1ª Maratona de Aventura Serra Catarinense
Muitos bilhões de anos depois do Big
Bang esse ser humano aqui acorda às quinze pras cinco da manhã de um domingo
num quarto de uma pousada na cidade de Urubici, em Santa Catarina, onde estou
pra correr a assim chamada "Primeira Maratona de Aventura da Serra
Catarinense", dali a poucas horas. Levanto meio sonolento e vou ao
banheiro escovar os dentes, quando ouço um barulhinho no telhado que me dá uma
pontada no coração (!!!) - chuva. A gente se inscreve pra uma prova como essa
meses antes, e dentre tantas variáveis, o tempo, definitivamente, é uma grande
e imprevisível loteria. Fazer o que?
Vale lembrar que Urubici é
nacionalmente conhecida por ser a cidade mais fria do país. Hummmmm... Uma
maratona ao estilo corrida de montanha pra correr com chuva e frio com certeza
não é uma combinação auspiciosa. Mas, como diz o ditado gaúcho: “não tá morto
quem peleia, tchê!” Muita calma nessa hora.
Como alguma coisa a título de
desjejum e vou caminhando (debaixo de chuva, no escuro) ao local marcado pra
pegar o ônibus. Lá estavam os demais malucos reunidos pra brincadeira - não
mais do que uns quarenta. Todos com aquela cara de "putz, que encrenca..."
O camarada da organização pede a
palavra e faz alguns rápidos comentários sobre a prova, começando por afirmar
que a prova não seria cancelada (parece que havia a esperança dessa saída
honrosa no ar), e em seguida diz algo como: "não vou desejar boa sorte pra
vocês porque quem treinou, treinou, quem não treinou não vai adiantar ter
sorte." Pode parecer meio antipático, mas gostei desse cara! Curto e
grosso. É isso aí! Nada de chororô. Se
não fez o dever de casa, agora vá lá fora arcar com as consequências!...
Aí seguiu-se cerca de uma hora e meia
de uma tediosa viagem de ônibus até o local da largada, e lá chegando, alguns
minutinhos de ajuste do equipamento. Descubro então que a minha bolsa de água
está vazando, além de ter sumido a pontinha do canudo que permitiria controlar
o fluxo da água. Considerando o clima lá fora, acho que falta de água não vai
ser um problema, e não dou muita bola pra esses detalhes. Mas, ainda assim,
cato uma garrafa vazia de gatorade que estava jogada por ali, encho até a
metade de água e jogo na mochilinha (vai que...).
Uma das questões complicadas nessas
situações é decidir como se equipar. Dentre várias possibilidades, decido
correr com uma bermuda de lycra (do triathlon), polainas de compressão, calça
de corrida de lycra (por cima de tudo - uma combinação inédita, mas a situação
estava realmente crítica!), tênis, meia e duas camisas (uma das quais de manga
comprida) desses tecidos tecnológicos que prometem maravilhas (além de boné e
uma bandana nas orelhas), mais uma jaqueta de goretex que saquei da minha
jaqueta de motociclismo, e como tal, não era exatamente feita pra correr, mas
naquelas condições isso não era muito relevante.
Às oito e meia alguém gritou um
"três, dois, um, vai" debaixo de chuva e um bando de gente agasalhada
e encapuzada até a alma saiu correndo feito autômato. Seja o que Deus quiser!...
Nessas horas o melhor é mesmo começar o quanto antes.
O começo é daquele jeito... Aquela
sensação de que "esse negócio não vai dar certo". Mas aí penso:
"estou bem alimentado, bem dormido, quase até bem treinado, e há fartura
de oxigênio no ar... O que pode dar errado?" A rigor, talvez a questão não
fosse exatamente essa e um monte de coisas poderia dar errado, mas não queria
pensar nisso naquela hora.
Sei que lá por dentro meus músculos,
coração, pulmões, células, de alguma forma estão mais ou menos acostumados com
o que está por vir, e eles vão achar o caminho pra gente fazer o que veio fazer
aqui. Pelo menos assim espero.
Lá pelo quilômetro dez,
milagrosamente, parece que a chuva deu uma trégua, e começo a sentir que a
jaqueta de goretex tá me esquentando demais. Então a tiro e a coloco na
mochilinha de hidratação.
O que me motivou a vir fazer essa
prova foi a expectativa de uma paisagem muito bonita. Com a chuva e o tempo
cinzento grande parte dessa promessa se viu comprometida. Mas é preciso ter
olhos pra enxergar. E às vezes é bom flexibilizar um pouco nossos conceitos
padronizados de beleza. O fato é que, mesmo debaixo de um tempo mal humorado, a
paisagem e o ambiente à nossa volta era muito especial. Aquele clima bucólico,
um tanto desolador, agravado por aquela paz típica de uma manhã chuvosa de
domingo, o barulhinho da água correndo de inúmeros córregos e encostas dos
morros, e o som ritmado dos passos na estrada de terra... Muito bacana.
