Tiger 900 Rally Pro

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domingo, 16 de agosto de 2015

Viagem ao Nepal - trekking ao Campo Base do Everest e escalada do Island Peak - 28 Mar a 06 Mai 96



Monte Everest - o ponto mais alto da Terra, fotografado do Kala Patar


Sagarmatha

Uma viagem pelas montanhas do Himalaia



     A viagem ao Nepal foi, sob diversos aspectos, muito especial. A começar pelo destino - suficientemente interessante por si só. Mas também, e não menos importante, pela fase da vida que vivia, pelo contexto e pela forma como a viagem se tornou realidade, pela iniciativa de ir para um lugar tão distante e tão diferente e pelas mudanças interiores que gerou.

     Não obstante poder parecer um clichê, o fato é que essa viagem foi mesmo um divisor de águas na minha vida, tendo mudado de forma irreversível a minha forma de enxergar a vida e o mundo, e de enxergar a mim mesmo.

     No começo de 1996 vivia um momento profissional um tanto delicado. Após um ano particularmente difícil, tinha nas mãos a rara oportunidade de poder tirar uma Licença Especial - período de seis meses de licença concedido a cada dez anos de serviço. Contrariando todos os conselhos e tendências corporativas, resolvi dar um tempo da rotina de trabalho e me permitir o período sabático.

     A inspiração da viagem ao Nepal surgiu dos livros que lera nos últimos anos, a respeito das recentes tentativas brasileiras de escalada do Monte Everest, mas também, provavelmente, de um "chamado interior" de ir pra um lugar bem longe e bem diferente.


"Viajar é uma ciência grande que nos traz de volta a nós mesmos."


     Mas naquela época as informações sobre esse tipo de destino eram bem raras e difíceis de encontrar. O fio da meada pra fazer a viagem acontecer foi um anúncio de uma revista sobre viagens outdoor ("Os Caminhos da Terra") que tinha em casa... Após algumas ligações telefônicas, contratei um pacote de um trekking ao Campo Base do Monte Everest com uma agência de São Paulo.






     O meu guia seria um brasileiro que estaria me esperando em Katmandu, capital do Nepal. Saí de Joinville num tumultuado dia de chuva forte, em que o avião que deveria pegar não pôde pousar no aeroporto da cidade. Acabei embarcando num ônibus pra Curitiba, de onde peguei (em cima da hora) o vôo pra São Paulo, aonde me encontrei com a agente de viagens que só então me passou todos os documentos e detalhes do pacote.




     Com um detalhe: apenas eu havia contratado aquela programação naquela temporada. Ou seja, seria um grupo de dois, eu e o guia.
     

     Voei de São Paulo para Londres e, de lá, após uma longa escala de doze horas, para Nova Deli, na Índia, onde o avião chegou com mais de duas horas de atraso, em decorrência de um pouso não previsto num país do Oriente Médio, pra desembarcar um passageiro que passara mal gravemente. Resultado: perdi a conexão que deveria pegar para o Nepal.


     Eu e mais uma meia dúzia de passageiros na mesma situação tivemos que ser hospedados num hotel na capital indiana pra aguardar o próximo voo, que seria apenas no dia seguinte. Com isso, cheguei à capital nepalesa com um dia de atraso, sem ter conseguido avisar a ninguém sobre o imprevisto.






     Ao sair na área de desembarque do aeroporto em Katmandu, entretanto, lá estava o camarada que seria o meu guia na viagem, Manoel Morgado, que me reconheceu (certamente pelo meu inconfundível jeito brasileiro de ser) sem me conhecer. É uma grata satisfação poder ter um encontro desses num lugar absolutamente desconhecido e exótico como aquele.

     O Manoel viria a ser muito mais do que um guia para mim. Dono de uma história de vida fascinante, já naquela época vivia, há alguns anos, de guiar grupos de brasileiros pelas mais belas trilhas de países da Ásia. Sua experiência, atitude profissional e atenção me cativaram e inspiraram muito além das poucas semanas que passamos juntos.




     No dia seguinte à minha chegada, sentamos pra conversar sobre a programação dos dias que teríamos pela frente e ele foi absolutamente transparente sobre todos os detalhes da viagem que estávamos iniciando. Como estava sozinho, propôs algumas modificações no formato original do pacote, as quais aceitei prontamente. 

