Tiger 900 Rally Pro

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segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Viagem de bicicleta “Circuito das Araucárias” e arredores (475 Km) – SC - 18 a 23 Set 2014






Circuito das Araucárias de Cicloturismo



         E se, um dia, jogasse “uma escova de dente e um par de chinelos” numa mochilinha e saísse pra dar uma volta de bicicleta de alguns dias pelas cidades vizinhas, assim como quem não quer nada?...

         E se existisse um roteiro só por estradinhas de terra do interior, passando por aqueles cantinhos esquecidos do mundo, com muito verde e pouco carro em volta?







         Na quinta-feira, 18 de setembro, de manhã cedo, a bicicleta e a bagagem estavam aparentemente prontas pra dar essa volta. Havia descoberto, há algum tempo, que o tal roteiro que imaginara existe, perto de casa, e é chamado Circuito das Araucárias de Cicloturismo – um percurso de uns duzentos e cinquenta quilômetros por estradas de terra interligando as simpáticas cidades do interior de Santa Catarina: São Bento do Sul, Corupá, Campo Alegre e Rio Negrinho.

         Mas essas brincadeiras “outdoor” requerem, de preferência, uma colaboraçãozinha do tempo pra ficarem mais divertidas. E apesar de estarmos vindo de uma empolgante sequência de dias secos e agradáveis, havia previsão de chuva ao longo do dia. Ok, mas não estava chovendo naquele momento, e então juntei a minha trouxinha, montei no meu cavalinho e parti (com o coração meio apertado, típico de partidas, é verdade, mas fazer o que?).








         O tal Circuito das Araucárias começa mesmo em São Bento do Sul, e de Curitiba até lá são uns cento e vinte quilômetros por estradas asfaltadas e movimentadas. Seria mais coerente pegar um ônibus pra São Bento e começar a pedalar a partir de lá, já que a ideia era percorrer um trajeto fora do tumulto de cidades e grandes estradas. Mas na véspera da partida me surgiu a tola ideia de “por que não ir pedalando e, dessa forma, já ir entrando no clima?”...








         Assim me vi nos primeiros 45 quilômetros seguindo pelo acostamento da BR 101, na direção sul, com a minha bicicletinha naquela promissora manhã. E apesar do barulho infernal de carros e caminhões passando a toda velocidade o tempo todo, esse trecho rendeu bem e não houve problemas.

         Saí então da 101 e segui por uma estrada secundária em direção a Tijucas do Sul. Estrada sem acostamento, com pouco movimento, relevo amigável e paisagem agradável.

         Chegando a Agudos do Sul, já pelo meio dia, a estradinha pela qual vinha desembocou numa outra que, logo vi, iria me tirar o sossego. O movimento de caminhões aumentou vertiginosamente, a estrada era ainda mais estreita que a anterior e só o que havia a fazer era pedalar com o máximo cuidado e contar com a ajuda dos meus anjinhos da guarda pra me safar daquela. Disputar espaço com caminhões enormes, carregados e apressados numa estrada apertada definitivamente não é um bom programa pra se fazer em cima de uma bicicleta. Foram cerca de 35 quilômetros tensos e desagradáveis.

         Como nada é tão ruim que não possa piorar, mais ou menos na metade desse trecho o céu ficou carregado e a temperatura despencou, e começou a chover. Pronto... Do perrengue ao inferno em poucos minutos... Segui pedalandinho até São Bento, que a essa altura já estava logo ali, e, lá chegando, dei uma passada na Secretaria de Turismo pra me informar melhor sobre o Circuito e tratei de achar logo um hotel pra sair daquela friaca.






         À noite tive a grata satisfação de ser convidado à casa de um velho amigo, o Campestrini, com quem trabalhei no meu primeiro ano como Oficial, na pré-história do ano de 1992, no Pelotão de Morteiros Pesados do 62º Batalhão de Infantaria, em Joinville. Conheci também um amigo dele, o Sandro, ciclista experiente, que me passou importantes dicas sobre o percurso e a região. Bom papo, uma pizza caseira e aquela chuvinha caindo lá fora embalaram minhas expectativas e meus receios naquela noite, na companhia de amigos.

