Tiger 900 Rally Pro

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segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Maratona de Curitiba, 18 de Novembro de 2018




42.195m










O sábio Krishna nos diz, no Bhagavad Gita, que “o devoto que renuncia ao fruto de suas ações consegue a paz eterna. Ao contrário, o homem sem devoção, que fustigado pelo desejo se apega ao fruto de suas obras, mantém-se prisioneiro (de seus próprios atos).”

Decidi correr a Maratona de Curitiba nesse ano três semanas antes da data marcada para a prova. Avaliei que seria bom, nesse momento, dar ênfase a esse esporte que é a base da minha prática esportiva.

A rigor, andava há algum tempo um tanto afastado de atividades essencialmente de endurance, como a maratona. Deliberadamente vinha concentrando minha energia em outras direções, nos últimos meses. Por isso cheguei a ficar em dúvida se vinte dias seriam suficientes para dar aquela necessária ajustada nos treinos e me colocar em condições de cumprir a proposta da brincadeira.

Voltei a fazer alguns treinos um pouco mais longos, intercalados com outros mais suaves, focando mais no ritmo e na sensação de correr do que na performance (resuminho abaixo).




27 Out - 1h 41min - 18,5km - 5:30min/km
30 Out - 1h 22min - 15,8km - 5:12min/km
1º Nov - 1h 18min - 15,1km - 5:13min/km
04 Nov - 1h 05min - 12,8km - 5:05min/km
06 Nov - 2h 22min - 26,2km - 5:25min/km
08 Nov - 1h 03min - 12,1km - 5:14min/km
10 Nov - 1h 54min - 21,7km - 5:18min/km
12 Nov - 1h 02min - 12,4km - 4:59min/km
15 Nov -      51min - 10,3km - 5:02min/km



Constatei (novamente) que esse é um negócio anímico, mas a gestão é uma tarefa mental. Em que pensar (e no que não pensar), como pensar, como "programar" a mente, etc., são ações primordiais para a situação.

Mas não é apenas isso, logicamente. Somos um conjunto de atributos e corpos que nem sempre se alinham na direção desejada. Emoções, problemas do cotidiano, expectativas, medos, conflitos internos e muitas outras questões estão sempre presentes na equação. Como coordenar tudo isso?

Pra mim a prática esportiva é uma espécie de devoção. É como um mundo íntimo no qual entro e procuro me sentir à vontade, e no qual evito a intromissão de dúvidas e outras interferências.

Engana-se enormemente quem pensa que correr é tão somente uma atividade física. É muito mais. Penso que é, sobretudo, energética, de troca de energias, de renovação, de reencontro. O aspecto físico é apenas a superfície de todo o processo.

No dia da prova cheguei ao local da largada cerca de vinte minutos antes do horário previsto para o início (que seria às sete horas). 

Um fator determinante numa prova como essa é a condição climática do momento (a alta temperatura, em particular, pode ser um elemento extremamente dificultador da manobra). Nesse caso, a previsão para a manhã por aqui era de temperaturas se elevando rapidamente e possíveis chuvas a qualquer hora.

Posicionei-me para a largada no setor de quem pretendia adotar um ritmo de 5 min a 5 min e 30 seg por km. Dei uma olhada em volta e vi um carinha com uma camiseta identificada como sendo o pacer oficial do ritmo de 5 min/ km.

Como disse, nos treinos que vinha fazendo estava muito mais concentrado nas sensações do que em tempo e performance, mas treino é treino e jogo é jogo. Pensei, portanto, em tentar seguir, pelo menos no começo, o pacer dos 5 min/km, pra encaixar um ritmo um pouquinho mais firme.

No mesmo evento havia também as provas de 5 e de 10 km (e a maratona em revezamento de duplas), por isso havia uma verdadeira multidão nesse começo.

Dada a largada meu mundo se concentrou nas passadas, na respiração ritmada, nas articulações desimpedidas, no pulmão expandindo, no calor interno aumentando, no corpo procurando se adaptar à demanda e na mente focada na proposta auto determinada.

Junto com o pacer dos 5 min/km havia inicialmente um grupo de oito ou nove corredores, que foi variando e diminuindo com o passar dos quilômetros.

A temperatura ambiente estava já bem elevada (para os padrões curitibanos), a despeito de ser ainda bem cedo, mas por volta do km 10 ao 15 houve uma rápida e brusca mudança dessas condições. O céu ficou cinzento e o calor deu lugar a um ar mais ameno, anunciando a chuva iminente.

Passei pela metade da prova (local do revezamento das duplas) ainda colado no rapaz que era o pacer dos 5 min/ km (cumprindo exatamente essa meta de performance), me sentindo razoavelmente confortável. Mas subitamente o nosso ‘guia’ deu uma guinada de noventa graus e, dizendo algo que entendi como sendo “vou ao banheiro”, sumiu atrás de um muro.