     A primeira e significativa mudança foi dispensarmos a contratação de carregadores para a fase do trekking, como normalmente se faz em expedições desse tipo. Combinamos que cada um de nós levaria sua própria mochila. Decidimos também não contratar equipe de apoio para montar cozinha e barraca nos acampamentos. Ao invés disso, usaríamos os lodges (casas) dos sherpas como local de pernoite e alimentação.

     Resolvemos, com as economias geradas com essas medidas, organizar uma escalada em gelo de um pico vizinho ao Everest - O Island Peak (de 6189 m de altitude), e incluir ainda uma expedição de três dias de rafting num bonito rio numa região não muito distante de Katmandu.





     Com o cronograma decidido, partimos pra ação. Passamos os três primeiros dias conhecendo e apreciando as várias e exóticas nuances de Katmandu, caminhando por suas ruas, bisbilhotando as lojinhas de artesanato e acertando detalhes logísticos da fase do trekking e escalada, como aluguel de equipamentos específicos, contratação de guia e carregador (para a escalada), compra de itens de alimentação, etc.


Alugando e comprando equipamentos em Katmandu.


     Esses dias em Katmandu serviram pra me dar uma primeira impressão real de como era um país do Oriente, com uma história tão antiga quanto rica, e uma cultura e uma religiosidade que efetivamente me fizeram repensar meus valores. 


Cerimônia budista num templo no centro de Katmandu.






     Materialmente é um país muito pobre e as pessoas, de forma geral, levam uma vida muito simples, talvez até mesmo sofrida, mas há algo mais nessa equação. A sensação que se tem, observando com atenção, é que os nossos valores (ocidentais) simplesmente não se encaixam no formato de vida deles. Há certa leveza no semblante e no olhar daquelas pessoas que nos cativam e nos fazem ver que a vida é mesmo muito mais do que nos acostumamos a aceitar como "normal". 





     A todo momento as pessoas se cumprimentam com o famoso "Namastê" - que significa "o Deus que está em mim saúda o Deus que está em você", invariavelmente acompanhado de um sincero sorriso. No comércio os vendedores e funcionários das lojas estão lá, fazendo o seu papel, mas parecem estar mesmo é em outro lugar.





     As cores e formas de Katmandu são um choque cultural que funcionam mais ou menos como um "impacto existencial"... Caminhar por aquelas ruas milenares, presenciar pessoas rezando em cada esquina, corpos sendo cremados em praça pública, o cheiro de incenso impregnado nas paredes, os "homens santo" em posição de meditação em meio ao alvoroço da cidade, é uma experiência diante da qual é impossível ficar impassível. Mexe com a gente. Me senti como se de repente tivesse saído de uma bolha e descoberto um outro mundo. Fascinante!






     Em função do anormal acúmulo de neve nos passos de montanha que teríamos que transpor durante o trekking no Himalaia, o Manoel achou melhor fazermos o rafting antes de irmos para as montanhas, a fim de dar mais alguns dias pra neve derreter lá em cima.

     Assim, viajamos de ônibus para Pokhara, uma cidade a cerca de 200 km de Katmandu (em torno de cinco horas de viagem), aonde nos juntamos a uma equipe inglesa que conduziria a expedição nos botes infláveis pelo Rio Kaligandaki.

     A estrutura e o formato desse rafting foram um belo começo da fase outdoor do nosso passeio. Estávamos em cerca de dezoito turistas de vários lugares do mundo, distribuídos em três barcos infláveis próprios para corredeiras, mais três barcos semelhantes com toda a carga de acampamento e comida, mais uns quatro ou cinco caiaques de segurança (conduzidos por monitores da equipe organizadora).




     Passamos três dias descendo o Rio Kalidangaki num trecho totalmente inóspito, sem contato com a civilização. À noite acampávamos nas praias do rio, usando os próprios barcos como barracas. O visual era belíssimo. A sensação de isolamento era absoluta. O astral e a forma dos ingleses conduzirem a expedição foram fantásticos. Apesar de estarmos num ambiente ermo e fazendo uma atividade de certo risco, não havia grandes restrições do que fazer nem neurose com segurança. Tudo era muito descontraído e levado numa boa. 




     O convívio com um grupo tão heterogêneo em termos de nacionalidades e costumes também foi muito legal, proporcionando a autêntica sensação de se sentir "cidadão do mundo".




     
     Aproveitamos bem a "fase verão" da nossa temporada, sabendo que dali a poucos dias estaríamos em um ambiente e temperatura completamente diferentes. 

     Retornamos a Katmandu e tivemos apenas um apertado dia para os preparativos finais pra fase mais esperada e mais dura da viagem - as três semanas de caminhada no Himalaia e a escalada do Island Peak.

