Circuito das
Araucárias de Cicloturismo
E se, um dia, jogasse “uma escova de
dente e um par de chinelos” numa mochilinha e saísse pra dar uma volta de
bicicleta de alguns dias pelas cidades vizinhas, assim como quem não quer
nada?...
E se existisse um roteiro só por
estradinhas de terra do interior, passando por aqueles cantinhos esquecidos do
mundo, com muito verde e pouco carro em volta?
Na quinta-feira, 18 de setembro, de
manhã cedo, a bicicleta e a bagagem estavam aparentemente prontas pra dar essa
volta. Havia descoberto, há algum tempo, que o tal roteiro que imaginara
existe, perto de casa, e é chamado Circuito das Araucárias de Cicloturismo – um
percurso de uns duzentos e cinquenta quilômetros por estradas de terra
interligando as simpáticas cidades do interior de Santa Catarina: São Bento do
Sul, Corupá, Campo Alegre e Rio Negrinho.
Mas essas brincadeiras “outdoor”
requerem, de preferência, uma colaboraçãozinha do tempo pra ficarem mais
divertidas. E apesar de estarmos vindo de uma empolgante sequência de dias
secos e agradáveis, havia previsão de chuva ao longo do dia. Ok, mas não estava
chovendo naquele momento, e então juntei a minha trouxinha, montei no meu cavalinho
e parti (com o coração meio apertado, típico de partidas, é verdade, mas fazer
o que?).
O tal Circuito das Araucárias começa
mesmo em São Bento do Sul, e de Curitiba até lá são uns cento e vinte
quilômetros por estradas asfaltadas e movimentadas. Seria mais coerente pegar
um ônibus pra São Bento e começar a pedalar a partir de lá, já que a ideia era
percorrer um trajeto fora do tumulto de cidades e grandes estradas. Mas na
véspera da partida me surgiu a tola ideia de “por que não ir pedalando e, dessa
forma, já ir entrando no clima?”...
Assim me vi nos primeiros 45
quilômetros seguindo pelo acostamento da BR 101, na direção sul, com a minha
bicicletinha naquela promissora manhã. E apesar do barulho infernal de carros e
caminhões passando a toda velocidade o tempo todo, esse trecho rendeu bem e não
houve problemas.
Saí então da 101 e segui por uma
estrada secundária em direção a Tijucas do Sul. Estrada sem acostamento, com
pouco movimento, relevo amigável e paisagem agradável.
Chegando a Agudos do Sul, já pelo meio
dia, a estradinha pela qual vinha desembocou numa outra que, logo vi, iria me
tirar o sossego. O movimento de caminhões aumentou vertiginosamente, a estrada
era ainda mais estreita que a anterior e só o que havia a fazer era pedalar com
o máximo cuidado e contar com a ajuda dos meus anjinhos da guarda pra me safar
daquela. Disputar espaço com caminhões enormes, carregados e apressados numa
estrada apertada definitivamente não é um bom programa pra se fazer em cima de
uma bicicleta. Foram cerca de 35 quilômetros tensos e desagradáveis.
Como nada é tão ruim que não possa
piorar, mais ou menos na metade desse trecho o céu ficou carregado e a
temperatura despencou, e começou a chover. Pronto... Do perrengue ao inferno em
poucos minutos... Segui pedalandinho até São Bento, que a essa altura já estava
logo ali, e, lá chegando, dei uma passada na Secretaria de Turismo pra me
informar melhor sobre o Circuito e tratei de achar logo um hotel pra sair
daquela friaca.
À noite tive a grata satisfação de ser
convidado à casa de um velho amigo, o Campestrini, com quem trabalhei no meu
primeiro ano como Oficial, na pré-história do ano de 1992, no Pelotão de
Morteiros Pesados do 62º Batalhão de Infantaria, em Joinville. Conheci também
um amigo dele, o Sandro, ciclista experiente, que me passou importantes dicas
sobre o percurso e a região. Bom papo, uma pizza caseira e aquela chuvinha
caindo lá fora embalaram minhas expectativas e meus receios naquela noite, na
companhia de amigos.
