foi se perdendo entre pequenos morros, cercas, postes e construções esporádicas. Até os carros e o comportamento das pessoas foi se modificando - lá pro extremo sul as pessoas piscam os faróis, acenam com a mão, manifestam-se quando vêem a moto; mais pro norte parece que tudo vai ficando indiferente... 

     Hoje, 10 Fev, saí de Bahia Blanca e fui a Buenos Aires, onde cheguei às 16:00h. De lá embarquei no "buquebus", embarcação que faz a travessia pelo estuário do Rio da Prata, e cheguei a Colonia, no Uruguai. 

     Mas deixe-me lhes contar uma história interessante: na quinta-feira, 8 Fev, conheci um cara chamado "Ron". Aqueles dois canadenses lá do começo da história estavam, nesse dia, por acaso, fazendo a mesma "pernada" que nós (de El Calafate a Comodoro Rivadavia). E como por essas bandas tem um posto de gasolina a cada 250 km (em média), não tem jeito, a gente acaba parando e se encontrando nos mesmos postos. 

     Junto com eles, temporariamente, estava o Ron, americano, pilotando uma BMW 1150 GS Adventure (pra quem não conhece, é uma estupidez de moto! A máquina de viajar "em pessoa"). Na terceira vez que nos encontramos, "já íntimos", perguntei ao Ron a sua idade (curiosidade motivada por seu aspecto já maduro, para quem eu estimaria uns 60 anos). "Setenta e três na semana que vem" - disse-me ele, muito simpático, naquele inglês típico, e deu uma risadinha marota que disse tudo! 

     Estava em seu 88º dia de viagem, sozinho, desde Fenix, nos Estados Unidos, e estava querendo saber se era melhor subir o Rio Amazonas ou o Madeira, quando estivesse por aquelas bandas. A moto dele estava com mais de 70 mil milhas rodadas só com ele. 

     Me contou ainda da travessia do Panamá para a Venezuela com a moto no convés de um veleiro de 44 pés, durante uma semana. "Boa comida a bordo" - disse. "A viagem foi excelente". Inclusive me passou o e-mail e o nome do capitão do barco, para caso algum dia, "numa emergência", venha a precisar. 

     Ver aquele camarada montar naquela moto monstruosa e pegar a estrada tranquilo, sabendo o pouco que soube dele, foi uma lição de vida. Quanto vale isso? 

     Outra história de viajantes do caminho: agora há pouco, lá no porto de Buenos Aires, encontrei dois motociclistas brasileiros: Zezé e Chico, respectivamente 56 e 21 anos de idade, pai e filho! De Ponte Nove, Minas Gerais, com o delicioso e inconfundível sotaque autenticamente mineiro, pilotando uma XT 600 e uma XT 660, alternadamente, segundo me contaram. 

     Também estão voltando pra casa. Fizeram um percurso semelhante ao nosso, sem a parte ao sul de Bariloche. Bacana o estilo deles: calça jeans, camiseta, uma jaqueta de couro, capa de chuva, um baú no bagageiro e "vão bora"! Quase um disparate diante de gente que planeja esse tipo de viagem durante anos e nunca parte, que acha que tem que ter equipamentos de ponta e de marca, e coisa e tal. Sem contar o fato de serem pai e filho, o que, por si só, já é um tremendo "luxo". 

     Estava pensando que o encanto estaria não no sujeito nem no objeto, mas na relação entre eles. Mas que, de alguma forma, o sujeito seria o "iniciador" dessa relação. Na verdade, estive pensando muito e profundamente sobre isso. Mas agora há pouco, lendo os e-mails, o Silva Pinto (com o perdão da intimidade) foi soberbo: "o encanto está no encanto"!! E eu pensando nisso há dias, não havia pensado nessa "possibilidade" (risos) .

     Viajar sozinho é outra história, outra energia, outro ambiente mental, outro ritmo. É quase hipnótico. Junto com a atual fase da viagem, vai formando uma sensação de força indescritível. 

