Moto e montanha, a fórmula
4 dias de moto de Curitiba a Mendoza,
5 dias de trekking nas montanhas do Parque Provincial Aconcágua,
4 dias de moto de Mendoza a Curitiba.
4 dias de moto de Curitiba a Mendoza,
5 dias de trekking nas montanhas do Parque Provincial Aconcágua,
4 dias de moto de Mendoza a Curitiba.
Transpor o abismo que existe entre
as ideias e a realidade nem sempre é fácil. Na sexta-feira, 11 de novembro,
estava tudo mais ou menos pronto para mais um voo solo com a GS, com destino
traçado para Mendoza, na Argentina. Mas um tempo de tempestade em toda a região
sul mais o cansaço inevitável do ritmo de trabalho de segunda a sexta me
fizeram adiar a partida. E já que estava querendo entrar numa de ser dono do
meu tempo (pelo menos por alguns dias), desliguei a ansiedade e procurei
aproveitar bem aquele intervalo não planejado.
Na
terça-feira continuava chovendo sem parar. Resolvi partir do jeito que estava.
Montei a bagagem na moto e me joguei na estrada. Partir é sempre aquela
sensação meio incômoda de deixar um porto seguro para o desconhecido. Mais do
que o porto, o duro mesmo é deixar as pessoas que se ama. Mas é o preço da
brincadeira, e que sempre tem a sua compensação lá na frente, na hora de voltar
pra casa.
Nessa
viagem tinha um roteiro e um cronograma bem definidos. A ideia era ir até Mendoza,
aos pés da Cordilheira dos Andes, na Argentina, em quatro dias de viagem, e a
partir de lá partir para um trekking ao acampamento base do Aconcágua, o que
demandaria mais uns cinco ou seis dias, e de lá retornar ao Brasil.
O
primeiro dia foi de chuva e frio. Imaginei que o tempo melhoraria no decorrer
do dia, mas me enganei. Resolvi então parar um pouco antes do previsto, na
simpática e acolhedora Erechim, no noroeste do Rio Grande do Sul.
No
segundo dia o tempo abriu completamente num céu absolutamente azul e aquele sol
esplendoroso, ainda mais se considerado em contraste ao dia anterior. Depois de
Passo Fundo a estrada fica bem menos movimentada e mais interessante, com boas
curvas, subidas e descidas e aquela paisagem bucólica do interior gaúcho. A
pernada do dia terminou em Uruguaiana (conforme o previsto), no meio da tarde,
já tendo que administrar um forte calor de trinta e tantos graus, mas nada que
fosse problema.
No Rio Grande do Sul
No
dia seguinte pela manhã, aduana de entrada na Argentina e lá vamos nós para
terras estrangeiras. E é incrível como a paisagem muda. Tudo plano, estradas
retas e aquela paisagem com o horizonte a perder de vista. Passei por Paraná e
Santa Fé, duas cidades grandes, uma de cada lado do Rio Uruguai, ligadas por um
túnel sub fluvial, e tocamos no sentido oeste, com a intenção de chegar a
Córdoba. Uma excelente auto-pista de mão dupla e absolutamente reta logo após
essa cidades foi uma tentação, mas me contive na velocidade cruzeiro moderada
de 120 a 140 km/h.
Passando
por uma cidadezinha chamada San Francisco veio a primeira encrenca da viagem:
fui parado pela Polícia e o Sr policial me veio com uma história de que eu
tinha passado um sinal vermelho e que por isso teria que aplicar uma multa...
“Tudo bem”, falei. Mas aí ele começou com um papo de que só o seu supervisor
poderia oficializar a tal multa e que ele ia demorar muito para poder chegar
até onde estávamos. Então entendi a jogada. Ainda resisti um pouco, mas depois
de meia hora de blá blá blá resolvi encurtar a conversa e deixei com o pobre
homem uma vergonhosa propina e segui meu rumo.
Chegando
aos arredores de Córdoba, com o sol incidindo bem direto na viseira do
capacete, achei que seria melhor passar da cidade e ficar numa cidadezinha menor,
logo depois. Assim encerrei o longo dia de quase 900 km num hotelzinho simples,
com a GS impassível como sempre e eu um tanto cansado, mas em paz.
Serra de Córdoba, Argentina
Pra
fugir um pouco das infinitas retas das estradas da região decidi encarar uma
serrinha – a Serra de Córdoba. Pouco depois da saída, no quarto dia de viagem,
já estava no agradável ambiente de montanha, com uma inspiradora sequência de
curvas, pouco movimento, temperatura agradável e muito à vontade com a
situação. Assim, fui me divertindo com a brincadeira, sem pressa, curtindo o
belo trecho.
