(fotógrafa: Simone Seguro)
Treinar para chegar a uma prova como essa em
condições de cumpri-la com certa dignidade e sem sofrer muito é mais ou menos como montar um quebra cabeça. É preciso ir encaixando as peças uma a
uma, procurando aqui e acolá, tentando perceber qual das peças espalhadas no
tabuleiro vai se encaixar naquele espaço vazio, e assim por diante.
Tudo para, na hora devida, estar
com o corpo preparado como que para uma pequena batalha, sem, no entanto, estar
cansado. Esse equilíbrio requer certa sabedoria, sobretudo quando se assume a
responsabilidade pela fórmula, como venho fazendo há algum tempo. Ou seja, se
algo desse errado, tinha que reclamar comigo mesmo...
Nos últimos tempos tenho pensado
bastante sobre o que nos faz realmente fortes fisicamente, de tal maneira que
sejamos capazes de manter e desenvolver uma capacidade motora que nos
possibilite desempenhar algumas tarefas um pouco mais exigentes de vez em
quando. De preferência sem grandes mudanças na rotina de treinamento.
Esse é um tema extremamente
instigante e desafiador. E nada fácil. Na verdade, os componentes dessa equação
são múltiplos e originários de diversos setores. Há o grande conjunto das
habilidades propriamente físicas, dentro do qual se encaixam atributos muito além do que
apenas força muscular. Cada vez mais estou consciente da importância, por
exemplo, da flexibilidade, da consciência corporal e da mecânica dos
movimentos, aspectos esses tão ou mais difíceis de serem desenvolvidos ou
aprendidos quanto a capacidade mais óbvia de fazer força, ou a igualmente
importantíssima capacidade cardiopulmonar.
Há também o grande conjunto das
habilidades psicológicas ou emocionais. Ou seja, é preciso ter “cabeça”, como
se diz comumente. Manter o "sangue frio" diante de turbulências e um certo distanciamento da realidade em volta fazem parte dessa virtude, além, ainda, de tentar enxergar a situação como se estivesse de um ponto de vista um pouco mais amplo do que esse instável espectro mental.
E, por fim, há o grande conjunto
da força anímica, digamos assim. O que pode ser entendido como as razões,
motivos e mistérios que nos movem à ação em determinada direção. É, talvez, a
força que faz a equação funcionar, unindo e harmonizando as demais.
[Didático demais esse
comentário?... Putz, também achei... rsrsrs]
O fato é que cheguei a essa prova
tendo feito um pequeno ciclo de treinamento um pouco mais específico de apenas
três semanas (além dos trinta anos antes disso... rsrsrs). Nesse curto período dei uma intensificada no volume e tentei
intensificar a altimetria dos percursos, buscando também correr mais em
ambientes rurais e terrenos acidentados, ao mesmo tempo em que mantive uns treininhos de bike
(estrada), uma ou outra sessão de natação, alguns treinos de exercícios
funcionais, uma pitada de Pilates, e, eventualmente, uma remadinha, pra
mudar um pouco o foco. Será que daria certo?
Essa prova de corrida de montanha
no belo Parque Ouro Fino, no município de Campo Largo, nos arredores de
Curitiba, prometia ser dura. O prognóstico, em números, era de 30 km de
distância, com 1345 m de altimetria acumulada. Ou seja, haveria muita
subida!
O dia amanheceu claro e,
excepcionalmente, sem previsão de chuva. Às oito horas em ponto foi dada a
largada.
É preciso esclarecer que corridas de montanha como essa não são
exatamente uma corrida no sentido tradicional do termo, em que o normal é
manter um ritmo estável e civilizado o tempo todo. Aqui a brincadeira se
assemelha mais a uma espécie de “rally humano”, em que as dificuldades de
progressão fazem parte do show.
Logo no começo, por volta do km
3, demos de cara com uma subida incrivelmente inclinada e intimidadora. Single track por dentro de uma mata
fechada, morro acima. Passos curtos e constantes, corpo aquecendo rapidamente,
e vamos tocando.
Conquistado o topo desse primeiro
grande morro, veio a descida, igualmente inclinada e acidentada. Divertido, mas
altamente desgastante. Senti que esses primeiros dez quilômetros deixaram a
musculatura bem comprometida. Por diversas vezes senti as pernas darem aquela
falhada, ou uma tropeçada numa raiz ou pedra, o que já era um sinal de stress muscular evidente.
Um dos morros do percurso.
Os pontinhos brancos na encosta são corredores.
Em vermelho, a inclinação.