     Apenas um dia de cada vez, o melhor a cada momento. 







Ron, o americano de 73 anos de idade em viagem solo desde os Estados Unidos
com sua BMW 1150 GS Adventure





O americano e os dois canadenses pensando na rota a seguir, 
em um dos postos em que paramos






Rio da Prata, saída de Buenos Aires





O "buquebus", embarcação que faz a travessia do Estuário do Rio da Prata, 
entre Buenos Aires e Colônia, no Uruguai






Aguardando o embarque no "buquebus", em Buenos Aires







Punta del Este, Uruguai








Zezé e Chico, pai e filho de Minas Gerais, 
em viagem de moto por Argentina e Chile







Joinville, BRASIL!! 12 Fev, dias 29 e 30

     Bom voltar ao Brasil!! Bom poder falar em português com o frentista do posto, encontrar essas banquinhas vendendo frutas regionais na beira da estrada, sentir o jeito de ser da nossa terra. 

     Ontem, 11 Fev, saí de Colônia, passei por Montevideo, Punta del Este, atravessei a fronteira por Chuí e fui parar em Pelotas. Hoje vim de Pelotas a Joinville. Fiz todo o percurso de ontem com os companheiros de estrada ocasionais Zezé e Chico. Encontramo-nos na garagem do hotel à hora da saída, sem marcar nada, e como estávamos indo pra mesma direção, fomos juntos. 

     Os dois são muito legais, andam bem pras motos não tão grandes, e é bom ter alguém com quem trocar uma ideia nas paradas. Hoje ainda saímos juntos de Pelotas, novamente por coincidência, mas no caminho achamos melhor cada um seguir seu ritmo. A tocada da TIGER é naturalmente um pouco mais veloz. 

     Hoje me senti num rally no trecho da BR 101 entre Osório e Florianópolis: tá uma bagunça generalizada, profunda e irrestrita aquela região! Juntaram tudo o que tem de encrenca e colocaram naquele trecho: buraco, defeito na pista, ondulações diversas, desvios pra todos os lados, caminhões aos montes, um caos! Levei quase quatro horas pra percorrer 250 km, e justo no começo da tarde, hora em que estou em maior baixa no meu nível de atenção. Armadilhas pra todos os lados e eu meio mole em cima da moto. Mas mesmo assim deu pra me safar bem. 

     O que acontece também é impaciência com a lentidão, o tráfego excessivo, a bagunça que estava aquele negócio! De longe, o pior trecho de estrada de toda a viagem. E chove nessa terra! 

     Amanhã prossigo na "missão". Muitas reflexões, insights, ideias. Interessante esse negócio de partilhar o dia-a-dia da viagem com os amigos via internet. Uma experiência nova pra mim. O que há em torno disso? Inicialmente fiquei um pouco preocupado com a auto-exposição e com a possibilidade desse negócio tender a virar uma certa auto-propaganda. Será que consegui me safar do segundo perigo? Será que foi uma boa ideia? 









Trocando o óleo novamente em Joinville-SC







Araras-SP, 13 Fev, dia 31

     Esta viagem não teria acontecido sem o apoio fundamental da Mari. Mais do que apoio, incentivo. Mais do que incentivo, ajuda! E talvez ainda mais do que ajuda, abnegação. A ela todo o meu reconhecimento e admiração por tudo que fez e continua fazendo. Fantástico! A parte mais difícil da viagem, vou confessar-lhes, não foi a incerteza do caminho, os riscos, o frio ou o vento. Foi ter que ficar longe dos amores da minha vida, Mari e Thaís, por "tanto" tempo. E talvez ainda mais do que ficar longe, a decisão de ficar longe, a opção pela distância. Pode ser que seja mais fácil para outras pessoas, não foi pra mim, neste tempo. Mas foi feito. Sabedor de que nada nesta vida é absoluto, encarei a ausência como mais um exercício. 

