Subida
da Serra do Rio do Rastro de bicicleta
Em parceria com Maximilian Leisner e sua turma
Sábado, 28 de março, oito e pouco da manhã. Em um posto à beira da estrada, na saída
da cidadezinha de Lauro Muller, interior de Santa Catarina, sete camaradas
fazem os ajustes finais em suas bikes e equipamentos para um pedal que promete
ser divertido. Estamos ali não para uma competição, não para um evento
extraordinário, não por obrigação ou por dever. A proposta é simplesmente dar
um passeio de bicicleta, mas um passeio subindo a temida e famosa Serra do Rio
do Rastro, e além, até a cidade de Urubici, seguindo a bucólica estrada que
serpenteia as intermináveis subidas e morros da região.
Somos
um grupo reunido pela coordenação e incentivo do Max, um amigo de Curitiba, entusiasta
do ciclismo de estrada e eterno curioso e estudioso das nuances desse esporte
tão peculiar (além de um esportista nato). Além de mim e do próprio Max, há
dois caras de São Paulo, dois de Bauru/SP e o outro de Salvador. Acompanham-nos
ainda a esposa desse colega baiano e o motorista da Van (que, por sinal, é também
o dono da simpática pousada em que nos hospedamos na noite anterior) que nos
servirá de apoio durante o percurso.
Esse
pedal já estava marcado há algum tempo. A Serra do Rio do Rastro é
provavelmente a mais desafiante subida em asfalto em território nacional pra se
fazer numa bicicleta, considerando aí a equação entre distância, inclinação e
ganho de altitude. São cerca de vinte quilômetros de subida constante e
ininterrupta, com inclinação crescente e um tanto assustadora, principalmente
nos quilômetros finais.
Sem
muita cerimônia, juntamo-nos para uma foto do grupo reunido e em seguida
encaminhamo-nos para a estrada. O começo já é subindo, mas suavemente, de
mansinho, como a cercar algo muito mais sério. Naturalmente vamos abrindo
distância uns dos outros, permitindo que cada um encontre o seu ritmo e a sua
sintonia.
No
grupo, a maioria já se conhece de outras histórias ciclísticas e de interação
nas redes sociais ligadas ao tema. Todos têm histórias sobre bicicletas pra
contar. E, como é comum nesse meio, normalmente histórias dramáticas. Aliás,
acho que o ciclismo é bacana porque tem essa tendência inescapável ao drama.
Estar sobre uma bicicleta numa estrada é estar flertando com o perigo, com o
equilíbrio dinâmico e instável, com os limites da resistência e da força física,
com os elementos da natureza e, no fundo, no fundo, com os próprios pensamentos
e medos que insistem em nos rondar sem tréguas.
Vamos
subindo de forma respeitosa, e à medida que os quilômetros vão passando a
paisagem vai mudando nitidamente. Os resquícios urbanos ficam pra trás e a
atmosfera vai ganhando aquele ar de introspecção típico de regiões montanhosas.
Compondo o ambiente, o céu está fechado, o clima está muito úmido e sombrio e
há claros sinais de chuva.
Por
volta do quilômetro doze o corpo já está aquecido, e eu já me encontro meio que
sozinho no caminho. À minha frente, se não me engano, estão o Max e um dos
caras de São Paulo. Sinto-me bem, tanto física quanto psicologicamente. A gente
nunca sabe como vai reagir a uma empreitada dessas, ainda que, logicamente, não
se chegue a um local como esse aleatoriamente. No último mês andei frequentando
assiduamente todas as subidinhas que consegui encontrar nos arredores de
Curitiba, e acumulei boas horas sobre os selins – tanto da R3, a bike de
estrada que me faz companhia nessa viagem, quanto da Stumpjumper, a mountain
bike para as estradinhas mais isoladas.
Os
sete quilômetros finais da serra são os mais íngremes e bonitos. Infelizmente,
porém, o dia não está aberto e não dá pra ver muita coisa. Uma forte neblina
circula pela região e deixa tudo com um ar ainda mais misterioso e
amedrontador. As montanhas em volta têm escarpas absurdamente verticais e
altas. De repente, quando uma massa de neblina se afasta, abre-se um flash
magnífico de uma montanha rochosa que sobe até o céu.
