Em um mundo sem
ninguém
220 km de areias,
mares e horizontes
Acho que o que me atraiu na ideia
de fazer a travessia da Praia do Cassino de bicicleta foi justamente o perfil
desse belo ambiente natural, marcado pelo isolamento, pelos amplos horizontes e
pelo fato de ser extraordinariamente inóspito.
A Praia do Cassino, localizada no
extremo sul do Brasil, entre as cidades de Rio Grande e Santa Vitória do
Palmar, é uma das maiores extensões de praia contínua do mundo. São 221 km
ininterruptos de areia e ondas quebrando, delimitados ao norte pelos molhes
oeste da barra de Rio Grande e ao sul pelos molhes da barra do Arroio Chuí, na
fronteira com o Uruguai.
Cerca de noventa por cento dessa
extensão são despovoados. Entre as últimas casas do Balneário do Cassino
(bairro de Rio Grande) e as primeiras do povoado do Hermenegildo (bairro da
cidade de Santa Vitória do Palmar) são cerca de 180 km de deserto, mar e céu,
sem nada pelo caminho.
Esse isolamento deve-se às
características geográficas da área. A oeste da praia, ocupando uma longa faixa
de cerca de 20 km de largura, há a Reserva Ecológica do Taim, o Deserto do
Albardão e a Lagoa da Mangueira, tornando impraticável transpor essa área.
Assim, a faixa de praia funciona mais ou menos como um grande deserto com
apenas uma porta de entrada e uma de saída, ao norte ou ao sul.
Mapa da Praia do Cassino e região.
Em vermelho, o trajeto realizado.
Ou seja, uma vez dentro dessa
área, não tem como contar com caminhos alternativos ou qualquer tipo de apoio
ou mesmo de comunicação. Só o que se pode fazer é seguir em frente (ou
retornar).
Essas condições instigaram minha
imaginação e desejo de conhecer esse mundo in
loco. Há tempos sonhava com a oportunidade de fazer essa travessia de
bicicleta, sozinho. No começo desse ano decidi que o momento havia chegado.
Reservei um tempo na agenda para a viagem e comecei a raciocinar sobre os
detalhes práticos da pequena aventura.
Li na internet alguns relatos de
pessoas que fizeram esse percurso também de bicicleta e, juntando com outras
informações, a ideia foi, aos poucos, tomando forma. O impulso final veio quando
“descobri” que um velho amigo estava morando no Balneário do Cassino – o Ener,
amigo de longa data, de grande afinidade de assuntos de interesse, como
motociclismo e fotografia.
Retomamos o contato e passamos a
nos falar mais assiduamente nas últimas semanas, tirando dúvidas e acertando questões
logísticas.
Planejei concluir a empreitada em
três dias, com dois pernoites em acampamento no percurso. Tinha duas
preocupações cruciais que só se definiriam mesmo quando estivesse com as rodas girando
pela longa praia: as condições climáticas e do terreno que encontraria e as
possibilidades de reabastecimento de água. Com relação ao tempo, me precavi
fazendo um acompanhamento das previsões meteorológicas para os próximos dias,
com a voluntariosa ajuda do Ener, que também ficou de olho nas condições que se
aproximavam. A previsão era de tempo bom, sem chuva ou grandes alterações
climáticas. Isso era muito importante, porque pegar um tempo chuvoso ou de
mudança brusca do vento nessa região pode ser potencialmente complicador, ou
mesmo perigoso. Com relação à possibilidade de reabastecimento de água potável
pelo caminho não obtive nenhuma informação realmente conclusiva. O que consegui
levantar é que “poderia haver” pequenas sangas onde poderia pegar água, mas
nada muito certo.
Assim que, depois de dois longos
dias de viagem desde Curitiba (pouco mais de 1000 km de distância) e infinitas
arrumações e cálculos do que levar e do que não levar, me vi às oito horas da
manhã junto ao molhe oeste da barra de Rio Grande, com tudo pronto pra partir,
ao lado do meu amigo Ener, que havia ido pra dar o devido apoio moral, bem como
para ficar com o meu carro para me resgatar em Chuí ao final da viagem.
