C H A P A D A D O S V E A D E I R O S
Viagem de bike na
Chapada dos Veadeiros
300 km de pedal em três dias, com o Alexandre Manzan
Dar
uma pedalada no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (em Goiás, a cerca de
230 km de Brasília) era uma daquelas tantas ideias guardadas no arquivo de “um
dia fazer”, inspiração de cerca de uma década atrás, da época em que morei em
Brasília e fiz umas investidas por lá em outras circunstâncias.
Há
algumas semanas, conversando por e-mail com o Alexandre Manzan, amigo de outras
histórias, ele comentou comigo que estava com uma viagem de bike marcada para
aquela região nos próximos dias. Dei uma checada na minha agenda e no meu
“oráculo” e prontamente atendi ao convite.
Saímos
de Brasília de carro, levando as bikes, no sábado, 18 de abril, à tarde.
Passamos a noite numa pousada em Alto Paraíso de Goiás, uma típica cidadezinha de
interior, numa das extremidades do Parque Nacional.
Na
manhã seguinte terminamos de ajeitar as coisas e pusemos nossas máquinas pra
rodar. Viagens de bike normalmente sugerem certo conservadorismo e cautela com
o trajeto a ser percorrido, além de um muito bom planejamento do que levar e
como levar. Pra essa viagem, seguindo a orientação do Manzan, adotamos um
esquema minimalista: dispensamos os bagageiros e levamos, cada um, apenas uma
pequena mochila com o mínimo indispensável para o pernoite pelo caminho e para
a manutenção das bicicletas.
Existe
uma estrada (predominantemente de terra) que praticamente circula o Parque e que
é, de certa forma, o percurso padrão a se fazer pra quem quer dar essa volta. O
Manzan, porém, já está num estágio de achar que isso seria óbvio demais, e por
isso bolou um percurso saindo o máximo possível dessa estrada principal,
seguindo por trilhas e, por vezes, apenas na direção geral através do cerrado.
Mas, segundo ele próprio, era um planejamento sujeito a possíveis problemas de
progressão...
Logo
na saída de Alto Paraíso pegamos uma trilha que seguia mais ou menos paralela à
estrada. Foi um trecho muito bonito e estimulante. O céu estava azul, com
algumas nuvens, e o calor já se fazia sentir, prenunciando que com o avançar do
dia a situação poderia ficar crítica. Nossa primeira parada foi no vilarejo de
São Jorge, 40 km distante da partida. Tomamos uma coca, apreciamos o ritmo
peculiar do movimento das ruelas, com as pessoas andando como que em câmera
lenta, e retornamos à nossa lida.
Continuamos
pelas trilhas e caminhos muito mais do que secundários cerrado adentro, até
que, em certo ponto, a trilha sumiu, e nos vimos no leito de um rio pedregoso
que se tornava cada vez mais acidentado e inóspito. Ficamos em dúvida entre
prosseguir, contando que em breve a trilha reapareceria, ou voltar e buscar uma
alternativa.
Nossa referência era a rota marcada no GPS do Manzan, que havia
sido montada tendo como base as ferramentas e “magias” do Google Earth. Deixamos as bikes por alguns minutos e fomos à frente
a pé, abrindo caminho, pra ver onde ia dar aquele negócio. Vimos que,
aparentemente, mais à frente o terreno voltava a ficar pedalável, então
retornamos, pegamos as bikes, carregamo-las por alguns metros, descendo o rio,
até encontrar, um pouco mais à frente, um resquício de caminho que nos levou,
aos poucos, novamente à trilha que esperávamos encontrar. Valeu ter confiado e
insistido.
Pouco
depois, por absoluta falta de opção de prosseguir fora da estrada, retornamos à
estrada principal e tivemos uma pedalada mais normal, com um belo visual
da geografia e da vegetação da Chapada, até chegarmos a Colinas - 75 km
distante do ponto de partida naquele dia -, onde achamos um hotelzinho e
recolhemo-nos para um merecido descanso.