A
estrada se contorce numa sequência de curvas de cento e oitenta graus que se
sobrepõem como degraus numa escada. Do andar de cima vê-se, logo ali, o andar
de baixo. Por vezes, ao lado da mureta que protege a estrada, vê-se um grande
abismo a desaparecer no vazio lá embaixo.
Há
trânsito na estrada, tanto de carros quanto de caminhões, mas não é intenso.
Nos intervalos desse tráfego, reina um silêncio envolvente e agradável. Os
caminhões e carros se aproximando (subindo ou descendo) são ouvidos muito antes
de serem vistos, e, na minha imaginação amplificada pela hiper oxigenação
decorrente do intenso exercício, fico pensando em feras passeando pelo “meu
território”...
Nos
quilômetros finais da grande serra o trabalho nos pedais é intenso e metódico.
Uso a relação de marchas mais leve de que disponho (um cassete com 28 dentes
atrás, especialmente colocado para a ocasião). Mesmo assim o giro é pesado e as
rotações por minuto são bem poucas. De vez em quando faço uns metros pedalando
de pé. É um método que me agrada, pois me permite alternar o uso de alguns
músculos, além de me proporcionar mais força pra empurrar os pedais pra baixo e
dar uma momentânea sensação de poder e de extravasamento de uma energia
diferente.
Chego
ao topo da subida envolto numa espessa neblina. Dou uma espiada no ciclômetro e
vejo que foram necessários oitenta e cinco minutos pra percorrer aqueles vinte
quilômetros, com apenas uma curta parada de menos de dois minutos. Numa venda à
beira da estrada vejo a Cris, esposa do nosso amigo da Bahia, entusiasmada com
a situação, tirando várias fotos. Logo vejo o Max e o outro cara, surgidos de
dentro da neblina como se estivessem escondidos dentro de um armário. Combinamos
de esperar todos chegarem nesse ponto, para só então prosseguir.
Entramos
na simpática casinha de madeira que serve lanches e itens regionais e damos uma
relaxada. Peço um chá quente pra tentar combater o frio que já se embrenha
pelos poros da pele e ficamos ali alguns minutos, até todos chegarem.
A
intenção inicial era pedalar até a cidade de Urubici, distante ainda cerca de oitenta
e poucos quilômetros daquele ponto. Mas o tempo inclemente, com uma neblina que
já estava se transformando em chuva fina e o frio intenso, aliado ao impacto
físico da recente pirambeira que havíamos subido, deram uma castigada no ânimo
da turma. Já não havia tanta certeza em prosseguir com os planos iniciais.
Mas
decidimos seguir um pouco mais... (“Vai que esse tempo melhora e tudo se
ajeita...”). Retornamos então à estrada e procuramos ficar um pouco mais
próximos uns dos outros. Rodamos mais vinte quilômetros num sobe e desce
constante em que a neblina se dissipou, mas em compensação a chuva fina se
estabeleceu, e o frio, característico dessa região conhecida como a mais gelada
do país, também fincou os pés.
Fizemos
então um “pit stop” no acostamento, no exato ponto de entrada para a pousada
onde havíamos nos hospedado, e colocamos novamente em questão se
prosseguiríamos ou se decretaríamos que estava de bom tamanho. Havia opiniões divergentes.
Na verdade, podíamos dividir democraticamente o grupo, aqueles que quisessem
ficar, era só entrar para o aconchego da pousada, tomar um bom banho quente e
ir se aquecer ao lado do fogão a lenha. Aos que quisessem seguir em frente
bastava retornar à meditação ativa da rotação dos pedais.
Engraçados
esses momentos... Os que se achavam muito cansados e queriam, no fundo,
encerrar a brincadeira, talvez esperassem a adesão dos demais. Como essa adesão
não rolou, eles preferiram aderir à parte que decidiu seguir em frente.