     Acho que vou demorar um tempo pra "digerir" a viagem. Acho que durante algum tempo vou ter insights e reflexões ligadas a este tempo. Durante muitos anos sonhei e imaginei esta viagem. Era uma dessas coisas que a gente diz: "um dia vou fazer isso". 

     Quando comecei a pensar sério no planejamento confesso que cheguei a sentir uma certa lástima por transformar "sonho" em realidade. Tão bom sonhar... mas não creio que os sonhos existam para serem venerados como tal, se não para "um dia" virarem realidade. 

     Não foi fácil partir. Por diversos motivos, como sempre. Quase que a viagem não sai. Para terem uma ideia havia um planejamento inicial de partida no dia 18 de novembro do ano passado, que foi cancelado, ou adiado, uns quinze dias antes. 

     Comentei numa das primeiras mensagens sobre a escolha certa da TIGER pra viagem. Realmente foi, mas não comentei que antes disso, em junho de 2006, cheguei a adquirir uma outra moto pensando nessa viagem - uma XT 660 R, que foi completamente equipada e preparada, e que decidi que não seria "a moto" mais ou menos na ocasião que adiei aquela partida de 18 de novembro. 

     A TIGER foi comprada, coincidentemente, no dia 18 de novembro, e antes de partir pra viagem tinha nada mais do que 3400 km rodados, dos quais apenas 400 km comigo. Estava nova em folha, e dava pena passar com ela numa pocinha de água qualquer, tão bonita estava. 

     Esta questão, de colocar uma máquina dessas pra rodar mais de 15 mil km assim, em um mês, nas mais adversas condições, também exigiu uma certa firmeza. Enfim... 

     O que a gente pensa quando se joga nessas coisas, quando se está lá, no "coração" da viagem, é: "por que não vim antes?" E horizontes e idéias se abrem. Não dá pra ser o mesmo depois de uma "brincadeira" dessas. 

     Amanhã é dia de chegar. A doce hora de chegar. Mas é lógico que, como disse ontem, só "acaba quando termina". 

     A propósito, hoje vim de Joinville a Araras, interior de SP. Pilotagem sem problemas, com bom rendimento e o pôr do sol mais bonito de todos esses dias, principalmente depois de chuvas esparsas ao longo do dia. 

     A TIGER definitivamente é espetacular! Ainda que cansado, já com mais de 15 mil km rodados, pilotá-lá continua sendo fantástico! - o verdadeiro prazer de ter nas mãos um equipamento excelente. Bem, é isso. 




Brasília, 14 Fev, dia 32

     Em casa.




         "A gente viaja a lugares distantes, “inventa” história, vê coisas maravilhosas, brinca
de ‘super-herói’, mas certos valores nos cativam de forma arrebatadora, definitiva.
         Partir para voltar.
         Nada mais doce do que voltar ao lar de uma longa jornada."
(trecho do álbum de fotos da viagem)







Chegando em casa






Alegria! Alegria!







Satisfação sem tamanho um abraço desses






De volta ao lar!




Faixa que a Mari mandou fazer pra chegada






Odômetro de chegada (a saída foi com 3400 km)






Visita dos queridos amigos Silva Pinto e Gilce, logo após a chegada






Belo momento






Dando um trato na máquina, no dia seguinte à chegada








ALGUMAS REFLEXÕES
[escrito poucas semanas após o final da viagem]


Sobre a “idéia”

         As idéias em si têm a sua força, a sua magia. Aliás, acho que grande parte de qualquer empreendimento está na sua concepção, nessa mística que envolve esse mundo imaginário de sonhos e fantasias.
         Acho que o “tema” da viagem realizou-se por completo: um conjunto de elementos composto por distância, beleza, amplidão, saudade, solidão, liberdade, natureza, risco, incerteza, insegurança, desafio, superação, máquina, velocidade.
         Interessante também lidar intimamente com a transformação dessa ideia na mais pura e dura realidade: no dia-a-dia a consciência e os sentimentos oscilam constantemente entre essa experiência alucinante de estar pilotando uma super máquina num lugar tão distante e inóspito e os “dados do problema” – nível de segurança, próximo abastecimento, condições climáticas (vento, temperatura, chuva), conservação do equipamento, controle dos “níveis vitais” da máquina, etc.
         A magia está em não deixar que a magia (nem o sujeito) se perca nos “dados do problema”.