Mas
num determinado momento havia um caminhãozinho na minha frente a 30 km por
hora, pista com faixa dupla e ninguém por perto... Quase instintivamente
coloquei para o lado e ultrapassei-o, com toda a segurança, mas eis que logo à
frente lá estava “La Policia”, numa típica “emboscada” dessas em que os caras
ficam escondidos em lugares estratégicos. Mandaram parar e dessa vez não houve
muita conversa. Pediram os documentos, conferiram e aplicaram a multa,
honestamente e dentro da lei. A ordem era pra pagá-la num banco, num prazo de
dez dias.
Passei
então por uma localidade turística muito simpática chamada Mina Clavero, uma
espécie de balneário de montanha, com muitas pousadas ajeitadinhas e restaurantes
convidativos. Toquei em frente. Veio então um trecho bem desolado até a cidade
de San Luís, onde encontrei a Ruta 7, que seguiu em pista dupla durante quase
todo o percurso até Mendoza, onde cheguei por volta das seis da tarde.
Fachada de uma igreja em Mendoza
Terminada
essa primeira etapa, era hora de pensar na próxima: o trekking ao Campo Base do
Aconcágua. Passei o dia seguinte atrás de tirar a permissão no Departamento de
Turismo, alugar alguns equipamentos, coordenar um local pra deixar a GS,
preparar a mochila e coisa e tal.
No
domingo, às onze horas da manhã, desembarcava de um ônibus na entrada do Parque
Nacional Aconcágua e de imediato levei um susto com o frio glacial e o vento de
tempestade que estava soprando. “Que frio é esse?!”, pensei. Logo em seguida
começou a nevar. Mas aquele silêncio e aquelas montanhas gigantescas foram me
envolvendo e me hipnotizando e a tranquilidade foi substituindo a apreensão. De
repente (3 horas depois) chegava ao primeiro acampamento, Confluência (a 3400 m
de altitude), satisfeitíssimo por estar fazendo o que imaginara na idealização
da viagem.
Pra
facilitar a logística do trekking contratei em Mendoza os serviços de
acampamento e alimentação nesses pontos de apoio durante a caminhada. Dessa
forma, tinha que carregar apenas itens de uso pessoal e segurança, ficando
aliviado das preocupações com barraca e comida. Em Confluência os serviços
foram muito bem prestados.
Acampamento Confluencia
Barraca dormitório no Acampamento Confluencia
Como
estava na primeira semana da temporada, ainda havia pouco movimento de outros
montanhistas e trekkers.
No
segundo dia dessa fase fiz uma longa caminhada até a chamada Plaza Francia, de
onde se avista a belíssima face sul do Monte Aconcágua. Foram cerca de três
horas de ida, uma hora e pouco de descanso lá e depois o retorno pelo mesmo
caminho para o acampamento de Confluência. Nesse trajeto acompanhei um guia
peruano que estava conduzindo um senhor australiano de uns sessenta e poucos
anos, cuja esposa havia permanecido no acampamento para descansar.
O terceiro dia foi marcado pela longa, bela,
dura e solitária caminhada até o emblemático acampamento de Plaza de Mulas,
campo base para a escalada do Monte Aconcágua. Caminhei o dia inteiro
completamente sozinho. Foram quase nove horas de trekking. Dei muita sorte com
o tempo. Foi um dia maravilhosamente ensolarado e luminoso.
Grupo de trekkers/ montanhistas a caminho da Plaza de Mulas
Pouco
antes de alcançar Plaza de Mulas (situada a 4300 m de altitude), comecei a
sentir os indesejados efeitos nocivos da não adaptação à altitude. Um pouco de
enjoo, dor de cabeça e leve tontura.
As mulas que transportam cargas na montanha,
daí o nome do Campo Base
Acampamento de Plaza de Mulas - Campo Base do Aconcágua
A
paisagem em volta, no entanto, compensava facilmente o sacrifício. Belas e
imponentes encostas nevadas subindo em direção ao céu, com um espetacular céu
absolutamente azul por cima.
Pra
piorar meu mal estar, a barraca prevista para ser meu alojamento naquela noite
havia acabado de ser montada, e estava com um insuportável e marcante cheiro de
plástico que só fez piorar meu estado.
Foi
uma noite bem difícil. Estava sozinho na barraca. Fez muito frio e passei muito
mal. Por duas vezes tive que levantar às pressas com ânsia de vômito. Esse é o
preço da falta de oxigênio decorrente da alta altitude, até o organismo se
adaptar.
No
dia seguinte, de acordo com meu planejamento e com as condições logísticas do
serviço de apoio, até poderia ficar em Plaza de Mulas e curtir um pouco mais o
icônico ambiente de alta montanha, mas resolvi não abusar da sorte, sob a forma
da fantástica janela de tempo bom de que desfrutava, e também pra sair daquela
difícil zona acima dos 4000 m, e decidi iniciar o retorno.