O dia seguinte, que seria pra realmente
começar o mais divertido da brincadeira, amanheceu chuvoso e cinzento. Não era,
de forma alguma, o tempo ideal pra uma pedalada por um desconhecido percurso
pelo interior... Desci pra tomar o café da manhã já pensando em tirar o dia de
“férias” e ficar me divertindo com um bom livro espiando a chuva caindo pela
janela do quarto do hotel. Mas pouco depois fui invadido por aquela sensação de
“seja o que Deus quiser”, juntei minhas coisas e me joguei na estrada.
Nada como começar logo essas coisas...
Quebrar o gelo, se molhar um pouco, se sujar um pouco, e mudar da preocupação
para a ocupação. Além disso, a chuva estava com jeito de que iria dar uma
paradinha. Pouco depois de entrar na estrada de terra os alforjes laterais
começaram a bater demais no bagageiro, dando claros sinais de que o esquema de
encaixe não estava funcionando bem. Pouco depois levo um susto com a roda
traseira travada e um quase tombo. Um dos tais alforjes havia entrado por entre
os raios da roda. Fiz um ajuste meia boca e toquei em frente, mas com a orelha
em pé com a armadilha montada ali atrás.
À
minha volta a paisagem era magnífica. Mata fechada, estradinhas estreitas e
muito íngremes (descendo), lama, pedra, e nem uma viva alma por perto – acho
que pedalei umas duas horas sem encontrar absolutamente ninguém. Fui sendo
tomado por uma sensação de desolação, de solidão e de fragilidade, mas também
de desafio, de exuberância e de introspecção, que me colocou, acho, na sintonia
certa.
E viajei por aquele ambiente único em
que estava e pela velha questão “o que é que estou fazendo aqui?”... E embora
essa seja uma questão que mereça um longo aprofundamento, vale dizer, apenas
como introdução, que essas situações têm o incrível poder de nos tirar do
“nosso mundo”. De repente somos invadidos por aquele um tanto quanto angustiante
sentimento de que nada é exatamente necessário, nada é garantido, nada é
objetivo, nada é permanente, e nós mesmos quase não somos nada... Caramba! Isso
é como uma espécie de “vertigem existencial”! Uma sensação súbita e intensa de
sentir a própria vida desencaixada dos padrões cotidianos, regulares e
enganosos de segurança e coerência. Melhor se concentrar na estrada, na
planilha e no objetivo do dia, e deixar esses devaneios meio de lado.
Cheguei à cidadezinha de Corupá no meio
da tarde com uma ideia na cabeça: reformular aquele meu esquema de alforjes e
bagagem, que não estava me agradando e que estava vendo que seria um estorvo ao
longo dos próximos dias. Achei uma pousadinha, dispus toda a minha tralha sobre
a cama do quarto e comecei a separar o essencial do resto. Juntei tudo que não
era estritamente necessário (um par de tênis, pilhas extras, toalha de banho,
uma camiseta, uma garrafinha, repelente, etc.), coloquei nos dois alforjes
laterais e fui procurar uma agência dos correios, pra mandar de volta pra casa.
Entrei na agência, casualmente, às quatro e vinte da tarde, sexta-feira. O
horário de atendimento ia até às quatro e meia, e sábado não abria. Feito o despacho
das duas bolsas, fiquei mais aliviado, pois apesar de estar privado de alguns
itens de conforto e coisinhas complementares, sabia que apenas com a bolsa
pequena que ia em cima do bagageiro tudo melhoraria na bicicleta. É a velha
sabedoria: “menos é mais”!
O dia seguinte era o mais
“amedrontador” do percurso, em função do grande desnível (mais de 1500 metros
acumulados) e duas íngremes serras pra subir. O gráfico de altimetria do dia
realmente não era lá muito auspicioso. Em compensação parou de chover e o dia
amanheceu com uma cara boa.
O percurso seguia por simpáticas
estradinhas de terra, passando por sítios, madeireiras, plantações de banana,
rios e montanhas ao longe. Logo começou a primeira pirambeira. Não era mesmo
uma subida fácil. A frente da bicicleta querendo empinar, a traseira querendo
perder a tração, o coração a milhão, suando feito uma bica d’água, a relação de
marcha mais leve possível e uma paciência monástica foram fazendo os metros e
quilômetros ficarem para trás.
Ninguém por perto, um silêncio
comovente em volta, apenas pássaros cantando, um horizonte amplo e aberto...