         O dia seguinte, que seria pra realmente começar o mais divertido da brincadeira, amanheceu chuvoso e cinzento. Não era, de forma alguma, o tempo ideal pra uma pedalada por um desconhecido percurso pelo interior... Desci pra tomar o café da manhã já pensando em tirar o dia de “férias” e ficar me divertindo com um bom livro espiando a chuva caindo pela janela do quarto do hotel. Mas pouco depois fui invadido por aquela sensação de “seja o que Deus quiser”, juntei minhas coisas e me joguei na estrada.

         Nada como começar logo essas coisas... Quebrar o gelo, se molhar um pouco, se sujar um pouco, e mudar da preocupação para a ocupação. Além disso, a chuva estava com jeito de que iria dar uma paradinha. Pouco depois de entrar na estrada de terra os alforjes laterais começaram a bater demais no bagageiro, dando claros sinais de que o esquema de encaixe não estava funcionando bem. Pouco depois levo um susto com a roda traseira travada e um quase tombo. Um dos tais alforjes havia entrado por entre os raios da roda. Fiz um ajuste meia boca e toquei em frente, mas com a orelha em pé com a armadilha montada ali atrás.






À minha volta a paisagem era magnífica. Mata fechada, estradinhas estreitas e muito íngremes (descendo), lama, pedra, e nem uma viva alma por perto – acho que pedalei umas duas horas sem encontrar absolutamente ninguém. Fui sendo tomado por uma sensação de desolação, de solidão e de fragilidade, mas também de desafio, de exuberância e de introspecção, que me colocou, acho, na sintonia certa.













         E viajei por aquele ambiente único em que estava e pela velha questão “o que é que estou fazendo aqui?”... E embora essa seja uma questão que mereça um longo aprofundamento, vale dizer, apenas como introdução, que essas situações têm o incrível poder de nos tirar do “nosso mundo”. De repente somos invadidos por aquele um tanto quanto angustiante sentimento de que nada é exatamente necessário, nada é garantido, nada é objetivo, nada é permanente, e nós mesmos quase não somos nada... Caramba! Isso é como uma espécie de “vertigem existencial”! Uma sensação súbita e intensa de sentir a própria vida desencaixada dos padrões cotidianos, regulares e enganosos de segurança e coerência. Melhor se concentrar na estrada, na planilha e no objetivo do dia, e deixar esses devaneios meio de lado.













         Cheguei à cidadezinha de Corupá no meio da tarde com uma ideia na cabeça: reformular aquele meu esquema de alforjes e bagagem, que não estava me agradando e que estava vendo que seria um estorvo ao longo dos próximos dias. Achei uma pousadinha, dispus toda a minha tralha sobre a cama do quarto e comecei a separar o essencial do resto. Juntei tudo que não era estritamente necessário (um par de tênis, pilhas extras, toalha de banho, uma camiseta, uma garrafinha, repelente, etc.), coloquei nos dois alforjes laterais e fui procurar uma agência dos correios, pra mandar de volta pra casa. 









           Entrei na agência, casualmente, às quatro e vinte da tarde, sexta-feira. O horário de atendimento ia até às quatro e meia, e sábado não abria. Feito o despacho das duas bolsas, fiquei mais aliviado, pois apesar de estar privado de alguns itens de conforto e coisinhas complementares, sabia que apenas com a bolsa pequena que ia em cima do bagageiro tudo melhoraria na bicicleta. É a velha sabedoria: “menos é mais”!




















         O dia seguinte era o mais “amedrontador” do percurso, em função do grande desnível (mais de 1500 metros acumulados) e duas íngremes serras pra subir. O gráfico de altimetria do dia realmente não era lá muito auspicioso. Em compensação parou de chover e o dia amanheceu com uma cara boa.












         O percurso seguia por simpáticas estradinhas de terra, passando por sítios, madeireiras, plantações de banana, rios e montanhas ao longe. Logo começou a primeira pirambeira. Não era mesmo uma subida fácil. A frente da bicicleta querendo empinar, a traseira querendo perder a tração, o coração a milhão, suando feito uma bica d’água, a relação de marcha mais leve possível e uma paciência monástica foram fazendo os metros e quilômetros ficarem para trás.