Prossegui então em ritmo próprio, buscando manter o padrão adotado até ali. Por volta do km 25 começou a garoar, o que foi simplesmente perfeito para o momento, pois ajudou a refrescar a sensação de calor que vinha aumentando gradativamente.












Um pouco mais adiante atingi a marca do km 30 e é por aí que a maratona de fato começa. Há diversos relatos e estudos do impacto dessa distância no desempenho dos corredores. Aparentemente, no entanto, continuei me sentindo “ok”.

Um sujeito de bicicleta acompanhando um outro corredor que estava próximo de mim comentou com este, em tom bem humorado, algo do tipo: “rapaz, você tem é que correr o Ironman... aí você já chega nessa droga de maratona detonado, e corre só no veneno!”. Relembrei as provas de Iron que fiz e achei a maior graça. De certa forma é verdade. Parece mesmo que a maratona de um Ironman é menos sofrida que uma prova dessa isolada, como estávamos fazendo. É um negócio estranho essa sensação de esforço, ou de sacrifício... o corpo físico tem suas manhas, suas defesas, seus ciclos de funcionamento. Tentar entender isso e reagir adequadamente é uma necessidade e uma arte desse tipo de brincadeira.

Por volta do km 35 senti que já não estava mais mantendo os 5 min/km. Mas não fazia diferença. Estava naquele estágio “anestesiado”, com uma sensação intensa de dores musculares generalizadas combinada com uma profunda paz interior. “Cara, poderia correr o dia inteiro nesse ritmo”, pensei comigo mesmo.

Nesse momento percebe-se nitidamente que não somos o nosso corpo físico, muito embora estejamos profundamente identificados e envolvidos em suas sensações. Simultaneamente há a clara noção de distanciamento de tudo isso, de quase desprezo pela dor, de uma espécie de indiferença sagrada em relação a todo o mundo ao redor. Havia vários grupos de incentivo gritando palavras de ânimo de quando em quando, motoristas impacientes buzinando nos cruzamentos em protesto por estarem travados no trânsito e até um grupo musical tocando um rock pauleira em uma esquina, mas tudo isso parecia distante, irreal.












Mais ou menos no km 37 sou bruscamente retirado do meu estado de quase hipnose com alguém gritando o meu nome ao meu lado. Caramba! Quem poderia ser? Era a Mari, de bicicleta, que me encontrou não sei como. Seguimos juntos os quilômetros finais, ela com a alegria e empolgação que lhe é peculiar, eu com as forças que me restavam. Sentia-me bem, mas estava cansado.

Já no funil de chegada, nos últimos dez metros, era de se esperar que o objetivo estava atingido e que dava pra dar uma relaxada, não? Mas eis que cinco metros antes de cruzar a linha final vejo o vulto de algo grande vindo em minha direção. Instintivamente aciono os freios e faço uma parada forçada. Nada mais nada menos do que o pórtico de chegada (uma enorme estrutura de ferro em forma de “U”) havia tombado sobre a pista, derrubado pela força do vento! Três segundos de diferença poderiam ter me colocado na cena de um acidente inusitado e potencialmente grave. Desviei da bagunça que se formou e cruzei o tapete de cronometragem que estava logo à frente, pra encerrar oficialmente a brincadeira.

Poucas atividades humanas nos proporcionam a oportunidade de realizar algo tão desapegado do fruto das ações como o esporte amador. Do ponto de vista utilitarista, não serve pra nada esse negócio. Não nos acrescenta nada materialmente (à exceção da singela medalha de participação), não favorece ninguém, não nos dá nenhum prêmio mirabolante, mas talvez seja justamente essa a riqueza desse tipo de ação – a renúncia aos frutos, em troca da paz.

Bom demais.









Dona Mari, sempre a postos!




























Obs: 

1) Crédito das fotos: equipe Foco Radical.

2) Pelas minhas contas, essa deve ter sido a 10ª Maratona de rua que corri nos últimos dezenove anos, fora umas três ou quatro maratonas de montanha, fora acho que duas ultramaratonas de 50 km (Urubici e Bombinhas) e fora as seis maratonas dos Ironman. O caminho se faz ao caminhar.

3) A referência ao Bhagavad Gita, citado no primeiro parágrafo e comentado no último, deve ser entendida de forma poética, e não exatamente filosófica, porque a Filosofia sempre deixa margem a argumentações, oposições, explicações, divergências, etc. Então, pra não enveredar por esse caminho, fiquemos com a leveza da licença poética do escritor. Thanks!




"Apagar tudo do quadro de um dia para o outro,
ser novo em cada nova madrugada,
numa revirgindade perpétua da emoção -
isto, e só isto, vale a pena ser ou ter,
para ser ou ter o que imperfeitamente somos."

(Fernando Pessoa, in "Livro do Desassossego")





Gratidão




Força Sempre






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