Sobre o risco

         Um tema que acho particularmente interessante, porque envolve conceitos e áreas que por si só são “suficientemente imensuráveis”: vida, Deus, auto-imagem, crenças, medos, objetivos...
         E é um tema que mexe com todo mundo.  Várias pessoas expressaram sua preocupação com a segurança numa viagem desse tamanho e desse grau de incerteza e desconhecimento dos caminhos a percorrer. É uma preocupação pertinente, logicamente, e que ocupou boa parte das minhas próprias reflexões a respeito do projeto. Mas em algum ponto as minhas reflexões divergem de uma opinião, digamos, razoável (sim, é extremamente razoável avaliar e classificar uma viagem como essa como de alto risco.)
         Mas razoável até que ponto?? Esta é a questão. A vida é um negócio muito louco. A sensação de segurança é um negócio muito louco. Se analisarmos a viagem não como uma viagem de 16000 km, mas como várias etapas diárias de 300, 700 ou 1000 km, muda alguma coisa? E se cada etapa diária dessas for encarada não como uma etapa diária, mas como várias etapas menores de 200, 250 km entre cada parada pra tomar uma água mineral ou abastecer, muda mais alguma coisa?...
         Tenho a sensação muito nítida de que o sentimento de segurança, e provavelmente a segurança em si, está intimamente ligada ao “estado mental” do momento. Como sempre, e como tudo. Cabeça.
         É lógico que infelizmente sempre existirão condições e fatos superiores e absurdamente indiferentes a toda e qualquer magia e “estado mental”, mas… nesses casos, paciência. Ou resignação.
         Até concordo que pilotar moto é um negócio um tanto arriscado. Mas só de um certo e determinado ponto de vista. E, nesse caso felizmente, sempre existem outros e variados pontos de vista, que criam outras e variadas realidades.
         “Noves fora”, o fato é que o nível de atenção de uma viagem como essa é absurdo. Na realidade, atenção e tensão. Pilotar em condições adversas, desconhecidas, e distantes, exige muita concentração, porque evidentemente a margem de erro é praticamente nula – não se pode errar. E isso, antes de ser um problema, é um tremendo estímulo e um grande “barato”. Aliás, esse é um dos “segredos” do envolvimento e do prazer de atividades ditas radicais – concentração total naquele ponto, naquela tarefa. O mundo” se resume naquilo.
         E, afinal de contas, é uma satisfação única ver algo aparentemente tão improvável dar certo.



Sobre as tensões invisíveis

         Gosto de tentar prestar atenção ao não óbvio. Às vezes prestamos toda nossa atenção e capacidade ao mais provável, ao mais evidente, e somos quase ridiculamente surpreendidos pelos flancos e retaguardas de nossas preocupações focadas em excesso na “frente principal”.
         Em situações como a dessa viagem, grande parte da tensão e da preocupação se deve a condições muito sutis e ao mesmo tempo muito relevantes: estar distante do seu “habitat” natural é uma delas. Longe de pessoas conhecidas, que poderiam ajudar em caso de necessidade; longe da sua rede de assistência médica; longe do seu idioma, do seu país. E num contexto muito especial para que algo dê errado.
Em outros termos: por exemplo, um defeito mecânico qualquer na moto num fim de mundo desses é muito mais problemático do que na estrada ali do lado (o que, dependendo de onde for, também pode ser bem desagradável de lidar). Um tombo, um ferimento, uma indisponibilidade física qualquer também toma proporções um tanto complicadas. Essas são condições sutis que pesam no momento da execução. A gente se pega pensando em certas situações (pensando quase sem querer, é verdade, porque não é um exercício divertido de se fazer): “e se tal coisa acontecesse aqui?...” Se tal coisa acontecesse ali ia ser um perrengue...
         (No trekking no Himalaia, Nepal, em 96, havia a mesma questão: a dez dias de caminhada do heliponto mais próximo, e a três semanas da estrada mais próxima, simplesmente torcer um pé poderia significar um risco à vida, e, quando pouco, um problemão... pressões sutis...).