     Conseguimos embarcar no voo saindo de Katmandu para as montanhas na manhã do dia 10 de abril - e digo "conseguimos" porque esse é um voo muito especial, sujeito a muitas variáveis, em particular a condição do tempo na pista de pouso em pleno Himalaia, e, por isso, frequentemente cancelado ou adiado. 

     O avião é um pequeno bimotor que leva não mais do que uns dez a doze passageiros, e é pilotado por dois pilotos nepaleses que parecem conduzi-lo como seus conterrâneos motoristas de ônibus dirigem seus veículos nas estradas, com um misto de displicência e fé em que tudo vai dar certo, meio independente da ação deles próprios.

     



     O panorama da minúscula janela, no entanto, compensava facilmente a precariedade da situação. Ao nosso lado, ao longo de aproximadamente uma hora e pouco de voo, foi se descortinando um verdadeiro espetáculo das mais belas montanhas existentes nesse planeta. Cinema nenhum poderia reproduzir aquelas cenas.






          O ambiente das montanhas é impressionante. Lukla, o vilarejo onde pousamos, é a principal porta de entrada para as montanhas do Nepal, incluindo o Monte Everest. Se não for por avião, só é possível chegar até lá caminhando por uma semana pelas trilhas, desde a estrada mais próxima. 

     O avião permanece pousado apenas o tempo suficiente pro desembarque de quem chega e embarque de quem parte. Depois que ele se vai, lançando-se como um pássaro numa decolagem assustadora de uma pista que termina num gigantesco penhasco, fica apenas um incrível e espetacular silêncio. Não há carros nem máquinas que fazem barulho por muitos e muitos quilômetros ao redor. 

     De certa forma, não podia acreditar onde estava! Tudo era muito peculiar e muito autêntico. Não posso nem dizer que era diferente do que havia imaginado, porque não havia conseguido pensar como seria... Junto com o deslumbramento surgiram também as sensações que seriam nossos parâmetros nos dias seguintes - um difícil ajuste entre disposição física (ou falta dela), cansaço físico-muscular (a mochila passa a ser uma companhia constante, todos os dias) e equilíbrio (ou a falta dele) orgânico - ou, em outas palavras, a difícil adaptação do corpo à crescente diminuição do oxigênio disponível pra respirar.




     Além de tudo há ainda a questão também constante da visível limitação de higiene. Em toda a montanha não há água encanada em parte alguma, e a água que há é artigo de luxo. Pra beber recomenda-se enfaticamente apenas água mineral engarrafada. 

     De cara fui acometido por uma típica diarreia que me impôs quase 36 horas de total inapetência, mal estar geral e aquela sensação de não achar graça em nada... Mas havia uma força anímica por trás de tudo que segurou a onda. 




     Dois dias depois de aterrissarmos em Lukla chegamos ao vilarejo de Namche Bazar, o maior da região. Demo-nos um dia de descanso, tanto pra aliviar o peso da caminhada e da mochila quanto pra permitir ao organismo um tempo pra aclimatação.

     Aliás, esse é um assunto constante nesse ambiente. Uma preocupação onipresente. É preciso estar atento o tempo todo a como o corpo está reagindo ao aumento da altitude e à diminuição do oxigênio. Os dias de caminhada são planejados não em função da distância percorrida ou do tempo necessário para percorre-la, mas tão somente em função da altitude que se sobe. A partir dos 4.000 metros o recomendável é não subir mais do que 500 metros por dia.



Gráfico de altimetria do percurso que fizemos.


     Os problemas do mal da altitude - como são chamados os efeitos da não adaptação do organismo à hipoxia - são sérios e requerem cuidados especiais para serem evitados. A regra básica é caminhar devagar, hidratar-se bem e buscar, tanto quanto possível, subir a uma altitude maior do que aquela na qual se vai dormir. Assim, normalmente fazíamos nossa pernada do dia na parte da manhã, e à tarde saíamos para uma caminhada pelas redondezas, buscando ganhar mais algumas centenas de metros para só depois voltar para nosso local de pernoite. Esse esforço prometia recompensar-nos com uma noite de sono mais tranquila e melhor adaptação às condições da altitude.

     Esse "descanso" em Namche Bazar foi, a rigor, um descanso ativo. Fizemos uma bela caminhada de umas cinco horas (ida e volta) até um monastério isolado a uma altitude de cerca de 4000 m. Nesse local conversamos com os monges, fomos convidados a tomar um chá e me senti realmente emocionado por estar num lugar tão distante e tão inimaginável. Além disso, a "energia" do ambiente era muito especial.