Fiz
o caminho de volta a Confluência, novamente em solitário por todo o dia, agora
descendo o gigantesco vale, curtindo demais a sensação de estar naquele
ambiente fantástico e me sentindo bem melhor com o avançar para altitudes mais
civilizadas.
Cheguei
de volta ao acampamento de Confluência no final do dia muito satisfeito com o
rendimento da pernada e já sentindo certo pesar por estar terminando aquela
fantástica vivência.
No
quinto e último dia na montanha fiz o caminho de volta à entrada do Parque, e
de lá mais alguns quilômetros até o vilarejozinho de Puente del Inca, de onde
peguei o ônibus de volta a Mendoza.
Ter
feito esse trekking foi uma bela e memorável experiência. Além da contemplação
e da curtição do ambiente de alta montanha, tive oportunidade também de
conversar com vários escaladores e trekkers de diversos países, cada um com sua
história e objetivos.
Foi
bacana também constatar que os argentinos cuidam muito bem do Parque, que, pelo
menos do que vi, está muito bem limpo e organizado, apesar, ou talvez por causa
da taxa um tanto elevada para a brincadeira (cerca de 300 reais para o trekking
de sete dias). Os guarda-parques são bem atenciosos e, pelo menos
aparentemente, adequadamente preocupados com o que está acontecendo no seu
quintal.
A
beleza cênica das montanhas é indizível. Simplesmente maravilhosa. Efetivamente
à altura (nos dois sentidos) da Cordilheira do Himalaia, com a vantagem de
estar aqui do lado e de ser bem mais
organizado do que aquelas bandas orientais, apesar de que o Himalaia tem nuances e uma simbologia que são
absolutamente inigualáveis.
De
volta a Mendoza constatei, com alívio, que a GS estava intacta e pronta pra
encarar a estrada. Fiquei um dia em ritmo de descanso e reorganização e no
outro iniciei o caminho de volta pra casa.
O
retorno, em mais quatro dias de tempo bom e astral elevado, foi sem problemas e
muito gratificante, pois contava com a satisfação do objetivo atingido e com o
estímulo extra de estar voltando pra casa. Voltei basicamente pelo mesmo
caminho, com algumas poucas alterações.
A
GS, como esperado, foi fantástica, irrepreensível, perfeita.
O
bom de rodar na Argentina, em comparação com o Brasil, é que as estradas por lá
ainda conservam um fluxo de veículos razoável, quer dizer, não estão
“entulhadas” de carros e caminhões como está a maioria das estradas no nosso
país (isso quando não são completamente desertas em certos trechos). Em
compensação é preciso lidar com as “diversas” polícias dos “hermanos”, o que,
em comparação com o Brasil, também é contrastante – por aqui cruzei os três
estados da nossa região sul e não fui parado nenhuma vez, nem se quer vi nenhum
policial rodoviário em estado de alerta nos Postos da PRF. Uma situação que
chega a ser um tanto preocupante pra quem sabe que, nesse tipo de ambiente, a
fiscalização é a alma do negócio.
Enfim
de volta a casa e à velha rotina, resta-me a satisfação de ter feito um passeio
bacana, grandes lembranças e emoções vividas em apenas quinze dias, essa
vontade louca de estar de volta logo a esse mundo encantador das viagens e explorações
e uma imensa gratidão pela sorte e pela força.
(escrito em dezembro de 2011, atualizado em maio de 2017)
Agenda realizada:
Dia 1: Curitiba a Erechim - 462 km
Dia 2: Erechim a Uruguaiana - 631 km
Dia 3: Uruguaiana a Córdoba - 834 km
Dia 4: Córdoba a Mendoza - 637 km
Dia 5: Em Mendoza, organizando o trekking
Dia 6: Mendoza à Entrada do Parque (ônibus)/ Entrada do Parque a Confluência (3 horas de trekking)
Dia 7: Confluência a Plaza Francia, e de volta a Confluência (6 horas de trekking)
Dia 8: Confluência a Plaza de Mulas (8 horas de trekking)
Dia 9: Plaza de Mulas a Confluência (8 horas de trekking)
Dia 10: Confluência a Puente del Inca (3 horas de trekkimg)/ Puente del Inca a Mendoza (ônibus)
Dia 11: Em Mendoza, descansando e reorganizando
Dia 12: Mendoza a San Francisco - 762 km
Dia 13: San Francisco a Uruguaiana - 585 km
Dia 14: Uruguaiana a Aratiba - 675 km
Dia 15: Aratiba a Curitiba - 503 km
Total rodado: 5.089 km
"Um pássaro que voa como uma flecha,
procurando o ninho antes que a noite desça completamente -
é como os que provaram a beleza e procuram abrigo até o outro dia,
na esperança de vê-la outra vez."
(Luiz Carlos Lisboa)
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