Sobre a máquina

         A resistência e a confiabilidade mecânica é, nesse mundo de motos para grandes viagens, não sem razão, uma característica altamente desejável, procurada, averiguada. E é uma matéria muito interessante. Pra começo de conversa, e, se quiséssemos, pra terminar a conversa também, cabe considerar que uma moto vai ser sempre uma máquina com vários componentes mecânicos colocados de forma que funcionem como um organismo. Ou seja...
         Mas é lógico que existem questões que devem ser levadas em consideração... os “tradicionalistas” costumam refutar as motos modernas, com injeção eletrônica, sob a alegação de que elas se tornam, digamos, “imexíveis”. É verdade. Essas motos modernas são fantásticas. Enquanto funcionam. Em caso de pane... não adianta parar na esquina e pedir pro borracheiro do posto dar uma olhadinha... tem-se é que abrir o mapa e procurar qual a capital mais próxima.
         É uma questão interessante porque envolve nosso relacionamento com a tecnologia, com o que está além da nossa compreensão, além do nosso controle.
         O fato é que é um processo praticamente irreversível. A tecnologia é fantástica, mas realmente nos afasta do “mecanismo” das coisas. É, mal comparando, como o computador versus a máquina de escrever. Nesta era possível meter o dedo lá nas engrenagens e resolver grande parte dos eventuais problemas. Já nesta máquina informatizada moderna... se esse troço travar só resta tirar da tomada e levar para um “especialista” dar um jeito.
         Sou um apaixonado por coisas que funcionam bem, sem embustes, sem marketing. Gosto também de coisas modernas, e, de forma geral, acho que lido bem com essa “zona de sombra” da tecnologia. Não sei se é inocência, mas confio no trabalho desses caras que passam meses e anos em cima de um projeto, buscando soluções e saídas pras questões mecânicas. E, nesse caso, vale o quesito “nome”, marca. Já que, de certa forma, é um jogo de confiança, é melhor confiar em quem já fez por merecer.
         E a Tiger, conforme disse várias vezes nas mensagens diárias, deu um show! Simplesmente impecável. Ou melhor, quase. O único quesito que deixa a desejar na Triumph é um aspecto extra máquina, mas que conta: rede de assistência técnica. Precária. Menos mal que não precisei.



