Tiger 900 Rally Pro

Tiger 900 Rally Pro
Tiger 900 Rally Pro

quinta-feira, 22 de março de 2018

Travessia da Praia do Cassino de bicicleta, Rio Grande/RS, 13 e 14 Mar 2018








Em um mundo sem ninguém

220 km de areias, mares e horizontes




Acho que o que me atraiu na ideia de fazer a travessia da Praia do Cassino de bicicleta foi justamente o perfil desse belo ambiente natural, marcado pelo isolamento, pelos amplos horizontes e pelo fato de ser extraordinariamente inóspito.

A Praia do Cassino, localizada no extremo sul do Brasil, entre as cidades de Rio Grande e Santa Vitória do Palmar, é uma das maiores extensões de praia contínua do mundo. São 221 km ininterruptos de areia e ondas quebrando, delimitados ao norte pelos molhes oeste da barra de Rio Grande e ao sul pelos molhes da barra do Arroio Chuí, na fronteira com o Uruguai.

Cerca de noventa por cento dessa extensão são despovoados. Entre as últimas casas do Balneário do Cassino (bairro de Rio Grande) e as primeiras do povoado do Hermenegildo (bairro da cidade de Santa Vitória do Palmar) são cerca de 180 km de deserto, mar e céu, sem nada pelo caminho.

Esse isolamento deve-se às características geográficas da área. A oeste da praia, ocupando uma longa faixa de cerca de 20 km de largura, há a Reserva Ecológica do Taim, o Deserto do Albardão e a Lagoa da Mangueira, tornando impraticável transpor essa área. Assim, a faixa de praia funciona mais ou menos como um grande deserto com apenas uma porta de entrada e uma de saída, ao norte ou ao sul.








Mapa da Praia do Cassino e região.
Em vermelho, o trajeto realizado.





Ou seja, uma vez dentro dessa área, não tem como contar com caminhos alternativos ou qualquer tipo de apoio ou mesmo de comunicação. Só o que se pode fazer é seguir em frente (ou retornar).

Essas condições instigaram minha imaginação e desejo de conhecer esse mundo in loco. Há tempos sonhava com a oportunidade de fazer essa travessia de bicicleta, sozinho. No começo desse ano decidi que o momento havia chegado. Reservei um tempo na agenda para a viagem e comecei a raciocinar sobre os detalhes práticos da pequena aventura.

Li na internet alguns relatos de pessoas que fizeram esse percurso também de bicicleta e, juntando com outras informações, a ideia foi, aos poucos, tomando forma. O impulso final veio quando “descobri” que um velho amigo estava morando no Balneário do Cassino – o Ener, amigo de longa data, de grande afinidade de assuntos de interesse, como motociclismo e fotografia.

Retomamos o contato e passamos a nos falar mais assiduamente nas últimas semanas, tirando dúvidas e acertando questões logísticas.

Planejei concluir a empreitada em três dias, com dois pernoites em acampamento no percurso. Tinha duas preocupações cruciais que só se definiriam mesmo quando estivesse com as rodas girando pela longa praia: as condições climáticas e do terreno que encontraria e as possibilidades de reabastecimento de água. Com relação ao tempo, me precavi fazendo um acompanhamento das previsões meteorológicas para os próximos dias, com a voluntariosa ajuda do Ener, que também ficou de olho nas condições que se aproximavam. A previsão era de tempo bom, sem chuva ou grandes alterações climáticas. Isso era muito importante, porque pegar um tempo chuvoso ou de mudança brusca do vento nessa região pode ser potencialmente complicador, ou mesmo perigoso. Com relação à possibilidade de reabastecimento de água potável pelo caminho não obtive nenhuma informação realmente conclusiva. O que consegui levantar é que “poderia haver” pequenas sangas onde poderia pegar água, mas nada muito certo.

Assim que, depois de dois longos dias de viagem desde Curitiba (pouco mais de 1000 km de distância) e infinitas arrumações e cálculos do que levar e do que não levar, me vi às oito horas da manhã junto ao molhe oeste da barra de Rio Grande, com tudo pronto pra partir, ao lado do meu amigo Ener, que havia ido pra dar o devido apoio moral, bem como para ficar com o meu carro para me resgatar em Chuí ao final da viagem.