O
segundo dia de pedal era previsto para ser o mais longo do trajeto, além de
contar com vários trechos em que o Manzan não tinha certeza se dava pra passar.
A ideia, nesses pontos, era verificar in
loco as condições do terreno e da vegetação, e aí decidir por onde
prosseguir.
A
primeira parte dessa pernada foi muito bacana. Fomos seguindo por trilhas
visivelmente com muito pouco uso, subindo morros, atravessando pastos,
descobrindo paisagens maravilhosas a cada curva, sob um céu convidativamente
azul e uma temperatura (alta) não tão convidativa assim.
Umas duas horas depois
chegamos a um povoado chamado Lajeado – meia dúzia de casas com um campo de
futebol no meio. Achamos um barzinho, pedimos uma água gelada e batemos um
divertido papo com a mulher que nos atendeu, que nos contou que o seu sonho era
“ter uma bicicleta como essa”...
Sob
o sol quase do meio dia do cerrado goiano, prosseguimos por caminhos cada vez
mais improváveis, guiados pela linha roxa na tela do GPS afixado no guidão da
bicicleta do Manzan. Se o calor, o terreno e a vegetação (por vezes, mato
fechado) nos castigavam, a paisagem ao longe e em volta nos deliciava e
hipnotizava. Estávamos gostando da brincadeira.
Mas
não demorou até chegarmos num ponto em que a linha indicada no GPS apontava
para um local em que não havia trilha alguma, mas sim mata fechada e intransponível.
Ainda tentamos, por cerca de uma longa hora, abrir caminho por dentro do mato,
mas arranhados, suados e cansados, fomos convencidos pelas circunstâncias – não
dava pra passar.
Restava-nos
retornar à estrada principal e seguir em direção ao nosso próximo destino.
Porém, a essa altura do campeonato, já estávamos bastante longe da estrada, e
literalmente no meio do nada. Uma vez abandonada a rota do GPS, nosso meio de
orientação passou a ser a direção geral a seguir e eventuais informações de
pessoas que pudéssemos encontrar pelo caminho.
Voltar
à estrada principal nos custou um precioso tempo, além de significativo
desgaste físico, muitas idas e vindas nas infinitas bifurcações e ramificações
das trilhas e estradinhas da região, mas nos rendeu também paisagens únicas e
enternecedoras que só os caminhos imprevistos podem proporcionar.
Vimo-nos
no vilarejo do Rio Preto, na Estrada Principal, por volta das duas e meia da
tarde, já bastante cansados (eu bem mais do que o Manzan, logicamente), com
muito calor e um tanto desinformados sobre quanto faltava para chegar ao nosso
destino previsto para aquele dia.
Depois de tomar um revigorante banho de rio, paramos
no único barzinho do povoado, pedimos uma coca e perguntamos ao camarada que
nos atendeu quanto faltava pra Cavalcante. O cara falou: “78 km”. Quase
engasgamos de susto. Caramba! Não era uma boa notícia. Se tivéssemos seguido a
trilha que não existia lá atrás, teríamos saído muito à frente daquele ponto em
que nos encontrávamos agora. Bem, paciência...
Voltamos
à estrada, que, nesse trecho era um estradão de terra vermelha atravessando uma
região nitidamente desabitada e isolada do mundo. No resto do dia cruzamos tão
somente com dois ou três carros. A paisagem era magnífica. Um longo movimento
rochoso do terreno se estendia ao longe, emoldurando aquela terra de ninguém e
dando graça à árida vegetação.
No
meio da tarde estávamos naquela situação em que já estávamos bastante cansados
e ainda faltava muito pra chegar à cidade. Não havia qualquer tipo de apoio ou
povoado no caminho. Apenas estrada, cerrado, céu e silêncio. Só havia duas
opções: aconchegar-se ao pé de uma árvore e passar a noite sob o luar do sertão
ou continuar pedalando até chegar a Cavalcante.