Sobre planejamento e preparação

         Outro assunto muito bacana. O planejamento de uma viagem como essa equivale quase a uma outra viagem no que diz respeito ao trabalho, tempo investido, e satisfação em fazer. Mas há que se tomar certo cuidado com essa fase.
         Tem gente fissurada em planejamento. Que se preocupa em prever cada posto de abastecimento, detalhes das cidades, notícias das estradas...  E acaba transformando esse trabalho num círculo vicioso e interminável (tem gente que me perguntou se eu havia percorrido as estradas do percurso no Google Earth... sei lá, pode até ser interessante, mas pareceu uma preocupação um tanto exagerada...).
         Gosto de planejar, mas não em detalhes. Acho que os detalhes vão aparecendo e acontecendo no caminho. E é bom deixar espaço pra isso. É muito mais fácil e eficiente comprar um bom mapa de estradas da Argentina na Argentina do que encomendar pela internet ou procurar feito um doido em livrarias, o que, além de tudo, normalmente não dá bons resultados.
         Acho que o nosso planejamento foi bem feito, e em boa medida. Tínhamos o roteiro dia-a-dia, e o seguimos quase exatamente ao previsto, com exceção dos seis últimos dias, em que viajei sozinho e adiantei o planejado.
         Mas existem outras formas de planejar, tão interessantes e eficientes quanto essa. Quando encontramos aqueles canadenses lá no deserto perto de Córdoba, na Argentina, achei legal a conversa que tivemos sobre o planejamento da viagem deles: ao perguntarmos qual o roteiro deles pelo Brasil, disseram: “Bem, não sabemos ainda. O que vocês sugerem?”. Abriram o mapa do Brasil sobre a mesa e começamos a lançar idéias. Pelo que percebi eles tinham uma espécie de “check points” – locais onde gostariam de estar a cada mês, ou quinze dias. Nos intervalos, o que rolasse. Lógico que essa proposta demanda disponibilidade de tempo e disposição pessoal também, e uma série de outros atributos... É outra história de viagem.
         Enfim, planejar sim, enrolar-se com o planejamento não.
         Praticamente o mesmo se aplica a preparação de material e equipamento. É muito detalhe. E chega uma hora que a gente se sente compelido a dar um basta, e partir como está. Guardadas as proporções de segurança, realmente é o melhor a fazer. Tenho uma desconfiança que essa preparação de material nunca vai ser perfeita. Sendo eficiente já está bom.        



Sobre viajar solo ou em grupo

         Acho que são coisas bem diferentes que, como tudo, têm vantagens e desvantagens. E, no final das contas, o que manda é a intenção do viajante, e talvez o contexto da viagem.
         Estar só em situações tão extremas é especial, não há dúvida. Mas também pode vir a se tornar monótono, dependendo de como se encara a experiência. Gosto do viés introspectivo da solidão, da oportunidade de estar em silêncio, sem ninguém pra dividir nem pra alimentar preocupações, e da chance de poder tomar decisões sem interferências nem divisões, mas acho que é uma situação que exige muito mais do viajante, em todos os aspectos.
         Curti a fase grupo da viagem, até mesmo as diferenças e dificuldades surgidas – tudo com uma certa indiferença gostosa, confesso (acho o maior barato lidar com o ser humano sem expectativa e com compreensão. De forma geral acho que somos excessivamente críticos e exigentes com relação aos outros, e ocupamo-nos pouco de nós mesmos. Inverter esse foco costuma ser muito útil.). E curti mais ainda a fase solo.



Sobre o formato on line do diário de viagem

         Partilhar as experiências da viagem com as emoções do momento, e não com o bom distanciamento do tempo – essa foi a idéia das mensagens regulares transmitidas a um grupo de amigos, que, conforme disse na primeira mensagem, de alguma forma fazem parte desse “contexto”.
         Pra mim foi uma experiência nova e interessante. Acho bacana o partilhar de experiências, sejam elas quais forem. No nosso dia-a-dia normalmente ficamos ocupados demais com os afazeres cotidianos e não costuma sobrar tempo pra isso... – mas seria interessante mesmo em situação, digamos, de CNTP...
         É um estímulo pensar no que se vai escrever, brincar com a idéia, e observar-se na tarefa. E dá uma sensação incrível de proximidade.
         Aliás, essa facilidade de comunicação da internet é, definitivamente, fantástica e revolucionária! Principalmente considerando-se que a inter-relação é um dos aspectos mais gratificantes da existência.
         Mas preocupei-me também, conforme também comentei em uma das mensagens, com os fatores “exposição” e “propaganda” da idéia... Vendo daqui, um pouco distante, acho que não houve problema com isso. Creio que não há mal em expor-se, nem tem grande relevância a preocupação com a interpretação de quem lê, desde que a intenção do escritor, do sujeito, seja pura, e boa.