(Crédito da foto: Ener Borba)





Demo-nos um forte abraço, tiramos umas fotos meio apressadas, montei na magrela, apontei pra direção sul e saí pedalando.







(Crédito da foto: Ener Borba)






Na bicicleta levava equipamento completo de camping (barraca, saco de dormir, isolante) e cozinha (fogareiro, gás, panela), comida para até quatro dias, cerca de 4 litros de água, além de artigos de uso pessoal (roupas, capa de chuva, agasalho), alguns aparelhos eletrônicos (câmera fotográfica, drone, celular, GPS), além de algumas ferramentas e itens de manutenção da bike, tudo acondicionado em dois alforjes laterais traseiros e uma pequena bolsa sobre o bagageiro. Ou seja, no final das contas, estava bastante pesado, ainda que tenha me esforçado pra evitar esse efeito.

Logo as casas do Balneário do Cassino foram ficando para trás. Menos de meia hora depois da partida já me sentia num “mundo sem ninguém”.















Os gigantescos cata-ventos do Parque Eólico do Cassino foram os últimos vestígios de civilização a desaparecer lentamente no horizonte atrás de mim. Aí então era só a grande praia à frente, o intimidador mar à esquerda, um deserto de areia à direita e um lindo e enorme céu azul por cima de tudo.














As condições climáticas e do terreno sobre o qual pedalava felizmente estavam bastante favoráveis. Sem vento ou com uma leve brisa a favor, sob uma temperatura, no entanto, bem mais elevada do que se poderia chamar de confortável. A areia era firma, mas apenas numa estreita faixa entre até onde as ondas alcançavam e alguns metros à direita. Isso me obrigava a pedalar bem próximo do mar, o que me levou a, por algumas vezes, ser surpreendido por uma onda mais forte e acabar tomando um pequeno e indesejado banho de água salgada na bike... “Ai meu deus!... aquela água salgada nas engrenagens e rolamentos!...”







A 21 km do início encontra-se o naufrágio do Navio Altair,
que afundou naquele local em 1976.














Há dois aspectos sobre pedalar num ambiente como esse que merecem ser considerados: um é a questão da falta de referência de passagem da distância. Por mais que se pedale, a sensação que dá é que não se sai do lugar, porque praticamente não há marcos visuais nos quais se apoiar. Tudo é um grande nada. Parece que o mundo está fora de escala. O outro, correlato a esse primeiro, é que a paisagem não muda. Bem como a direção e a altimetria. Não há atrativos como curvas, subidas, descidas, morros, rios, árvores, nada...














É lógico que sempre há nuances na paisagem aparentemente igual quilômetro após quilômetro. E é aí que está o desafio e a graça: enxergar os detalhes onde parece não haver nada.

Pra lidar com essa falta de parâmetros visuais usei, sem moderação, os dados de distância marcados pelo GPS que estava usando. O efeito colateral dessa mensuração é a tendência da atenção a esses dados consumir mais atenção do que seria ideal. E foi mais ou menos o que aconteceu. De repente lá estava meu velho espírito competitivo assumindo o comando da situação, fazendo contas, projeções, análises... Procurei ficar atento a esse processo e usar o lado bom dessa abordagem, buscando, ao mesmo tempo, não descuidar de curtir a paisagem, tirar fotos, pensar na vida e sentir o momento.







Farol do Sarita, a 62 km do início






Mais ou menos por volta de uma e meia da tarde, quando fiz uma parada um pouco maior para o “almoço”, havia percorrido 63 km. Comecei então a vislumbrar a possibilidade de colocar em prática uma ideia que tinha guardada na manga: se, em vez de fazer os previstos 80 km, fizesse 110, poderia tentar concluir o percurso em dois dias, e não em três, como planejado inicialmente.

Assim, adentrei ao período vespertino ainda com bastante energia, apesar do calor intenso que fazia. Pedalando e pensando na vida, me vi cruzando a marca dos 80 km pouco depois. Embalado pela energia animadora do sol a brilhar forte no céu, cheguei aos 110 km perto das cinco horas da tarde. Aí pensei: “parar por que?”. Estava um final de tarde tão bonito, com condições tão agradáveis, que resolvi continuar um pouco mais, apesar do cansaço físico que já se fazia bem presente.