Vamos correndinho, bem espaçados uns
dos outros, já que a densidade demográfica de corredores era bem pequena. O
caminho era basicamente uma estrada de terra, pedra e lama que insistia em
ficar subindo e descendo os infinitos morros do caminho.
A certa altura passa por mim um
camarada numa dessas "motinhas pau velho", com uma dessas cestas
amarradas atrás... Um trabalhador de algum sítio da região. E fico pensando se
eu teria o mesmo despendimento pra colocar a minha big trail numa estradinha
"ensaboada" como aquela.
Em certos trechos a lama era tanta
que nem as travas super-hiper-mega-plus aderentes do meu Salomon Speedcross
davam jeito de segurar os escorregões e quase tombos, mas vamos tocando.
Lá pelo quilômetro vinte e poucos,
num trecho em que já estava bem sozinho (não havia ninguém no meu campo visual
nem à frente, nem atrás), dou de cara com um touro dono de enormes chifres e
cara de muito poucos amigos naquele andar meio assustado em minha direção...
Hummmmm... Ok, a lógica é ele estar mais assustado comigo do que eu com ele.
Por via das dúvidas já bolo uma rota de fuga por cima da cerca ao lado e
continuo em frente. Felizmente o bichinho resolveu correr pro outro lado e eu
não precisei fazer uso das minhas habilidades de pular cercas em desabalada
carreira.
No quilômetro vinte e cinco começou
uma sequência de subidas íngremes e longas que colocou à prova toda aquela
imagem que todo bom corredor busca construir de si próprio. Ok, sem problemas,
é só continuar correndinho, devagar e sempre, um pezinho depois do outro...
Acho que correr é estar sempre à
busca de um estado de equilíbrio e de força que, a rigor, nunca se encontra. É
preciso ser pelo menos um pouco otimista pra ser um bom corredor. Devo
confessar que às vezes me passa pela cabeça o devaneio de correr sem me cansar,
ou, dito de uma melhor forma, sem ansiedade, sem pressa de chegar, de sensação
de esforço extremo. Esse é o "Santo Graal" do corredor. Um objetivo
inerentemente inalcançável, mas necessário.
E com esses pensamentos em mente vou
eu correndo por morros e horizontes cada vez mais isolados e desolados, cada
vez mais sozinho, mais cansado, e, agora, com um vento frio cortando as orelhas
e gelando tudo. Mas já estou nos trinta e poucos, e, embora procure focar na
respiração e em correr sem ansiedade de chegar logo, é bom estar cada vez mais
próximo da chegada.
Penso ainda que, nesse tipo de
corrida, não se pode mesmo ter pena de si próprio. Aquele sentimento de
"oh, que sofrido, tadinho de mim!..." Atitude e cabeça é tudo em
corridas difíceis como essa.
Quem olha de fora costuma pensar que
o corredor "gosta de sofrer". Mas não é isso... Pelo menos não deve
ser isso... Eu acho. A questão é que o sofrimento entra num contexto muito
relativo. Ok, chega uma hora em que parece que tudo dói, em que as pernas não
querem mais obedecer aos comandos da cabeça, mas mesmo nessa fase há também o
prazer contraposto da respiração trabalhando com a sua melhor intensidade, de
um sentimento de êxtase generalizado decorrente da "festa bioquímica"
dentro do organismo, do puro prazer de estar fazendo algo movido pela mais pura
força de vontade, pelo mais desnecessário dos motivos. Isso é sofrimento ou
prazer?...
No quilômetro trinta e nove parece
que cheguei ao ponto mais alto da região! Não há mais morros a subir à vista.
Tudo em volta é um horizonte de colinas e platôs a perder de vista. Sob os pés
uma estrada de pura pedra, fazendo com que cada passo seja um ato de equilíbrio
dinâmico. O céu continua cinza e o frio voltou a incomodar. A partir dali
começa uma descida vertiginosa, que, antes de representar alívio, devido à
acentuada inclinação, causa ainda mais dor muscular.
Avisto a chegada do alto. Uma casa à
beira da estrada com alguns carros e pessoas em volta. Vou chegando
devagarinho. Morto de cansado, mas sentindo-me vivo com nunca. Quatro horas e
quinze minutos depois da largada passo a linha de chegada e as poucas pessoas
em volta batem palmas e me cumprimentam. Simples assim. Que posso eu querer
mais da vida, pelo menos por hoje?
** Terminada a prova, vejo que fui
o quarto corredor a chegar, e embora conceitualmente esse tipo de classificação
seja muito relativa, é sempre bacaninha se sentir bem no “contexto”.
** A viagem de ida e volta entre Curitiba e Urubici, com uma pequena extensão a Porto Alegre após a prova, foi feita com a GS.
Gratidão.
Força Sempre
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