Caminho da Fé
414 km de mountain bike pelo interior de Minas Gerais e de São Paulo,
em sete dias
*em parceria com Newton Adriano Weber, Andréa Santana e Vanderson Sípoli.
Fé, segundo o dicionário básico
de Filosofia*, significa “atitude religiosa do verdadeiro crente que se liga a
Deus por um ato voluntário, a partir de uma testemunha de origem sobrenatural”.
Seja qual for a definição, a
explicação ou as nuances dessa virtude (que, ao lado da esperança e da
caridade, compõe o tripé de sustentação da teologia) o fato é que se trata de
um sentimento devocional que cativa nossas emoções desde sempre.
O Caminho da Fé, inspirado no
milenar Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, foi criado por um grupo
de amigos no ano de 2003, partindo, originalmente, da cidade de Águas da Prata,
no interior de São Paulo, e chegando à cidade de Aparecida, no vale do Paraíba.
Atualmente o caminho cresceu e incorporou outros ramais que se juntaram à
proposta inicial.
Mapa esquemático do Caminho
(Fonte da imagem: site "caminhodafe.com.br")
(Fonte da imagem: site "caminhodafe.com.br")
A maior parte do roteiro percorre
estradas vicinais não pavimentadas (estradinhas de terra), trilhas e bosques, e
atravessa a emblemática Serra da Mantiqueira, pelo interior dos estados de
Minas Gerais e de São Paulo. Um dos grandes destaques do cenário é a acentuada
altimetria, notada no sobe e desce constante em todo o percurso.
Altimetria entre Águas da Prata e Aparecida
(Fonte da imagem: site "caminhodafe.com.br")
O conceito primário da ideia é
que seja um caminho de peregrinação, pra ser percorrido a pé, e para isso foi
criada uma estrutura de pousadas e pontos de apoio que se distribuem a
distâncias viáveis de serem alcançadas pelo ritmo do caminhante.
A exemplo do caminho europeu que
lhe deu inspiração, aqui também há a credencial do peregrino, uma cartela na
qual vão sendo colocados os carimbos, colhidos em diversos locais, que atestam
a passagem por esses pontos.
A credencial do peregrino
O convite pra essa viagem surgiu
dos amigos Newton e Andréa, de Guaraqueçaba, há cerca de dois meses. A ideia
era percorrer, de bicicleta, o trecho entre as cidades de Tambaú e Aparecida,
perfazendo cerca de 430 km. Eles já haviam feito essa viagem, também de
bicicleta, na companhia de outro amigo, o Vanderson Sípoli, no ano passado, e,
por isso, tinham a experiência necessária para planejar da melhor forma as
pernadas que faríamos a cada dia.
Propuseram fazermos a empreitada
com um carro de apoio, o que nos permitiria pedalar sem a necessidade de levar
bagagem nas bicicletas.
O Sípoli, que pedalou com eles no
ano passado, fez parte da equipe novamente neste ano. E qual não foi minha
surpresa ao encontra-lo, para o começo da nossa viagem de carro de Curitiba a
Tambaú, e reconhecermo-nos como velhos camaradas de caserna, por termos
servidos juntos no 20º Batalhão de Infantaria Blindado, aqui mesmo em Curitiba,
no começo dos anos 2000. Mundo pequeno esse!
Saindo de Tambaú, fizemos o
percurso em sete dias, pernoitando ora em pousadas, ora em hotéis e, por vezes,
na casa dos habitantes locais, acostumados a receber os viajantes do caminho. O
Éverton, nosso motorista, nos encontrava ao final de cada dia no local marcado.
Dessa forma, pedalamos levando apenas uma pequena mochila com itens básicos e
de eventual emergência para a jornada.
Tivemos sorte com o tempo. Apesar
da previsão de instabilidade para toda a semana, pegamos chuva mesmo só no
primeiro dia, e ainda assim por apenas meia hora. Nos demais dias tudo esteve
muito úmido, com precipitações ocasionais rondando aqui e acolá, mas nada que
tenha se tornado um problema.
O ambiente rural em que estivemos
por quase todo o tempo nesses dias é, para quem aprecia, um verdadeiro prazer
de ser vivenciado. Campos e encostas verdejantes, riachos correndo por entre as
pedras, árvores altas e frondosas balançando ao vento, vaquinhas pastando ao
longe, vez ou outra plantações bem cuidadas junto a pequenas casas de madeira...
tudo compõe um cenário que nos remete à ideia central de simplicidade e de paz.
