E se fôssemos capazes de “enxergar”
os fluxos de energia que fluem ao nosso redor?
E se, mais do que “enxergar”,
conseguíssemos entender como essa energia circula?
Mas, melhor ainda do que
entender, e se pudéssemos dominar essas pré realidades que dançam à nossa
volta, como mínimas partículas de poeira num raio de luz?
Numa manhã de segunda-feira
(incrivelmente) ensolarada, deixando pra trás o alvoroço da zona urbana de
Curitiba e embrenhando-me pelo interior do Estado, vinha flertando com esses e
outros pensamentos.
Aproveitando o curto período de
férias escolares da Thaís, planejamos uma rápida viagem a Brasília, pra fazer
uma visita aos meus pais e a alguns amigos, não sem algum esforço para nos
desvencilharmos dos compromissos profissionais da Mari, assoberbada por um
período de intensos estudos e definições de caminhos a seguir. Aperfeiçoando a
ideia, resolvemos que as duas seguiriam de avião, e eu aproveitaria a
oportunidade pra somar mais alguns quilômetros ao odômetro da GS.
Bem, e por que não fazer um
trajeto um pouco diferente? Seduzido por esse ímpeto de dar uma inovadinha,
resolvi fazer a primeira pernada pela tortuosa BR 476, apelidada de “Serra do Rastro da Serpente”, em
alusão às inúmeras curvas de seu traçado.
[A rigor já conhecia essa estrada. Fiz ela também com a GS, em fevereiro de 2015, no sentido inverso, vindo de São Paulo para Curitiba. A inovação, nesse caso, foi ter feito-a no sentido sul-norte, portanto]
Essa estradinha tem a admirável e
rara virtude de ser pouco movimentada, e de passar por uma instigante região
montanhosa e cidadezinhas bem do interior, mas... em compensação, dá-lhe
curvas!!
Saí efetivamente pronto pra viagem,
de um posto de gasolina perto de casa, às nove da manhã. Ao meio dia e meia,
numa rápida parada num barzinho numa das poucas cidades do caminho, constatei
que só havia percorrido 166 km!!! Oxente!!! Vamos colocar esse troço pra
andar!!!
Além das infinitas curvas, o tal
trecho ainda estava em obras. Muitas obras! Com várias interrupções de tráfego
e tudo muito bagunçado! Pedras soltas, terra, buracos, ondulações, máquinas,
caminhões indo e vindo, poeira, placas, cones, o diabo! Me senti num verdadeiro
rally naquele fim de mundo.
Nas várias horas de íntimo
relacionamento com a velha GS, prestei bastante atenção à sua dinâmica de
equilíbrio e condução. Percebi que ela faz curva de forma praticamente
intuitiva... Quase basta pensar e lá está ela inclinando para o lado certo, ou
voltando ao centro depois de mais uma curva. Nada de contra esterço do guidão,
nada de puxar com o braço, apenas um leve jogo do quadril e tudo se resolve...
Minha reverência à nobre engenharia dessa bela máquina!
Com cerca de 300 km rodados
finalmente desemboquei na cidade paulista de Capão Bonito, com a mesma sensação
de quem passa horas caminhando numa mata fechada e de repente sai numa clareira
– a partir dali, estava em estradas amplas, lisas, bem sinalizadas,
civilizadas, enfim.
Me dei conta, meio surpreso, que
havia várias horas que não usava a sexta marcha. Vinha tocando o vigoroso boxer
da GS na base do dueto terceira e quarta marchas, predominantemente (muito
eventualmente, a quinta). Estradinha divertida aquela, mas travada ao extremo. Certamente
é um trecho bacana, mas estava sentindo falta daquela boa sensação de girar o
punho direito e ouvir, em contrapartida, o motor enchendo e assoviando entre as
pernas.
A tarde já se encaminhava para o
seu final quando me vi meio sem saber exatamente onde, naquele belo interior do Estado de São Paulo. Conjecturei que esse tal de GPS tem essa incrível capacidade de nos
fazer sentir perdidos, ao mesmo tempo em que nos dá a sensação do contrário.
Havia combinado o pernoite na
casa de um velho amigo de Infantaria, o seu Jaime Flammarion, que, por acaso,
estava passando aqueles dias em casa, na cidade de simpático nome de Santa
Bárbara D’Oeste. Pouco antes do FCVN toquei o solo no seu endereço e nos
dedicamos um pouco à velha arte de colocar a conversa em dia, antes de apagar,
cedo, num desejado sono profundo.
No dia seguinte peguei a estrada
um pouco antes das oito da manhã, dessa vez sem peripécias de caminhos
alternativos e/ou tortuosos. Decolei pela quase inacreditável Rodovia
Bandeirantes e, na sequência, estabilizei o voo na igualmente perfeita
Anhanguera, rumo norte.