Lembrei-me então que havia, no km 132 do trajeto, um farol da Marinha do Brasil chamado Farol do Albardão, que, pelo que havia lido, era a única construção de porte em todo o percurso. Não tinha certeza se haveria uma equipe de militares guarnecendo o local... Pensei que poderia ser uma boa ideia chegar até lá, apenas para ter uma referência pra fechar o dia, mas ainda faltavam pouco mais de vinte quilômetros, que naquelas condições, era bastante coisa.

Mas com calma e jeito por volta das seis e vinte estava na altura do Farol. Vi algumas pessoas correndo na praia e em seguida dirigindo-se às instalações, que ficavam a algumas dezenas de metros da praia. Armei minha barraca na areia e curti os últimos raios de luz daquele belo fim de tarde tirando algumas fotos e apreciando aquele raro momento.








Farol do Albardão, a 134 km do início

































Dia 1







Após o jantar, servido por volta das nove horas no aconchego do meu habitáculo, dei uma saída da barraca para uma caminhada nas proximidades e o cenário em volta parecia saído das páginas de um livro de ficção científica: o farol ligado, girando em intervalos regulares, lançando seu potente facho de luz à distância, três casinhas em volta, com luzes acesas sugerindo aconchego, um céu completamente estrelado lá no alto e aquele som das ondas quebrando ali do lado compunham um ambiente quase irreal, de tão bonito e inspirador. Foi um momento realmente mágico.

O dia seguinte amanheceu tão esplêndido quanto terminou o anterior. Às seis e quinze da manhã o sol surgiu sobre o longínquo horizonte marítimo, trazendo uma energia de continuidade da vida que me fez estremecer de emoção. Há muito tempo não via um nascer do sol tão belo.























Como havia feito 134 km no dia anterior, estava bastante confiante que venceria os oitenta e poucos quilômetros restantes e chegaria ao extremo sul do Brasil e ao final da praia neste dia. Mas a boa tocada da véspera teve seu preço. Estava me sentindo bem, mas também estava nitidamente cansado. Consumira boa parte do meu estoque de água potável, restando-me, após o desjejum, cerca de 1,2 litros, mais uns 600 ml de uma água que peguei pelo caminho, de fonte não muito confiável, e por isso estava ali como reserva.

Às sete e meia estava pronto pra recomeçar. Resolvi chegar até as instalações do Farol, não distante de onde acampara, pra pedir um pouco de água. O local era cercado, com o acesso fechado por um portão com cadeado e com várias placas de “Proibido Entrar”. Acenei para um cara que apareceu em uma das casinhas. Fui recebido por um sub oficial que disse ser o comandante da guarnição. Expliquei o que estava fazendo e ele se prontificou a me ceder um pouco d’água.

Batemos um papo rápido, no qual me explicou que sua equipe ficava cuidando do farol por três meses seguidos, até ser substituída pela próxima turma. Contou-me também que já havia fechado o tempo regulamentar pra ir pra reserva, mas continuava na ativa por conta de agregar algumas vantagens financeiras (... sempre assim...). Pelo que percebi havia ali cerca de seis ou sete militares. Comentou comigo também sobre a dificuldade de acesso ao local, dizendo que nem sempre os caminhões e pick-ups da Marinha conseguiam chegar lá – “se o vento virar não passa não...”, disse, referindo-se à areia da praia.














Em seguida retomei meu caminho. As condições não estavam tão boas quanto na véspera. O vento parecia entrar meio contrário algumas vezes e a areia tinha trechos bem fofos, dificultando bastante a pedalada. Por algumas vezes tive que desmontar da bicicleta e empurrar alguns metros, até passar uma área mais instável. A média de velocidade caiu em relação ao dia anterior.
















Nesta foto é possível observar, à direita, depois da faixa de areia, 
a Lagoa da Mangueira.






Mas o céu continuava azul e o sol, firme. Fiz uma pernada inicial de 20 km meio direto, e depois fui seguindo com paradas rápidas e ritmadas a cada 10 km. Interessante notar a mudança da granulação da areia, mais grossa nessa região mais ao sul. A paisagem a oeste também mudou um pouco, apresentando um aspecto ainda mais desértico e desolado do que a parte mais ao norte.