(Crédito da foto: Ener Borba)
Demo-nos um forte abraço, tiramos
umas fotos meio apressadas, montei na magrela, apontei pra direção sul e saí
pedalando.
(Crédito da foto: Ener Borba)
Na bicicleta levava equipamento
completo de camping (barraca, saco de dormir, isolante) e cozinha (fogareiro,
gás, panela), comida para até quatro dias, cerca de 4 litros de água, além de artigos de uso pessoal (roupas, capa de chuva, agasalho), alguns aparelhos
eletrônicos (câmera fotográfica, drone, celular, GPS), além de algumas ferramentas e itens de manutenção da bike, tudo acondicionado em dois alforjes laterais traseiros e uma
pequena bolsa sobre o bagageiro. Ou seja, no final das contas, estava bastante
pesado, ainda que tenha me esforçado pra evitar esse efeito.
Logo as casas do Balneário do
Cassino foram ficando para trás. Menos de meia hora depois da partida já me
sentia num “mundo sem ninguém”.
Os gigantescos cata-ventos do
Parque Eólico do Cassino foram os últimos vestígios de civilização a
desaparecer lentamente no horizonte atrás de mim. Aí então era só a grande
praia à frente, o intimidador mar à esquerda, um deserto de areia à direita e
um lindo e enorme céu azul por cima de tudo.
As condições climáticas e do
terreno sobre o qual pedalava felizmente estavam bastante favoráveis. Sem vento
ou com uma leve brisa a favor, sob uma temperatura, no entanto, bem mais
elevada do que se poderia chamar de confortável. A areia era firma, mas apenas
numa estreita faixa entre até onde as ondas alcançavam e alguns metros à
direita. Isso me obrigava a pedalar bem próximo do mar, o que me levou a, por
algumas vezes, ser surpreendido por uma onda mais forte e acabar tomando um
pequeno e indesejado banho de água salgada na bike... “Ai meu deus!... aquela água
salgada nas engrenagens e rolamentos!...”
A 21 km do início encontra-se o naufrágio do Navio Altair,
que afundou naquele local em 1976.
Há dois aspectos sobre pedalar
num ambiente como esse que merecem ser considerados: um é a questão da falta de
referência de passagem da distância. Por mais que se pedale, a sensação que dá
é que não se sai do lugar, porque praticamente não há marcos visuais nos quais
se apoiar. Tudo é um grande nada. Parece que o mundo está fora de escala. O
outro, correlato a esse primeiro, é que a paisagem não muda. Bem como a direção
e a altimetria. Não há atrativos como curvas, subidas, descidas, morros, rios,
árvores, nada...
É lógico que sempre há nuances na
paisagem aparentemente igual quilômetro após quilômetro. E é aí que está o desafio
e a graça: enxergar os detalhes onde parece não haver nada.
Pra lidar com essa falta de
parâmetros visuais usei, sem moderação, os dados de distância marcados pelo GPS
que estava usando. O efeito colateral dessa mensuração é a tendência da atenção
a esses dados consumir mais atenção do que seria ideal. E foi mais ou menos o
que aconteceu. De repente lá estava meu velho espírito competitivo assumindo o
comando da situação, fazendo contas, projeções, análises... Procurei ficar
atento a esse processo e usar o lado bom dessa abordagem, buscando, ao mesmo
tempo, não descuidar de curtir a paisagem, tirar fotos, pensar na vida e sentir
o momento.
Farol do Sarita, a 62 km do início
Mais ou menos por volta de uma e
meia da tarde, quando fiz uma parada um pouco maior para o “almoço”, havia
percorrido 63 km. Comecei então a vislumbrar a possibilidade de colocar em
prática uma ideia que tinha guardada na manga: se, em vez de fazer os previstos
80 km, fizesse 110, poderia tentar concluir o percurso em dois dias, e não em
três, como planejado inicialmente.