Pequeno monge do monastério que visitamos e seu sorriso puro e sincero 
(e as bochechas queimadas pelo frio).
     




     De volta à trilha, seguimos para o vilarejo de Khumjung, a 3800m de altitude. No outro dia fomos a Dole, a 4100m, e de lá a Machermo, a 4400m. Quanto mais subíamos, mais a paisagem ia ficando surreal e introspectiva. Os vilarejos iam ficando cada vez menores e a sensação de isolamento aumentava. 





     Em determinada noite tive uma das mais estranhas experiências de toda a viagem. Um sonho de conteúdo tão confuso e enigmático como a maioria dos sonhos que normalmente temos, só que de uma sensação de realidade que me deixou realmente intrigado quando acordei. Vivi o sonho de forma tão real quanto a própria realidade que vivia ao estar "acordado"... Talvez tenha sido mais um efeito do pouco oxigênio, ou talvez do estado emocional em que me encontrava, ou talvez devido simplesmente ao extremo cansaço... Quem sabe? (... Ou talvez porque o que julgamos ser a realidade não seja, afinal, tão real assim...)




     Encaixamos o ritmo de caminhar algumas horas pela manhã, chegar ao próximo vilarejo, comer alguma coisa, fazer mais uma caminhada de aclimatação à tarde e voltar pra descansar para o dia seguinte. Os dias eram muito simples.




     A sensação de "intimidação" diante da grandeza das montanhas e do ambiente em geral era monstruosa. Chegava a causar certo desconforto psicológico, certa apreensão. Parecia que estávamos num mundo fora de escala. As encostas das montanhas "sumiam" em direção ao céu. Os vales "se perdiam" em abismos dos quais não se enxergavam o fundo.

     Por algumas vezes cruzamos com outros montanhistas descendo a trilha em função de um dos membros do grupo estar passando muito mal devido a início de edema pulmonar ou cerebral (problemas mais ou menos comuns em alta montanha), o que contribuía pra aumentar a sensação de risco e deixar um astral pesado no ar.



Crianças sherpas num intervalo do trabalho de carregadores, 
brincando de "amarelinha" em meio ao nada.


     Os lodges onde ficávamos eram instalações muito rudimentares, mas, ainda assim, aconchegantes. Os dormitórios (sempre coletivos) eram compostos de estrados de madeira onde cada um que chegava instalava seu isolante térmico e saco de dormir e era isso.

     Conforme nosso planejamento, fazíamos as refeições nessas hospedarias. As opções eram sempre muito restritas e variavam basicamente entre arroz, batata ou macarrão, com poucas variações de molhos e complementos. Acima de Namche Bazar praticamente não havia opção alguma de itens extras de alimentação a serem adquiridos. Comíamos, em última instância, o que os locais comiam. Banho, nem pensar, e os "banheiros" eram sofríveis.




     Após alguns dias chegamos ao final de um dos vales através do qual estávamos seguindo e na madrugada seguinte subimos ao cume do Gokyo Ri, a 5350 m de altitude, de onde tivemos uma visão simplesmente espetacular e impactante. Nesse dia enfrentamos temperaturas que chegaram a -20 graus celsius e tivemos que usar tudo o que tínhamos em termos de agasalhos. 









     Apesar da beleza extrema do lugar em que estávamos, na véspera fiquei bastante mal por conta da dificuldade de adaptação à diminuição gradativa do oxigênio. Dor de cabeça, falta de apetite e mal estar geral... Tomei uns remédios (receitados pelo Manoel, que é formado em medicina) e ainda assim dormi mal. Mas de madrugada, quando acordamos pra escalada, estava um pouco melhor e seguimos com o planejado.








     Por alguns dias caminhamos com uma menina alemã de vinte e poucos anos, viajando sozinha por alguns meses pela Ásia, bem como com um jovem australiano que também estava "dando um tempo' do trabalho e havia saído pra "ver o mundo" um pouco. Esse contato ocasional com pessoas de vários outros países era muito enriquecedor e muito natural. Ficávamos juntos enquanto nossos roteiros coincidiam e depois cada um seguia seu destino.




     No décimo primeiro dia de trekking, dia 20 de abril, chegamos a um dos pontos emblemáticos da Cordilheira do Himalaia - o Campo Base do Everest, a 5300 m de altitude. Havia uma infinidade de barracas de diversas equipes de escaladores espalhadas pelo árido vale. Tudo era pedra e gelo, silêncio e desolação. 