         Ninguém por perto, um silêncio comovente em volta, apenas pássaros cantando, um horizonte amplo e aberto... Era isso!












         No começo da tarde o céu voltou a ficar cinzento e ameaçador, mas não chegou a chover. Toquei o solo em Campo Alegre contente da vida por ter passado pela temível e longa ascensão. E me pus a pensar que muitos dos nossos temores (e desgaste) se devem justamente às nossas (desnecessárias) preocupações. Esse negócio de ficar fissurado nas previsões meteorológicas do “climatempo”, de ficar estudando a altimetria do caminho à frente, de ficar lendo os relatos e alertas dos guias e “sites” sobre o assunto... Sei lá, talvez fosse mais simples ter menos informação, preocupar-se menos e simplesmente ir tocando em frente... Quem sabe um dia chegue lá...















         Em Campo Alegre fiquei num agradável hotel no qual a moça da recepção me deu uma bela notícia: “servimos um café colonial a partir das 19 horas”. Ora, ora... Um café colonial depois de um dia como aquele era mesmo uma ótima opção pra repor as calorias perdidas (e acumular outras para os dias seguintes...).















         O Circuito das Araucárias é dividido em oito trechos e a sugestão do guia montado por iniciativa dos municípios participantes é combinar esses trechos de acordo com a disposição física e tempo disponível do ciclista, de forma a percorrê-lo da forma mais proveitosa possível. O recomendável, segundo esse manual, é dispor de seis a oito dias. Mas eu estava numa “vibe” mais de andar, e, embora sem pressa, de chegar logo. Assim previ percorrer nesse quarto dia de viagem três trechos do guia, o que somava cerca de 90 quilômetros. Em condições “normais” (como, por exemplo, num bom asfalto, com uma bicicleta de contrarrelógio sem bagagem e 120 libras nos pneus) percorrer essa distância não tem mistério. Mas ali o relevo continuava com seu sobe e desce – o total de subidas desses três trechos era de mais de 2000 metros -, a estrada, apesar de ser muito aprazível e bucólica, tinha muita pedra e buraco, e era preciso estar ligado constantemente na orientação, o que demandava paradas frequentes e muita atenção na planilha.













         De tal forma que saí pra esse dia um pouco mais cedo e num ritmo um pouco mais econômico com paradas desnecessárias. O bacana é que o dia estava especialmente bonito, com o céu finalmente azul e o sol brilhando firme. Assim fui pedalando por entre araucárias, lavouras, rios, fazendas, pousadas rurais e casas isoladas no meio do nada, e o dia e os quilômetros foram passando.


















         Afortunadamente me sentia muito bem fisicamente, e, embora naturalmente cansado, não estava incomodado por nenhuma dor nem desconforto mais sério. A bicicleta estava funcionando perfeitamente bem e a pouca bagagem que levava agora estava bem ajustada ao pequeno alforje sobre o bagageiro, de tal maneira que só me restava pedalar, contemplar a paisagem, cuidar da orientação, tirar algumas fotos e deixar o tempo passar.



















         Cheguei em Rio Negrinho às dezessete horas, no final daquela bela tarde de domingo, com as pessoas passeando na praça, aquele clima de simplicidade de cidades do interior e a alma leve por estar fazendo dar certo a brincadeira que havia planejado. Achei então uma pousada no alto de uma colina e me recolhi ao descanso. Dessa vez sem o charme de um café colonial, restou-me pedir uma pizza pra comer no quarto mesmo, mas estava “louco de bom”.




























         A última etapa do circuito era a pernada de Rio Negrinho a São Bento do Sul, prevista pra ter 60 quilômetros e ascensão total de quase 1500 metros. Ou seja, sem trégua. E o dia não estava lá muito animador: aquele céu cinza-branco, friozinho e um vento constante zunindo no ouvido. Isso tudo aliado ao cansaço acumulado fez a pedalada ficar por conta mais de andar rápido do que de curtir ou passear. Mas deu tudo certo. Às duas e meia da tarde estava de volta à praça central de São Bento do Sul, ao lado da igreja matriz, marco inicial e final do circuito.
