Era isso!
No começo da tarde o céu voltou a ficar
cinzento e ameaçador, mas não chegou a chover. Toquei o solo em Campo Alegre
contente da vida por ter passado pela temível e longa ascensão. E me pus a
pensar que muitos dos nossos temores (e desgaste) se devem justamente às nossas
(desnecessárias) preocupações. Esse negócio de ficar fissurado nas previsões
meteorológicas do “climatempo”, de ficar estudando a altimetria do caminho à
frente, de ficar lendo os relatos e alertas dos guias e “sites” sobre o
assunto... Sei lá, talvez fosse mais simples ter menos informação, preocupar-se
menos e simplesmente ir tocando em frente... Quem sabe um dia chegue lá...
Em Campo Alegre fiquei num agradável
hotel no qual a moça da recepção me deu uma bela notícia: “servimos um café
colonial a partir das 19 horas”. Ora, ora... Um café colonial depois de um dia
como aquele era mesmo uma ótima opção pra repor as calorias perdidas (e
acumular outras para os dias seguintes...).
O Circuito das Araucárias é dividido em
oito trechos e a sugestão do guia montado por iniciativa dos municípios
participantes é combinar esses trechos de acordo com a disposição física e
tempo disponível do ciclista, de forma a percorrê-lo da forma mais proveitosa
possível. O recomendável, segundo esse manual, é dispor de seis a oito dias.
Mas eu estava numa “vibe” mais de andar, e, embora sem pressa, de chegar logo.
Assim previ percorrer nesse quarto dia de viagem três trechos do guia, o que
somava cerca de 90 quilômetros. Em condições “normais” (como, por exemplo, num
bom asfalto, com uma bicicleta de contrarrelógio sem bagagem e 120 libras nos
pneus) percorrer essa distância não tem mistério. Mas ali o relevo continuava
com seu sobe e desce – o total de subidas desses três trechos era de mais de
2000 metros -, a estrada, apesar de ser muito aprazível e bucólica, tinha muita
pedra e buraco, e era preciso estar ligado constantemente na orientação, o que
demandava paradas frequentes e muita atenção na planilha.
De tal forma que saí pra esse dia um
pouco mais cedo e num ritmo um pouco mais econômico com paradas desnecessárias.
O bacana é que o dia estava especialmente bonito, com o céu finalmente azul e o
sol brilhando firme. Assim fui pedalando por entre araucárias, lavouras, rios,
fazendas, pousadas rurais e casas isoladas no meio do nada, e o dia e os
quilômetros foram passando.
Afortunadamente me sentia muito bem
fisicamente, e, embora naturalmente cansado, não estava incomodado por nenhuma
dor nem desconforto mais sério. A bicicleta estava funcionando perfeitamente
bem e a pouca bagagem que levava agora estava bem ajustada ao pequeno alforje
sobre o bagageiro, de tal maneira que só me restava pedalar, contemplar a
paisagem, cuidar da orientação, tirar algumas fotos e deixar o tempo passar.
Cheguei em Rio Negrinho às dezessete
horas, no final daquela bela tarde de domingo, com as pessoas passeando na
praça, aquele clima de simplicidade de cidades do interior e a alma leve por
estar fazendo dar certo a brincadeira que havia planejado. Achei então uma
pousada no alto de uma colina e me recolhi ao descanso. Dessa vez sem o charme
de um café colonial, restou-me pedir uma pizza pra comer no quarto mesmo, mas estava
“louco de bom”.
A última etapa do circuito era a
pernada de Rio Negrinho a São Bento do Sul, prevista pra ter 60 quilômetros e
ascensão total de quase 1500 metros. Ou seja, sem trégua. E o dia não estava lá
muito animador: aquele céu cinza-branco, friozinho e um vento constante zunindo
no ouvido. Isso tudo aliado ao cansaço acumulado fez a pedalada ficar por conta
mais de andar rápido do que de curtir ou passear. Mas deu tudo certo. Às duas e
meia da tarde estava de volta à praça central de São Bento do Sul, ao lado da
igreja matriz, marco inicial e final do circuito.
Fui à Secretaria de Turismo, que ficava
ali do lado, apresentar a cartilha com os carimbos pelos pontos de passagem, a
fim de comprovar a realização do circuito e ganhar um certificado – formalidade
que quase deixei de lado. Mas já que estava lá, resolvi participar.