O
dia acabou e os quilômetros não. Às seis e meia, já escuro, chegamos ao sopé da
serra que sabíamos que ficava a cerca de 15 km da cidade. Era uma subida
íngreme e desafiadora, em particular naquelas condições. O lado bom, se pode-se
dizer assim, é que como estava escuro não dava pra ver até onde ia a subida.
Com nossas lanternas de cabeça a iluminar o caminho, só o que se via era poucos
metros à frente. Fora isso, uma grande e incrivelmente acolhedora escuridão.
Chegamos
às luzes da cidadezinha de Cavalcante pouco depois das sete e meia da noite –
130 km percorridos, 2400 metros de ascensão acumulada. Eu estava muito mais
cansado do que gostaria, mas estava também naquele estado meio extasiante de
ter feito algo muito além do convencional. Fomos então buscar um local para
pernoitar, já que não tínhamos reserva. Por sorte, achamos, após algumas
tentativas mal sucedidas, uma simpática pousada onde pudemos gozar do prazer
impagável de um bom banho, um rápido lanche e a cama mais maravilhosa do mundo.
O
terceiro e último dia seria, segundo o planejamento do Manzan, o mais incerto,
do ponto de vista do caminho a seguir. Havia um longo trecho que não sabíamos
se seria possível passar com as bikes. Levando em consideração o alto desgaste
do dia anterior, o nosso estado de satisfação com a brincadeira e algumas
informações colhidas com habitantes locais sobre o possível caminho que
seguiríamos pelas trilhas (quer dizer, a informação é de que não havia trilha
alguma), resolvemos usar um pouco do nosso bom senso, já que o havíamos
economizado bastante nos últimos dias, e prosseguir nessa pernada pela estrada
principal, que, a partir daquele ponto, era asfaltada até Alto Paraíso, nosso
ponto de chegada.
Tranquilo
então? Absolutamente não! A estrada parecia estar com algum tipo de feitiço,
pois incrivelmente só subia. Mesmo quando parecia lógico que haveria uma
descida, havia nova subida. Isso, somado ao calor sufocante e ao cansaço
acumulado criou uma situação bem “divertida”. Nesse trecho encontramos um cara
de Brasília, pedalando sozinho por alguns quilômetros na mesma direção que nós.
Mais à frente ele foi resgatado pelos amigos (de carro) e nós seguimos.
E assim fomos
indo, subida após subida, até passar dos 1500 metros de altitude, e começar a
sentir aquele clima parecido com o de montanha. A certa altura a temperatura
chegou a ficar amena, em consequência do ganho de altitude.
A
paisagem continuava bonita, mas pedalar no asfalto definitivamente não tem o
mesmo encanto das estradinhas de terra. Ainda que não tão movimentada, havia um
tráfego razoável de carros que era suficiente pra quebrar o prazer de pedalar
introspectivamente em silêncio.
Avistamos
Alto Paraíso de longe e do alto. Agora, finalmente, era só descida até a
cidade. Havíamos conseguido, apesar da dureza e do desconforto dessa última
pernada – 95 km percorridos e mais de 1800 metros de ascensão acumulada. Encostamos
num posto à entrada da cidade por volta das três da tarde, sedentos, famintos,
esgotados, morrendo de calor, mas inebriados de uma sensação impossível de
descrever.
Brindamos
com um refrigerante gelado, sob o olhar curioso das pessoas ao redor, e
encaramos um bufê de comida a quilo que não era exatamente uma maravilha, mas
que nos serviu muito bem naquele momento.
No
final das contas fica a lembrança de uma longa estrada atravessando uma região
muito bonita, desolada e quente, sob um céu predominantemente azul e sobre uma
máquina pela qual temos o mais profundo respeito e admiração – um quadro, duas
rodas, pedais e corrente. Os pedais girando sob nossos pés, sonhos e devaneios
na cabeça e um mundo em volta.
G R A T I D Ã O
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