É como se fosse um outro mundo, que funciona num ritmo e velocidade diferentes
do formato urbano que nos cerca nas cidades.
Além de tudo, há o silêncio. Esse
prazer supremo ao qual nos desacostumamos no ambiente incessantemente
movimentado que nos rodeia. As noites, em particular, são um charme. Poder
dormir ouvindo apenas a leve brisa balançando a folhagem lá fora, ou
eventualmente os grilos e cigarras entoando seu cantar, é uma sensação boa e
reconfortante, que nos remete à impressão de que deveria ser sempre assim.
Mesmo durante a pedalada, por diversas vezes parava no meio da estrada e ficava
apreciando o magnífico silêncio em volta, sem vestígio de barulho de motores
até onde o ouvido alcançava.
Já as condições do terreno para o
ciclismo não eram assim tão tranquilas. A altimetria do percurso é realmente
algo assustadora. Praticamente não há retas. O tempo todo se está subindo ou
descendo. E há muitas subidas bem íngremes e bem longas (para se ter uma ideia, o ganho de elevação acumulado nos sete dias foi de 9.932m!). ‘Bem, mas se tem
subida, também tem descida, não é?!’. Sim, mas acontece que a matemática do
esforço nessa equação não é lá muito animadora. Se pensarmos numa subida e numa
descida com a mesma distância e grau de inclinação, veremos facilmente que o
esforço economizado na descida não se equivale ao gasto na subida equivalente.
Até mesmo no quesito tempo, pois a gente desce como um foguete, mas as subidas
são lentas como uma penitência.
Nesse sentido, busquei encarar
esse desafio com uma visão ascética. No final das contas, vistas com um pouco
de ‘boa vontade’, as subidas são até bem divertidas e instigantes. Há diversos
fatores que entram na conta, mas o mental é certamente dos mais relevantes. De
nada adianta reclamar ou sofrer pela expectativa do sofrimento. Analisando como
se estivéssemos com uma lupa, a gente vai percebendo que, a rigor, o problema
todo é apenas a dor, e a dor é apenas uma sensação fugaz e estridente. Nas subidas
mais íngremes desenvolve-se uma sequência de adaptações do corpo: começa com um
certo desespero e a sensação do ar queimando dentro do peito e as pernas
ardendo. Aos poucos, contrariando a expectativa da mente, essas sensações são
aceitas e tudo acaba dando certo. A dor continua, mas a reação a ela já não é de
rejeição, mas de pacífica convivência. De certa forma, arriscaria dizer que
essa sensação quase angustiante de estar no limite do esforço físico possível é
muito próxima ao mais puro prazer.
Considere-se ainda que o desafio
dessas subidas muito íngremes nessas estradinhas de terra não se restringe à
questão da inclinação. Há ainda as pedras soltas, os buracos, as valetas, por
vezes lama, galhos caídos no chão, etc. Ou seja, pedalar nessas circunstâncias
beira, em alguns momentos, a um verdadeiro malabarismo.
O tópico virou motivo de
divertidíssima brincadeira no nosso grupo. Primeiramente quando comentei com
meus amigos, em determinado momento, que eles podiam seguir no ritmo deles, que
eu iria devagar atrás... A piada, na situação em que nos encontrávamos, é que
simplesmente não havia outro modo de seguir a não ser devagar! Mais tarde,
conversando sobre uma subida particularmente dura que se aproximava, o Newton
comentou algo como: “não é que não dê pra subir pedalando... Se você for bom
mesmo, você consegue.” Bem, por esse critério dele, e considerando o que se
passou em seguida, nenhum de nós é tão bom assim [risos].
No meio desse fogo cruzado ainda
ganhei algumas aulas gratuitas de técnicas de pedalada, do nosso amigo Newton,
que me passou valiosas dicas de posicionamento e consciência corporal em cima
da bicicleta. Do alto de sua admirável experiência de ter sido atleta
profissional de ciclismo, dezoito vezes Ironman, mecânico profissional de
bicicleta e outras inúmeras histórias e peripécias, o Newton me explicou que,
ao contrário do que se costuma pensar, pedalar não é meramente intuitivo. Ou
melhor dizendo, pedalar com eficiência não é meramente intuitivo. Parece um
movimento simplório e repetitivo, mas visto sob um olhar apurado, há diversas e
bonitas nuances em cada detalhe. Como dizia um professor meu, ‘não há atividade
humana superficial e elementar’.