Bem, e agora? Não queria voltar pra
casa pelo caminho que havia vindo, pra não ter que pedalar por aquele trecho
suicida novamente. Então tinha a opção de pegar um ônibus... Mas “já que”
estava ali com tudo em ordem, resolvi acrescentar uma etapa à viagem e descer
pra Joinville no dia seguinte, pra curtir um dia de pedal mais livre, sem ter
que ficar seguindo as cansativas planilhas do percurso, e pra curtir o belo
trecho de estrada que liga essas duas cidades, com a bonita Serra Dona
Francisca no caminho.
Dei uma paradinha numa loja de
conveniência de um posto de gasolina pra comer um pão de queijo, antes de
procurar um hotel, e de repente vejo um cara entrando na lojinha e já acenando
pra mim. Também o reconheci de imediato. Era o Hans, velho amigo da época do 62
BI, de Joinville, com quem havia inclusive dividido apartamento durante um
período naquele começo da década de 90. Incrível coincidência! Incrível também
como a conversa flui mesmo depois de tanto tempo sem se ver.
Atualizado do que estava fazendo, ele
então me convidou pra dormir na sua casa, o que aceitei prontamente.
Aproveitando o final de tarde, fui ainda conhecer sua criação de belos cavalos
Pecheron – um de seus hobbys -, em sua chácara, próximo à cidade. À noite, em sua
casa, batemos um bom papo e pude conhecer também sua esposa, que me contou que
seu irmão havia partido há um mês para uma viagem de carro (um Landrover
Defender adaptado para motor home) para dar uma “volta ao mundo” (aliás, mais
uma volta, pois eles já fizeram uma outra viagem de cerca de três anos passando
por diversos países) – a história deles é contada no livro e site chamado
“Mundo por Terra”. Certamente muito inspirador.
Um encontro assim inusitado como esse
com o Hans me pôs a pensar nas engrenagens que movem os acontecimentos na nossa
vida. Como, depois de vinte anos, encontro um amigo assim por uma
(aparentemente) completa coincidência? O que circula nesse espaço vazio que nos
cerca? Como os pensamentos se formam? Por que eles seguem esse caminho, e não
outros? Há alguma lógica nas decisões que tomamos? Há alguma lógica na vida?...
No dia seguinte me despedi do simpático
casal de amigos que me acolheu tão gentilmente e peguei novamente a estrada. De
volta ao asfalto, voltei também ao que há de bom e de ruim nesse contexto. Um
piso regular e lisinho faz a pedalada render muito mais e ser muito mais
confortável, em compensação há os inevitáveis carros, caminhões, barulho e situações
tensamente perigosas.
Cheguei à Serra Dona Francisca, parei
pra tirar uns retratos e me deliciei com a longa descida de mais de dez
quilômetros (sete na serra propriamente dita e outros tantos na sequência).
Visual bonito, curvas bem fechadas, descida bem íngreme, e depois as casinhas
das localidades adjacentes, e logo estava de volta à BR 101, que em mais alguns
poucos quilômetros me levou à cidade de Joinville, onde tenho antigas e boas
lembranças dos belos “vinte e poucos anos”.
Consegui ainda encontrar (dessa vez de
forma planejada) e bater mais um bom papo com outro velho amigo, o Rogério, que
também conheço dos tempos em que trabalhei naquela cidade, nos anos 90.
Encontros assim, por mais simples e
rápidos que sejam, valem o dia e nos relembram a importância e o valor de uma
história em comum, de uma afinidade sincera, da boa e velha amizade.
Satisfeito então, dirigi-me à
rodoviária e peguei o primeiro ônibus de volta para os meus grandes amores,
levando comigo a bike e um enorme sentimento de gratidão por tudo.
Afinal, foram 475 quilômetros
pedalados, dos quais 260 em estradas de terra, e a certeza de que dar uma volta
de vez em quando nos faz mais vivos e humildes, apesar (ou talvez por causa)
dos inevitáveis perrengues, dúvidas e medos inerentes ao caminhar (e ao mundo).
Que assim seja.
(Curitiba,
Setembro de 2014)
Gratidão.
Força Sempre
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