Longo caminho pela frente, em
outro belo dia de sol e céu azul. Se o “problema” do dia anterior havia sido o
pouco uso da sexta marcha, nesse dia, em relação a isso, tudo estava resolvido.
Procurando parâmetros mentais pra
encaixar um ritmo de viagem, calculei que bastava fazer quatro pequenos lanços
de 200 km pra estar nas imediações do meu destino. Andando direitinho, naquelas
estradas (“em condições ideais de temperatura e pressão”), duas horinhas pra
cada uma dessas etapas...
É bem verdade que seria mais
romântico esquecer o tempo, a distância e a vida e simplesmente acelerar
estrada a fora, mas naquele momento o joguinho mental de encarar a tarefa à
frente em parâmetros numéricos me deu certo conforto... Condicionamentos
mentais? “Contaminação” do jeito competitivo de pensar? Talvez...
Estive pensando também que cada
máquina tem uma velocidade em que tem um melhor rendimento, em que as coisas
parecem funcionar melhor. No caso da GS, andar abaixo de 110 km por hora
torna-se monótono, estranho, sonolento. Parece que o motor fica pedindo mais
rotação, mais “liberdade”... Entre 120 e 140 tudo flui melhor. É lógico que o
problema disso são os limites permitidos de velocidade máxima, e pior do que
isso, os malditos radares fiscalizadores e arrecadadores que se espalharam
feito praga em tudo que é lugar. Não entendem nada de “velocidade fluida” essas
maquininhas tolas (e o conceito igualmente tolo por trás delas)!
Pilotar sozinho, por um dia
inteiro, pode ser um belo exercício. Poderia encarar apenas como um
descontraído passeio, mas tenho a mania (não sei se positiva ou não) de
enxergar essas coisas sempre sob um olhar mais inquisidor. É uma excelente
oportunidade pra estar a sós com os próprios “fantasmas”, e pra pensar um pouco
na "morte da bezerra".
Aproveitando, portanto, a rara
oportunidade, pus-me a pensar (ou os pensamentos se puseram a “me pensar”)
sobre alguns pontos... A par do belo dia, da bela máquina que estava
conduzindo, da grata satisfação do momento, percebi que havia o pano de fundo
constante da droga da preocupação!... A mente, como uma espécie de “diretor
técnico” muito chato, ficava o tempo todo apontando para os riscos, para os
perigos, para as dificuldades em potencial do momento, do futuro, de qualquer
coisa... Incrível como desperdiçamos energia com isso. As possibilidades
(muitas vezes ínfimas) das coisas darem errado, os diversos “e se...”, o receio
de falhar...
Talvez, a rigor, tudo se resuma
no incontornável e limitante medo da tal morte.
Três horas da tarde...
Paradinha para rápido descanso, numa praça de uma pequena cidade, cerca de 300 km antes de Brasília.
Pensei que lidar com nossa
(temida) mortalidade seja, talvez, uma das mais belas, desafiantes e necessárias tarefas da vida. Muito louco isso! Estamos aqui, mas a qualquer
momento podemos não estar mais... Podemos “durar” décadas, ou instantes!
Haverá alguma lógica por trás
disso?
Curioso como tem gente que roda o
mundo em situações muitas vezes bastante precárias, frequentemente sem tomar um
décimo dos cuidados que a maioria das pessoas costuma tomar, e tudo dá certo...
Enquanto outros são vencidos numa ida à esquina da rua de casa, ou num tropeço num
degrau de calçada.
Temos um destino? Ou precisamos
ter competência naquilo que fazemos? Ou precisamos ter sorte?... Ou talvez um pouco de cada, ou nada disso...
Em certo momento, quase vi, com
bom humor, esse diálogo interno em forma de uma cena de filme, em que a mente,
desesperada e histérica, batia na mesa exigindo providências no sentido de
minimizar os riscos e situações de exposição!!!...
Muita calma nessa hora,
companheiro!!! Quem é que manda nesse negócio?... Calma, dona mente! Não
adianta se estressar! Deixa comigo,
deixa que eu levo...
Eu... Eu quem?...
Fiz também algumas incursões
introspectivas num terreno ao qual volta e meia retorno: o relacionamento
pessoal com isso a que chamamos tempo. Passar um dia inteiro envolvido com uma
única tarefa nos ajuda a ter uma percepção um pouco distanciada do ponto de
vista cotidiano a respeito desse misterioso elemento.
Acho interessante como o ‘tempo
passa’ praticamente sem nos darmos conta... De repente percebemos que
passaram-se anos, sem termos a sensação correspondente a esse “volume” todo...
Visto de ‘antes’ parece que o tempo à frente é extenso, longo, demorado; visto
de ‘depois’ parece que foi um instante...