O convívio, ainda que pontual,
com os habitantes locais do caminho é também um prazer e uma lição de vida. A
gente relembra que a vida deveria ser simples, e se nos parece complicada aqui
no nosso mundinho, é porque a estamos distorcendo ou enchendo de conceitos
fabricados (às vezes por nós mesmos).
A questão da peregrinação, que,
como disse, é a proposta mais autêntica do caminho, me fez refletir bastante ao
longo desses dias. Cruzamos com alguns caminhantes no percurso e não há como
ficar indiferente a esses encontros. Caminhar tem uma beleza que lhe é própria,
e que é difícil de explicar.
Pessoalmente sempre apreciei essa
forma de percorrer distâncias, mas sempre a associei a lugares específicos (montanhas)
e cenários inspiradores. Mas caminhar por um caminho por onde passam veículos motorizados
e que atravessa cidades e localidades urbanas desconstrói esse modelo de
ambientes idílicos. A questão, acho, é que na peregrinação a atenção está muito
mais no próprio caminhar e no próprio caminhante do que na paisagem ou nos possíveis
motivos externos.
Acho que de alguma forma saí
dessa nossa viagem com uma visão um pouco modificada em relação ao conceito da
peregrinação, em relação à que tinha antes de percorrer o caminho de bicicleta.
Há também a questão do modo
adotado para percorrer o caminho, no sentido de ser com ou sem apoio externo,
seja a pé ou de bicicleta. Certamente qualquer uma das formas tem o seu valor,
mas é inegável que fazê-lo por conta própria, carregando os próprios pertences,
confere um traço mais independente e arrojado. Seja de bicicleta ou a pé, o
cuidado a ser tomado se for percorrer o caminho sem apoio, é levar apenas o
mínimo necessário. Usar alforjes nas bikes,
por exemplo, nem pensar. Não é percurso pra esse modelo de cicloturismo
clássico.
Outro tema interessante quando se
pensa em fazer um caminho como esse, é fazê-lo sozinho ou acompanhado.
Novamente qualquer uma das formas tem suas virtudes e contexto. Mas fico
pensando que sozinho, principalmente se for a pé, deve ser bem interessante.
Ótima oportunidade pra conviver consigo mesmo por algum tempo.
Sobre a fé, acho que poderíamos
dizer que o senso comum a entende como sendo a capacidade de crer sem
necessidade de provas. E sobre isso fico pensando que, se por um lado pode ser
considerado uma bela virtude, por outro poderia ser entendido como um tanto
leviano. Há quem diga que a fé é assunto da esfera da emoção, e que as pessoas
ou tem a dádiva de possuí-la ou não, ou seja, que não pode ser “construída”.
Pessoalmente sempre achei que é um tema mais ligado ao departamento
intelectual, que crer ou não crer está mais ligado a uma decisão ou escolha do
que propriamente a uma habilidade inata.
Painel em azulejo na rua de uma das cidades
Seja como for, confesso que
aprecio quem a tem (ou diz ter, o que talvez seja quase a mesma coisa...).
Quando chegamos a Aparecida, num domingo à tarde, fizemos um rápido passeio
pela Basílica de Nossa Senhora Aparecida, que estava, àquela hora, tomada por
fiéis entoando cantos religiosos e orações sagradas. É um ambiente que inspira
respeito e esse desejo inerente e longínquo do ser humano de querer se ligar a
algo maior e além dele mesmo. Ao mesmo tempo, na minha visão, parece que tinha alguma coisa “desencaixada” naquilo tudo, como a cena de um bom filme que parece a
realidade, mas ainda assim é apenas um bom filme (como afinal, tudo que nos rodeia).
Questões metafísicas à parte, o
fato é que foi uma bela experiência, que deixou, creio, uma semente para possíveis
desdobramentos futuros... Peregrinar! Deixar o mundo de lado por um tempo e
apenas andar. Vamos?
*** *** ***
Ao nosso grupo deixo aqui meu
mais sincero agradecimento e declaração de satisfação de ter convivido esses
poucos dias com vocês. Boa conversa, boas energias, boas risadas, troca de
experiências, respeito, ajuda, admiração – que mais poderia querer de
companheiros de uma jornada como essa? Bora pensar na próxima!