     Coincidentemente essa passagem por lá se deu poucas semanas antes da trágica sequência de acidentes e mortes ocorrida nos campos elevados da escalada ao Everest. Fatos esses que entrariam pra história do montanhismo mundial e iriam compor, mais tarde, o enredo do famoso livro "No ar rarefeito" (de John Krakauer) e do filme "Everest", lançado recentemente (2015).













     Cumprida a etapa da "visita" ao Campo Base partimos pra escalada do Island Peak, uma montanha de 6189 m de altitude não muito distante do Everest. Para isso montamos um esquema especial: contratamos um guia e um carregador sherpa, que nos acompanharam até o acampamento avançado, no penúltimo dia do "ataque ao cume". 

     O Manoel encontrou uma amiga americana em um dos vilarejos em que passamos nos dias anteriores, e a convidou pra fazer a escalada com a gente. Laura era médica (e escaladora) e estava passando uma temporada de seis meses prestando serviço voluntário nas montanhas. Era ela que tinha a maior experiência em escalada em gelo de nós três.




     A empreitada foi muito dura. Fizemos um dia de caminhada até um acampamento base - em que só nós estávamos no sopé da montanha -, mais um dia até o que chamamos de acampamento avançado, a mais ou menos 5500 m de altitude (onde tentamos descansar por algumas horas), e de lá partimos para o que seria a investida final ao cume.

     Acordamos por volta das duas da madrugada e começamos a escalar às três. Por volta das dez horas da manhã ainda não havíamos chegado ao topo e a situação estava tensa - tempo perigosamente instável, várias cravasses de profundidade indefinida se escondendo sob a neve, exaustão física, dificuldade de respirar. 

     Devido à hipoxia, em certos momentos já não sabia se estava acordado ou se tinha cochilado por alguns minutos, não entendia o que o Manoel falava e já quase não raciocinava direito em relação aos dados do problema que tínhamos em mãos. 

    A Laura e o Manoel acharam melhor então abortar a tentativa de chegar ao cume, principalmente devido à instabilidade do tempo e ao avançado da hora (considerando o tempo que precisaríamos pra retornar ao nosso acampamento base). Estávamos aproximadamente a 6100 m de altitude quando iniciamos o retorno.











     Voltando às altitude mais baixas tudo foi ficando mais suportável. De Chukhun, a 4700 m de altitude, que foi nossa base de início e de término da escalada, passamos por Tengboche, onde fica o maior monastério budista do Himalaia, novamente por Khumjung e, por fim, chegamos a Syamboche, de onde poderíamos pegar um helicóptero de volta a Katmandu, se conseguíssemos um lugar nos disputados voos. Isso nos economizaria uns dois ou três dias de caminhada até Lukla, de cuja pista de pouso poderíamos, caso não desse certo o voo de helicóptero,  voar de volta à capital.
















     No dia 26 de abril, após uma longa e apreensiva espera de várias horas, finalmente conseguimos os lugares e embarcamos no helicóptero para mais um voo emocionante, temerário e extremamente bonito por sobre as montanhas do Himalaia, encerrando de forma espetacular aquela vivência inesquecível, marcante e extremamente gratificante.






Manoel e eu dentro do helicóptero, voando de volta a Katmandu.



Um esboço do caminho que fizemos nos 18 dias de trekking.


     Os dezoito dias que passamos nas montanhas do Himalaia foram uma vivência intensa e extrema sob diversos aspectos: desde a beleza natural e cênica da natureza, passando pelo desgaste físico, pelo frio, pela hipoxia sempre insidiosa, pelas precárias condições de alojamento, alimentação e higiene, pelo isolamento, pelo risco sempre iminente de um possível acidente, de um problema de saúde mais grave, até questões mais sutis como o estado emocional e psicológico de estar submetido a esse conjunto de sensações máximas e de se sentir pequeno e insignificante frente à grandeza das montanhas em volta. Sob todos os ângulos, foi uma viagem épica.

     Além de tudo isso, ainda pude desfrutar do luxo de ficar todo esse tempo sem mexer com dinheiro e sem comprar nada, já que todo o encargo administrativo e financeiro do trekking ficou a cargo do Manoel. Decididamente foi um período fora do comum.