Mais ou menos do km 11 ao 18 o percurso retornou às estradinhas de terra da região, o que contribuiu pra dar uma refrescada no aperto das trilhas e pra dar uma soltada no ritmo.
Mas aí
veio a temida subida do Morro da Palha. Uma encosta de inclinação super
agressiva subindo em direção ao céu. Para se ter uma ideia, o topo desse morro
é um tradicional ponto de decolagem de asa delta e paraglyding na região.
Em compensação, a vista lá de
cima é belíssima. Enxerga-se um mar de morros estendendo-se no horizonte em
todas as direções. Então era preciso descer, e aí veio o sofrimento dos
quadríceps e dos joelhos pra frear o peso do corpo e a inércia do movimento, e, em consequência, a importância de usar bem todas as articulações e o relaxamento da musculatura
pra amortecer esse esforço.
Por volta do km 23 percebi que
estava enfrentando uma espécie de motim do sistema muscular. As pernas se
recusavam a obedecer aos comandos mentais (na verdade, não conseguiam).
Experimentei fazer pequenas caminhadas pra ver se saía daquele momento ruim,
mas também não funcionou muito bem. Senti a respiração e o coração sobrando, e
pouco dispostos a mudar um ritmo já confortável só porque as pernocas estavam
cansadas.
Usei então uma velha “tática japonesa” de gritar um “bora, porra!” pra mim mesmo (aproveitando que não tinha
ninguém em volta), espantei aquele início de revolta interna e voltei a encaixar, na marra, um ritmo relativamente decente.
Assim, meio hipnotizado por esse
complexo de emoções e concentração nas passadas, os quilômetros foram passando,
e, meio que de repente, estava de volta às bucólicas trilhas do Parque Ouro Fino,
indicando que estava próximo do final.
Mais alguns minutos e lá estava o
pórtico da linha de chegada, com as pessoas em volta aplaudindo e aquela festa
boa de se ver nessas situações.
No final das contas, diria que o
“feitiço” até que deu certo mais uma vez. Mas faltou um pouco mais do ingrediente
“subidas íngremes” na fórmula do treinamento. Essas coisas não tem mágica nem
atalhos. Ou se faz o que é preciso, ou se paga o preço. Essa é a regra do jogo.
Consultando a classificação,
descobri que fiquei em 2º/10 na categoria 50-59
anos [14º/ 61 geral]. Pois é, já adentrei nessa nobre faixa etária, porque para
fins de classificação nesse critério, as provas esportivas normalmente
consideram a idade do atleta até o último dia do ano em questão. Como faço 50
anos em julho, me enquadraram na turma de cima [se fosse na categoria 40-49
anos teria ficado em 3º/19].
Mas, como sempre digo, isso é o de menos. O que realmente importa é entender e fazer funcionar essa mágica equação de (tentar) se fazer forte, e de fazer (bem, tanto quanto possível) aquilo a que nos propomos.
Bom demais!
Tênis utilizado: Salomon LAB - simplesmente fantástico!
Altimetria
Dados da corrida registrados no Garmin Fenix:
o tempo corrido de prova foi de 4h 07 min.
Apesar do GPS não estar em modo de pausa automática,
por diversas vezes ele parou de registrar o movimento,
acredito que devido à velocidade muito baixa de deslocamento
nesses momentos.
Daí a diferença de tempo e distância em ralação
ao efetivamente realizado.
Como se vê, o ganho de altitude registrado foi de 1.521 m
(mais, portanto, do que o previsto pela organização da prova).
P.S.
1) No mesmo evento houve também provas paralelas nas distâncias de 7, 15 e 50 km (esta sim para os fortes!... rsrsrs). Na prova de 50 km, entretanto, houve um problema na marcação do percurso (segundo a organização da prova, foi sabotagem), o que acabou causando o seu cancelamento (uma pena...).
2) Uma outra boa referência de nível de treinamento e condicionamento físico (além do desempenho na prova em si) é o impacto físico sentido no pós-prova. Nesse caso, vale dizer que ainda hoje (quatro dias depois) me lembro vividamente da brincadeira cada vez que vou subir ou descer escada... rsrsrs... Na forma de intensas "reclamações" musculares! Mas faz parte... Fora isso, tudo certo.
3) Crédito das fotos: fotógrafos "Esporte na Foto", quando indicado. Demais: arquivo pessoal.
"Nada é impossível para o homem arrastado por uma persuasão íntima."
(Chateaubrand, O Gênio do Cristianismo)
Força sempre. Parabéns meu irmão.
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