         Fui à Secretaria de Turismo, que ficava ali do lado, apresentar a cartilha com os carimbos pelos pontos de passagem, a fim de comprovar a realização do circuito e ganhar um certificado – formalidade que quase deixei de lado. Mas já que estava lá, resolvi participar.














         Bem, e agora? Não queria voltar pra casa pelo caminho que havia vindo, pra não ter que pedalar por aquele trecho suicida novamente. Então tinha a opção de pegar um ônibus... Mas “já que” estava ali com tudo em ordem, resolvi acrescentar uma etapa à viagem e descer pra Joinville no dia seguinte, pra curtir um dia de pedal mais livre, sem ter que ficar seguindo as cansativas planilhas do percurso, e pra curtir o belo trecho de estrada que liga essas duas cidades, com a bonita Serra Dona Francisca no caminho.

         Dei uma paradinha numa loja de conveniência de um posto de gasolina pra comer um pão de queijo, antes de procurar um hotel, e de repente vejo um cara entrando na lojinha e já acenando pra mim. Também o reconheci de imediato. Era o Hans, velho amigo da época do 62 BI, de Joinville, com quem havia inclusive dividido apartamento durante um período naquele começo da década de 90. Incrível coincidência! Incrível também como a conversa flui mesmo depois de tanto tempo sem se ver.

         Atualizado do que estava fazendo, ele então me convidou pra dormir na sua casa, o que aceitei prontamente. Aproveitando o final de tarde, fui ainda conhecer sua criação de belos cavalos Pecheron – um de seus hobbys -, em sua chácara, próximo à cidade. À noite, em sua casa, batemos um bom papo e pude conhecer também sua esposa, que me contou que seu irmão havia partido há um mês para uma viagem de carro (um Landrover Defender adaptado para motor home) para dar uma “volta ao mundo” (aliás, mais uma volta, pois eles já fizeram uma outra viagem de cerca de três anos passando por diversos países) – a história deles é contada no livro e site chamado “Mundo por Terra”. Certamente muito inspirador.

         Um encontro assim inusitado como esse com o Hans me pôs a pensar nas engrenagens que movem os acontecimentos na nossa vida. Como, depois de vinte anos, encontro um amigo assim por uma (aparentemente) completa coincidência? O que circula nesse espaço vazio que nos cerca? Como os pensamentos se formam? Por que eles seguem esse caminho, e não outros? Há alguma lógica nas decisões que tomamos? Há alguma lógica na vida?...

         No dia seguinte me despedi do simpático casal de amigos que me acolheu tão gentilmente e peguei novamente a estrada. De volta ao asfalto, voltei também ao que há de bom e de ruim nesse contexto. Um piso regular e lisinho faz a pedalada render muito mais e ser muito mais confortável, em compensação há os inevitáveis carros, caminhões, barulho e situações tensamente perigosas.














         Cheguei à Serra Dona Francisca, parei pra tirar uns retratos e me deliciei com a longa descida de mais de dez quilômetros (sete na serra propriamente dita e outros tantos na sequência). Visual bonito, curvas bem fechadas, descida bem íngreme, e depois as casinhas das localidades adjacentes, e logo estava de volta à BR 101, que em mais alguns poucos quilômetros me levou à cidade de Joinville, onde tenho antigas e boas lembranças dos belos “vinte e poucos anos”.



























         Consegui ainda encontrar (dessa vez de forma planejada) e bater mais um bom papo com outro velho amigo, o Rogério, que também conheço dos tempos em que trabalhei naquela cidade, nos anos 90.

         Encontros assim, por mais simples e rápidos que sejam, valem o dia e nos relembram a importância e o valor de uma história em comum, de uma afinidade sincera, da boa e velha amizade.

         Satisfeito então, dirigi-me à rodoviária e peguei o primeiro ônibus de volta para os meus grandes amores, levando comigo a bike e um enorme sentimento de gratidão por tudo.

         Afinal, foram 475 quilômetros pedalados, dos quais 260 em estradas de terra, e a certeza de que dar uma volta de vez em quando nos faz mais vivos e humildes, apesar (ou talvez por causa) dos inevitáveis perrengues, dúvidas e medos inerentes ao caminhar (e ao mundo).

         Que assim seja.
        


(Curitiba, Setembro de 2014)






Gratidão.




Força Sempre






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