*** *** ***
A seguir, conto um pouco mais dessa história através de algumas fotos do dia-a-dia da viagem:
1º dia
De Tambaú-SP a São Roque da Fartura-SP (casa da Cidinha)
2º dia
De São Roque da Fartura-SP (casa da Cidinha) a Andradas-MG
3º dia
De Andradas-MG a Inconfidentes-MG
4º dia
De Inconfidentes-MG a Consolação-MG
5º dia
De Consolação-MG a Brazópolis-MG
6º dia
De Brazópolis-MG a Campos do Jordão-SP
7º dia
De Campos do Jordão-SP a Aparecida-SP
Hora da partida, em Tambaú
Quilometragem regressiva no Caminho:
faltando só 406 km para Aparecida
Quando a gente ama pedalar até as poças d'água do caminho fazem sentido... rsrsrs
Só por aqui se pode saborear um autêntico refrigerante de maçã!... rsrsrs
Chuvinha
Vista da varanda da casa da Cidinha, onde pernoitamos
Comida caseira feita no fogão a lenha
2º dia
De São Roque da Fartura-SP (casa da Cidinha) a Andradas-MG
Partida no segundo dia, com a Cidinha e o Chico, nossos simpáticos anfitriões
Bar em uma cidade do Caminho: tem de tudo
Igreja em Andradas-MG
3º dia
De Andradas-MG a Inconfidentes-MG
Cuidados básicos
Paradinha pra tomar uma água
Comidinha no fogão a lenha
Almoço
"Toda vez que eu viajava pela estrada de Ouro Fino,
de longe eu avistava a figura de um menino..."
Monumento em homenagem ao "menino da porteira"
O capricho do crochê nas árvores em Inconfidentes-MG
Manutenção de primeiro escalão... rsrsrs
4º dia
De Inconfidentes-MG a Consolação-MG
"Porteira do céu" - o nome não é à toa
Símbolos da fé, no interior da capelinha abaixo
5º dia
De Consolação-MG a Brazópolis-MG
O Aurélio, peregrino aí da foto, estava fazendo o caminho sozinho.
Havíamos jantado na mesma mesa, na noite anterior,
na pousada em que pernoitamos,
ocasião em que nos contou um pouco da sua história de vida...
Nesse momento estava caminhando de sandália de borracha,
porque seu tênis havia arrebentado.
Simplicidade que emociona.
Comida caseira muito bem feita,
na casa de um habitante local,
em um dos vilarejos por que passamos
Pousada em que passamos a noite, próximo ao distrito de Luminosa
O Newton deu um trato nas bikes, que já estavam precisando
Distrito de Luminosa-MG (visto pelo Mavic),
aos pés da dura serra de mesmo nome
6º dia
De Brazópolis-MG a Campos do Jordão-SP
A tão falada Serra da Luminosa
Pedra do Baú, próximo a Campos do Jordão
Pedra do Baú (by Mavic)
7º dia
De Campos do Jordão-SP a Aparecida-SP
O Marcelo estava fazendo parte do caminho correndo -
3 dias, média de 60 km por dia, sozinho,
apenas com uma mochilinha de hidratação como bagagem.
Sempre dá pra ser mais arrojado!
Por essas bandas só dá pra andar assim:
preparado pra guerra!... rsrsrs
Coisas do interior: visitando o compadre pra uma prosa
Chegada ao nosso destino:
basílica de Aparecida
Interior da basílica: clima de devoção
A imagem de Nossa Senhora Aparecida, dentro da basílica -
O poder catalisador da crença.
No link abaixo um pequeno vídeo sobre nossa viagem:
*** *** ***
Preto e Branco:
Obs:
- O Newton e a Andréa estão guiando passeios de bike, caiaque e a pé em Guaraqueçaba e região, bem como no próprio "Caminho da Fé" (de bike). Super recomendado seus serviços e, sobretudo, companhia. No instagram: vivaguaraoutdoor
- Nosso amigo Sípoli aproveitou a viagem pra treinar para o Ironman Brasil, em maio próximo, bem como para o Celtman ("Extreme Scottish Triathlon"), do qual participará em junho. Serra da Luminosa não é nada perto disso! Boa sorte, garoto!
"Um dia podemos descobrir que toda viagem é,
de algum modo, uma peregrinação em busca de um lugar
que é o coração do viajante.
Seu destino final é sua realidade interior,
mas faz parte do ritual a busca em lugares distantes,
onde seu coração sempre vai,
desejoso de um encontro que nem sempre acontece."
(Luiz Carlos Lisboa)
Gratidão
Força Sempre
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