Assim, adentrei ao período
vespertino ainda com bastante energia, apesar do calor intenso que fazia.
Pedalando e pensando na vida, me vi cruzando a marca dos 80 km pouco depois.
Embalado pela energia animadora do sol a brilhar forte no céu, cheguei aos 110
km perto das cinco horas da tarde. Aí pensei: “parar por que?”. Estava um final
de tarde tão bonito, com condições tão agradáveis, que resolvi continuar um
pouco mais, apesar do cansaço físico que já se fazia bem presente.
Lembrei-me então que havia, no km
132 do trajeto, um farol da Marinha do Brasil chamado Farol do Albardão, que,
pelo que havia lido, era a única construção de porte em todo o percurso. Não
tinha certeza se haveria uma equipe de militares guarnecendo o local... Pensei que
poderia ser uma boa ideia chegar até lá, apenas para ter uma referência pra
fechar o dia, mas ainda faltavam pouco mais de vinte quilômetros, que naquelas
condições, era bastante coisa.
Mas com calma e jeito por volta
das seis e vinte estava na altura do Farol. Vi algumas pessoas correndo na
praia e em seguida dirigindo-se às instalações, que ficavam a algumas dezenas
de metros da praia. Armei minha barraca na areia e curti os últimos raios de
luz daquele belo fim de tarde tirando algumas fotos e apreciando aquele raro
momento.
Farol do Albardão, a 134 km do início
Dia 1
Após o jantar, servido por volta
das nove horas no aconchego do meu habitáculo, dei uma saída da barraca para uma caminhada
nas proximidades e o cenário em volta parecia saído das páginas de um livro de
ficção científica: o farol ligado, girando em intervalos regulares, lançando
seu potente facho de luz à distância, três casinhas em volta, com luzes acesas
sugerindo aconchego, um céu completamente estrelado lá no alto e aquele som das
ondas quebrando ali do lado compunham um ambiente quase irreal, de tão bonito e
inspirador. Foi um momento realmente mágico.
O dia seguinte amanheceu tão
esplêndido quanto terminou o anterior. Às seis e quinze da manhã o sol surgiu
sobre o longínquo horizonte marítimo, trazendo uma energia de continuidade da
vida que me fez estremecer de emoção. Há muito tempo não via um nascer do sol
tão belo.
Como havia feito 134 km no dia
anterior, estava bastante confiante que venceria os oitenta e poucos
quilômetros restantes e chegaria ao extremo sul do Brasil e ao final da praia
neste dia. Mas a boa tocada da véspera teve seu preço. Estava me sentindo bem,
mas também estava nitidamente cansado. Consumira boa parte do meu estoque de
água potável, restando-me, após o desjejum, cerca de 1,2 litros, mais uns 600 ml
de uma água que peguei pelo caminho, de fonte não muito confiável, e por isso
estava ali como reserva.
Às sete e meia estava pronto pra
recomeçar. Resolvi chegar até as instalações do Farol, não distante de onde
acampara, pra pedir um pouco de água. O local era cercado, com o acesso fechado
por um portão com cadeado e com várias placas de “Proibido Entrar”. Acenei para
um cara que apareceu em uma das casinhas. Fui recebido por um sub oficial que
disse ser o comandante da guarnição. Expliquei o que estava fazendo e ele se
prontificou a me ceder um pouco d’água.
Batemos um papo rápido, no qual
me explicou que sua equipe ficava cuidando do farol por três meses seguidos, até
ser substituída pela próxima turma. Contou-me também que já havia fechado o
tempo regulamentar pra ir pra reserva, mas continuava na ativa por conta de
agregar algumas vantagens financeiras (... sempre assim...). Pelo que percebi
havia ali cerca de seis ou sete militares. Comentou comigo também sobre a
dificuldade de acesso ao local, dizendo que nem sempre os caminhões e pick-ups da
Marinha conseguiam chegar lá – “se o vento virar não passa não...”, disse, referindo-se à areia da praia.