     De volta às comodidades de Katmandu, descansamos e nos alimentamos bem e em seguida partimos para a terceira etapa do nosso programa, uma expedição de três dias descendo o Rio Seti de caiaque, inseridos numa equipe de apoio nos moldes do que fizemos no rafting algumas semanas antes. 




     Foi divertido, interessante e, de certa forma, relaxante, mas talvez não tenha sido muito oportuno. Teria sido melhor se tivéssemos dado um tempo pra assimilar e curtir melhor a extraordinária vivência que tivéramos nas montanhas. Mas valeu, de qualquer forma. 









     Então voltamos a Katmandu para finalmente colocar as ideias em ordem e tentar diminuir um pouco o ritmo. Demos por encerrado o serviço de guia do Manoel e revertemos a relação cliente-contratado para simples amizade, que, àquela altura, já estava consolidada.



Voltando do ponto aonde terminamos a remada de caiaque para Katmandu, no teto do ônibus... sob a proteção dos meus fiéis anjos da guarda...



     O Manoel partiria para o Tibete, sozinho, em poucos dias, para uma de suas viagens de exploração, e eu me concedi uns dias livres em Katmandu pra tentar assimilar tudo o que tinha visto e sentido nos últimos tempos.

     Nos dois ou três dias seguintes, passei horas sentado nas praças, nos muros, nas cafeterias, em Katmandu e na cidadela histórica de Baktapur, escrevendo ou andando pelas ruas, observando as pessoas, fotografando, apreciando as lojas de artesanato, de mapas, de livros, pensando na vida, ouvindo música, sentindo-me maravilhosamente vivo.

























































     Havia meio que previsto aproveitar que estava por aquelas bandas e investir alguns dias ou semanas seguintes pra dar uma rodada pela Índia, que estava ali do lado. Mas nesses dias de "descompressão" em Katmandu me dei conta que estava extremamente cansado e emocionalmente desgastado (ainda que no bom sentido) com tudo o que tinha vivido recentemente.

     Decidi então, meio de repente, mudar tudo. Na véspera do voo para Nova Deli, na Índia, fui a um escritório da British Airways (companhia com a qual tinha os voos agendados) e remarquei o voo direto para Londres, prevendo fazer um intervalo de dez dias por lá... Mas aí já é outra história...

     Na ocasião ainda não havia percebido, mas várias sementes haviam sido lançadas no campo fértil da minha imaginação e sonhos... Sementes que, cedo ou tarde, germinariam e dariam um sentido valioso à minha existência.






Gratidão enorme por ter vivido essa viagem.


(Escrito em Março de 2016)




P.S.


1)


     Ao longo desses vinte anos o Manoel continuou dedicando sua vida a viagens, à montanha, ao auto-conhecimento, ao mundo, e se tornou um dos mais experientes e bem sucedidos montanhistas brasileiros, tendo, entre muitos outras conquistas, chegado ao topo do Everest em maio de 2010 e completado a escalada da montanha mais alta de cada continente ("os sete cumes") em 2011. E já guiou mais de sessenta grupos no trekking ao campo base do Everest (ainda que pelo menos um desses tenha sido de apenas um camarada...).




     Voltamos a nos encontrar seis anos depois dessa viagem, no Brasil, ocasião em que participei com ele e com o Romualdo Kubiak de parte de uma expedição que pretendeu percorrer do Atlântico ao Pacífico em múltiplas modalidades esportivas (pedalando, correndo e remando).
     



2) Pós viagem

    Quando voltei ao Brasil, ao todo cerca de sete semanas após a partida, entrei na "fase pós viagem", na qual experimentei diversas outras emoções e efervescência de ideias. Desde uma paralisante crise financeira (decorrente de ter partido pra viagem praticamente sem preparo prévio algum), até certa dificuldade real de me adaptar às demandas e modo de raciocínio das pessoas à minha volta, passando por um período extremamente introspectivo e reflexivo, no qual tentei, sem êxito, reordenar o meu mundo mental para a vida que tinha que tocar.

    Creio que a experiência da viagem só amadureceu de fato mais de um ano após o regresso, quando comecei a conseguir enxergar o que estava acontecendo com um pouco mais de clareza e de força, e me posicionar com um pouco mais de coerência perante a vida, não apenas devido à viagem, mas em relação a todos os valores pessoais que estavam em reconstrução nessa época.

    Essa fase toda foi, enfim, mais ou menos como um verdadeiro renascimento. E valeu cada minuto de suas dores e alegrias.



3) "Sagarmatha" é como os nepaleses chamam o Monte Everest, e significa "deusa mãe do céu".



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