Pós viagem

         ... o bacana mesmo é abrandar as rupturas de fase, quase desconsiderar as fases. E chegar e continuar a vida com a mesma naturalidade com que se busca partir...
         Aliás, naturalidade é uma qualidade bem legal pra “exercitar”...

         (Tem gente que não vê essa “certa indiferença” com bons olhos... eu a acho divina.).








** Dados de distâncias e deslocamentos realizados



Mês
Dia do mês
Dia da semana
Dia da viagem
Agenda
País
Km do dia
Km total
J A N E I R O
14
Dom
1
Brasília > Campinas


Brasil
950

15
Seg
2
Campinas > Curitiba
521
1471
16
Ter
3
[ Curitiba ]
-

17
Qua
4
[ Curitiba > Caiobá ]
-

18
Qui
5
[ Caiobá > Curitiba ]
-

19
Sex
6
Curitiba > Foz do Iguaçu
650
2121
20
Sab
7
Foz do Iguaçu > Reconquista

Argentina

850
2971
21
Dom
8
Reconquista > Córdoba
665
3636
22
Seg
9
Córdoba > Mendoza
670
4306
23
Ter
10
Mendoza
-

24
Qua
11
Mendoza > Quillotas


Chile

378
4684
25
Qui
12
Quillotas > Chillán
565
5249
26
Sex
13
Chillán > Villarrica
360
5609
27
Sab
14
Villarrica > Puerto Varas
401
6010
28
Dom
15
Puerto Varas > Bariloche

Argentina

371
6381
29
Seg
16
Bariloche > Sarmiento
690
7071
30
Ter
17
Sarmiento > Puerto San Julian
450
7521
31
Qua
18
Puerto San Julian > Rio Gallegos
364
7885
F E V E R E I R O
1º.
Qui
19
Rio Gallegos > Punta Delgada
Chile
140
8025
2
Sex
20
Punta Delgada > Ushuaia

Argentina
453
8478
3
Sab
21
Ushuaia
-

4
Dom
22
Ushuaia
68
8546
5
Seg
23
Ushuaia > Puerto Natales
Chile
785
9331
6
Ter
24
Puerto Natales
-

7
Qua
25
Puerto Natales > El Calafate

Argentina
516
9847
8
Qui
26
El Calafate > Comodoro Rivadavia
1070
10917
9
Sex
27
Comodoro Rivadavia > Bahia Blanca
1111
12028
10
Sab
28
Bahia Blanca > Colônia Sacramento
Uruguai
703
12731
11
Dom
29
Colônia Sacramento > Pelotas
Uruguai/ Brasil
805
13536
12
Seg
30
Pelotas > Joinville

Brasil
860
14396
13
Ter
31
Joinville > Araras
668
15064
14
Qua
32
Araras > Brasília
827
15891




Odômetro de saída
3410 km
Odômetro em Ushuaia
                     12159 km (8749 km)
Odômetro de chegada
                     19560 km (7401 km)
TOTAL  RODADO
16150 km








“Ser o que somos,
e vir a ser o que somos capazes de ser,
é o único objetivo da vida.”          (Spinoza)









Gratidão.



Força Sempre









Um comentário:

  1. Estava em casa agora a tarde buscando algo bacana para ler... Ligo meu celular e lá está a postagem do amigo Assis. Sempre é um momento especial ler suas narrativas de aventuras realizadas por ele e seus companheiros. Essa não foi diferente... Coloquei um "Acoustic Blues para tocar e subi a bordo de sua viagem de 16.000 km ao Ushuaia em 2007. Mais um texto divinamente escrito por esse grande amigo... Agora tenho ainda mais vontade de ir pessoalmente até o fim do mundo. Parabéns Assis e obrigado por nos brindar com mais essa historia de parte de sua vida. Grande abraço. Lincoln

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