Mais ou menos à uma da tarde havia percorrido sessenta e poucos quilômetros. Sabia que em breve deveria enxergar as casas da vila que havia nas proximidades. A sensação de estar concluindo foi, aos poucos, se instalando, trazendo certo conforto psicológico e ânimo às pernas já desgastadas pelo constante esforço.















O vilarejo do Hermenegildo apareceu de longe e foi crescendo aos poucos, assim como as pessoas caminhando na praia. Em todo o trajeto desde o Balneário do Cassino, só encontrei o pessoal da Marinha no Farol do Albardão, ninguém mais. Retornar à civilização após algumas horas de isolamento é uma sensação ambígua: ao mesmo tempo que traz certa alegria, causa também aquela apreensão de estar de volta ao convívio com esse animal meio imprevisível que é o ser humano.


Às três e dez da tarde encostei nos molhes da barra do Arroio Chuí, ponto extremo sul do Brasil. Do outro lado estava o Uruguai. Havia concluído minha pequena travessia no meio do nada.

Viva a vida!





Molhes do Arroio Chuí, extremo sul do Brasil









Dia 2











Assista, no link abaixo, a um pequeno vídeo da viagem:



















Obs:


1) Do ponto final na praia até a cidade de Chuí propriamente dita ainda pedalei mais uns quinze quilômetros por uma estrada asfaltada. Só então parei num posto de combustível e me dei ao luxo de beber um isotônico gelado. Incrível a falta que faz beber um líquido gelado quando não se tem acesso a isso!



2) Pernoitei num hotel no lado uruguaio de Chuí e no dia seguinte me reencontrei com meu amigo Ener e sua esposa Priscila, que vieram, gentilmente, de Rio Grande com o Troller pela BR 471 para me resgatar. Aproveitando a oportunidade, retornamos a Rio Grande pela praia, usando o Troller para aquilo que ele foi feito, fazendo mais um lindo passeio. Veja algumas imagens dessa viagem no próximo post.



3) Meu muito obrigado ao Ener e sua esposa Priscila, que me receberam em sua casa e me apoiaram incondicionalmente em todas as etapas desse projeto.



4) Existe uma ultramaratona que propõe aos participantes percorrer toda a extensão da praia (226 km) em até 54 horas [Chama-se "Extremo Sul Ultra Marathon"], cuja próxima edição ocorrerá em Novembro de 2018 (caso alguém se habilite...). Descobri que existe também uma competição de kite surf que coloca os participantes pra fazer um down wind em toda a extensão de mar de ponta a ponta da praia (deve ser muito bacana!). Daí vem a ideia: por que ainda não criaram uma prova de Mountain Bike utilizando esse maravilhoso percurso? Fica a dica!



5) Todas as fotos: arquivo pessoal (exceto quando indicado o contrário).








"Quer sim, quer não, fui-me ao peregrino e disse-lhe:
'Vós de onde sois?"
E vai ele respondeu-me:
'Não tenho pátria. Sou pó, o pó é do vento."

(Camilo Castelo Branco)







Gratidão




Força Sempre











5 comentários:

  1. Mais uma pérola meu irmão. Parabéns.

    ResponderExcluir
  2. Bom dia, estou pensando em ir em março do ano q vem, vc achou muitos pontos de coleta de água doce?

    ResponderExcluir
  3. GRANDE AVENTUREIRO ASSIS... FANTÁSTICO este Desafio, nossos mais sinceros Parabéns Amigo!
    Obs.: Por pouco, muito pouco mesmo não nos encontramos no Chuí-RS, durante nossa Expedição de Bike URUGUAI 1.400Km, em fev/mar-18!!!

    ResponderExcluir
  4. Tenho 57 anos de idade sou filho de gaúcha,moro em Curitiba e aos 18 anos conheci os molhes da barra quando fui visitar o meu avô, sempre sonhei com essa viagem ,quase fui nos anos 90 ,mas a turma que eu arrumei, não puderam ir,sou barbeiro em Curitiba e corto o cabelo do seu amigo CARLOS,que viajo pro Chile agora no Carnaval

    ResponderExcluir
  5. Parabéns pela vitoriosa viagem, com lindas imagens,e lembranças

    ResponderExcluir