O
próximo trecho de vinte quilômetros foi talvez o mais duro. Sucessivas subidas,
bastante íngremes e razoavelmente longas, se intercalavam com descidas
magníficas e paisagem ao redor absolutamente enternecedora e bucólica. Casinhas
de madeira com aquela fumacinha saindo da chaminé, bosques de araucária a
perder de vista, cavalos solitários “perdidos” em amplos pastos, aquela
chuvinha fina convidando ao recolhimento...
Chegamos
ao trevo em que a estrada se bifurca para as cidades de São Joaquim e Urubici.
Dali até o nosso objetivo inicialmente proposto faltavam mais cinquenta
quilômetros. A essa altura estávamos completamente molhados e só não estávamos
congelados porque produzíamos muito calor de dentro pra fora. Fizemos nova
rápida parada no acostamento pra reunir a turma, comer umas bananas e avaliar a
situação. Novamente alguns já estavam convictos de que a brincadeira já estava
de bom tamanho, e que já havíamos há muito passado para o campo da teimosia.
Mas o Max fez tão boa propaganda do trecho que faltava (“é o mais bonito da
região”, “daqui pra frente praticamente não tem mais subida”, etc.), e a facção
que estava mais disposta parecia estar ainda mais disposta (“já que viemos até
aqui...”), que montamos nas bikes e, meio sem pensar muito, prosseguimos.
A
história de que nesse trecho final praticamente não havia mais subidas não era
bem assim... Mais exato seria dizer que não havia tantas e tão íngremes subidas
quanto nos outros trechos, mas elas estavam lá. Quanto à beleza, realmente era
confortadora. Além de tudo, não havia quase ninguém na estrada, o que nos
permitia viver uma situação muito próxima do sonho de todo ciclista, que é ter
a estrada só para si.
Fomos
pedalandinho cada vez mais determinados e fortalecidos pelos quilômetros que
passavam, ao mesmo tempo em que mais debilitados e enfraquecidos pelos mesmos
motivos. A falta da força muscular para girar os pedais era substituída pela
energia anímica e emocional catalisada por aquela fórmula mágica de intenso
esforço, condições climáticas adversas e paisagem belíssima.
Os
últimos sete quilômetros eram de uma íngreme descida. A chuva que caía
machucava nossos olhos (nessas condições não havia óculos que dessem conta de
não embaçar e manter a visibilidade necessária). O frio era cortante.
Tentávamos reduzir a velocidade com os freios, mas esses já não respondiam com
a eficiência esperada. E ainda havia possíveis buracos, possíveis resíduos de
óleo na pista, possíveis imprevistos que poderiam levar a completamente
indesejáveis consequências.
Entramos
na cidadezinha de Urubici como um grupo de astronautas deve chegar a um novo
planeta... Completamente extasiados e exaustos. Três dos nossos companheiros
acharam melhor não forçar demais a barra e embarcaram na Van de apoio nesse
trecho final. Comemoramos a façanha na calçada, no meio da rua, no meio do
nada. Abraços, um gole de isotônico, uma banana, algumas fotos, jogamos as
bikes pra dentro da Van e retornamos à pousada com a alma lavada e o corpo “em
pânico”.
No
final foram cento e quatro quilômetros rodados e mais de dois mil e quinhentos
metros de desnível acumulado, em mais de seis horas entre a saída e a chegada.
Dedicamos
o restante do dia, após o merecido banho quente e um lauto almoço/ jantar
caseiro na pousada, a jogar conversa fora ao lado do fogão a lenha, curtindo o
barulhinho da chuva no telhado e as lembranças (físicas e emocionais) ecoando
na alma... Quando pudermos, sabemos que voltaremos, e sabemos também que sempre
será mais gratificante prosseguir do que mudar os planos no meio do caminho,
ainda que nos custe umas dorzinhas a mais.
(Abril de 2015)
Jantar no dia anterior. Causos ciclísticos e papo furado.
Preparando as máquinas no dia anterior.
Visual da varanda da pousada em que ficamos.
Café da manhã.
Fogãozinho a lenha da pousada, aconchego e aquecimento.
A viagem entre Curitiba e Bom Jardim da Serra (e vice-versa) foi outro passeio, com a velha e boa BMW R 1200 GS (sob chuva em muitos trechos).
Nenhum comentário:
Postar um comentário