Em seguida retomei meu caminho.
As condições não estavam tão boas quanto na véspera. O vento parecia entrar
meio contrário algumas vezes e a areia tinha trechos bem fofos, dificultando
bastante a pedalada. Por algumas vezes tive que desmontar da bicicleta e
empurrar alguns metros, até passar uma área mais instável. A média de
velocidade caiu em relação ao dia anterior.
Nesta foto é possível observar, à direita, depois da faixa de areia,
a Lagoa da Mangueira.
Mas o céu continuava azul e o
sol, firme. Fiz uma pernada inicial de 20 km meio direto, e depois fui seguindo
com paradas rápidas e ritmadas a cada 10 km. Interessante notar a mudança da
granulação da areia, mais grossa nessa região mais ao sul. A paisagem a oeste também
mudou um pouco, apresentando um aspecto ainda mais desértico e desolado do que
a parte mais ao norte.
Mais ou menos à uma da tarde
havia percorrido sessenta e poucos quilômetros. Sabia que em breve deveria
enxergar as casas da vila que havia nas proximidades. A sensação de estar
concluindo foi, aos poucos, se instalando, trazendo certo conforto psicológico
e ânimo às pernas já desgastadas pelo constante esforço.
O vilarejo do Hermenegildo
apareceu de longe e foi crescendo aos poucos, assim como as pessoas caminhando
na praia. Em todo o trajeto desde o Balneário do Cassino, só encontrei o
pessoal da Marinha no Farol do Albardão, ninguém mais. Retornar à civilização
após algumas horas de isolamento é uma sensação ambígua: ao mesmo tempo que
traz certa alegria, causa também aquela apreensão de estar de volta ao convívio
com esse animal meio imprevisível que é o ser humano.
Às três e dez da tarde encostei nos molhes da barra do Arroio Chuí, ponto extremo sul do Brasil. Do outro lado estava o Uruguai. Havia concluído minha pequena travessia no meio do nada.
Viva a vida!
Molhes do Arroio Chuí, extremo sul do Brasil
Dia 2
Assista, no link abaixo, a um pequeno vídeo da viagem:
Obs:
1) Do ponto final na praia até a cidade de Chuí propriamente
dita ainda pedalei mais uns quinze quilômetros por uma estrada asfaltada. Só
então parei num posto de combustível e me dei ao luxo de beber um isotônico
gelado. Incrível a falta que faz beber um líquido gelado quando não se tem acesso a isso!
2) Pernoitei num hotel no lado
uruguaio de Chuí e no dia seguinte me reencontrei com meu amigo Ener e sua
esposa Priscila, que vieram, gentilmente, de Rio Grande com o Troller pela BR 471 para me
resgatar. Aproveitando a oportunidade, retornamos a Rio Grande pela praia,
usando o Troller para aquilo que ele foi feito, fazendo mais um lindo
passeio. Veja algumas imagens dessa viagem no próximo post.
3) Meu muito obrigado ao Ener e sua esposa Priscila, que me receberam em sua casa e me apoiaram incondicionalmente em todas as etapas desse projeto.
4) Existe uma ultramaratona que propõe aos participantes percorrer toda a extensão da praia (226 km) em até 54 horas [Chama-se "Extremo Sul Ultra Marathon"], cuja próxima edição ocorrerá em Novembro de 2018 (caso alguém se habilite...). Descobri que existe também uma competição de kite surf que coloca os participantes pra fazer um down wind em toda a extensão de mar de ponta a ponta da praia (deve ser muito bacana!). Daí vem a ideia: por que ainda não criaram uma prova de Mountain Bike utilizando esse maravilhoso percurso? Fica a dica!
5) Todas as fotos: arquivo pessoal (exceto quando indicado o contrário).
"Quer sim, quer não, fui-me ao peregrino e disse-lhe:
'Vós de onde sois?"
E vai ele respondeu-me:
'Não tenho pátria. Sou pó, o pó é do vento."
(Camilo Castelo Branco)
Gratidão
Força Sempre