A gente sabe (talvez
teoricamente) que o tempo é o nosso ‘bem’ mais precioso. Mas o que isso
significa efetivamente?... Vale mais levar a vida focada no agora, com a
atenção plena no momento presente, ou num certo estado de ‘abstração’, com a
atenção amplificada num horizonte mais amplo, multi-mundos, mantendo o presente
apenas como um ponto do espectro?... Como o silêncio (externo e/ou interno), ou
a sua ausência, influencia nossa vivência do tempo?...
Muitas vezes não sei se devo
convidar meus “fantasmas” pra sentar e tomar um café ou se é melhor mesmo
deixa-los resmungando do lado de fora, com a porta trancada...
Entre esses e outros ensaios de
reflexão, fui varando o cerrado de árvores tortas do planalto central sob o som
hipnótico e grave do belo propulsor da GS, abafado pela boa proteção acústica do capacete,
a suaves 5500/ 6000 rotações por minuto, deliciando-me com a bela tarde de sol
e com as nuvens de poeira cruzando a estrada, refletindo a luz dourada daquele
momento bonito.
Ao pôr do sol encontrava-me nas
imediações do meu destino, ao mesmo tempo cansado e satisfeito com a brincadeira.
Onze horas e 892 km depois da partida, desliguei o motor no meu local de pouso.
Mari e Thaís, pai e mãe, irmão...
O aconchego do retorno à “segurança” e à previsibilidade do nosso mundo
familiar.
Na viagem de volta, quatro dias
depois, a primeira pernada foi ainda num belo dia desses típicos de inverno:
sol, céu azul, temperatura agradável... Parei, por volta das sete da noite, já
escuro, em Pirassununga, onde encontrei um hotelzinho que imaginei tranquilo
num dia como aquele. No entanto, me enganei. Havia uma grande movimentação de
uma tribo que me pareceu bem familiar. Assim que entrei no saguão da recepção,
vi algumas pessoas conduzindo bicicletas contra-relógio de competição, com
camisetas coloridas, bonés na cabeça, aquele ar de ansiedade. Descobri que no
dia seguinte haveria na cidade uma prova de Triathlon na distância olímpica,
parece que na Academia da Força Aérea. Velhos tempos...
A segunda parte do retorno foi
marcada por uma manhã de domingo bonita e auspiciosa, com motociclistas locais
saindo pra dar sua voltinha com suas máquinas e aquele ar de tranquilidade
típico desse dia. Mas logo após passar por São Paulo o tempo fechou, o céu
ficou cinza e pouco depois começou uma chuva fina, bem no trecho não duplicado
da Serra do Cafezal. Me senti de volta ao meu ambiente climatológico de costume
(embora não preferencial)...
Entrei na garagem de casa
pouco depois das três da tarde, satisfeito com o resultado do pequeno voo e
pensando que dúvidas e “fantasmas” até podem (e talvez até devam) fazer parte
da ‘diretoria’, mas são as certezas, os princípios e certos sentimentos bons que
devemos manter mais próximos de nós, e a quem devemos escutar com maior
frequência...
E talvez, afinal de contas, o desejado domínio dos mundos ocultos que circulam em torno de nós deva ser mais uma construção, um diálogo, uma conquista, do que exatamente um domínio. Mais uma
questão de emoção do que de razão.
Como se vê, muito por fazer e aprender,
sempre.
No link abaixo, pequeno vídeo de trechos da viagem:
"I went out walking through streets paved with gold
Lifted some stones, saw the skin and bones
Of a city without a soul
I went out walking under an atomic sky
Where the ground won't turn and the rain it burns
Like the tears when I said good bye."
(trecho de "The Wanderer" - U2)
"Eu saí caminhando pelas ruas pavimentadas com ouro
Levantei algumas pedras, vi pele e ossos
de uma cidade sem alma
Eu saí andando sob um céu atômico
Onde a terra não dá frutos e a chuva queima
Como as lágrimas quando eu disse adeus."
(tradução do trecho acima)
Percurso da ida
Percurso da volta
Total rodado: 2.769 km
Gratidão.
Força Sempre.
P.S: Em Janeiro de 2017:
Me senti na obrigação de fazer uma complementação a esse texto, em função de um comentário que fiz e que ficou girando na minha cabeça desde então: a respeito do que disse que toda a "preocupação inerente a pilotar se resumiria no medo da morte". Acho que cabe aqui uma explicação mais detalhada, tendo em vista a "importância" do assunto.
Quis me referir, ao fazer esse comentário, a um medo instintivo, "orgânico", automático, que realmente parece permear todas as nossas sensações e emoções. No entanto, a rigor, não me considero realmente com medo da morte. Pelo contrário... Pelo menos conceitualmente encaro a questão com muita naturalidade e resignação. Quando "chegar a hora", como se diz, espero estar tão preparado na prática como acredito estar em teoria [risos]... É uma lei da vida (de qualquer vida), e não há por que fazer drama com isso. Avante!