42.195m
O sábio Krishna nos diz, no
Bhagavad Gita, que “o devoto que renuncia ao fruto de suas ações consegue a paz
eterna. Ao contrário, o homem sem devoção, que fustigado pelo desejo se apega
ao fruto de suas obras, mantém-se prisioneiro (de seus próprios atos).”
Decidi correr a Maratona de
Curitiba nesse ano três semanas antes da data marcada para a prova. Avaliei que
seria bom, nesse momento, dar ênfase a esse esporte que é a base da minha
prática esportiva.
A rigor, andava há algum tempo um
tanto afastado de atividades essencialmente de endurance, como a maratona. Deliberadamente vinha concentrando
minha energia em outras direções, nos últimos meses. Por isso cheguei a ficar
em dúvida se vinte dias seriam suficientes para dar aquela necessária ajustada
nos treinos e me colocar em condições de cumprir a proposta da brincadeira.
Voltei a fazer alguns treinos um pouco mais longos, intercalados com outros mais suaves, focando mais no ritmo
e na sensação de correr do que na performance (resuminho abaixo).
Constatei (novamente) que esse é um negócio anímico, mas a gestão é uma tarefa mental. Em que pensar (e no que não pensar), como pensar, como "programar" a mente, etc., são ações primordiais para a situação.
27 Out - 1h 41min - 18,5km - 5:30min/km
30 Out - 1h 22min - 15,8km - 5:12min/km
1º Nov - 1h 18min - 15,1km - 5:13min/km
04 Nov - 1h 05min - 12,8km - 5:05min/km
06 Nov - 2h 22min - 26,2km - 5:25min/km
08 Nov - 1h 03min - 12,1km - 5:14min/km
10 Nov - 1h 54min - 21,7km - 5:18min/km
12 Nov - 1h 02min - 12,4km - 4:59min/km
15 Nov - 51min - 10,3km - 5:02min/km
Constatei (novamente) que esse é um negócio anímico, mas a gestão é uma tarefa mental. Em que pensar (e no que não pensar), como pensar, como "programar" a mente, etc., são ações primordiais para a situação.
Mas não é apenas isso,
logicamente. Somos um conjunto de atributos e corpos que nem sempre se alinham
na direção desejada. Emoções, problemas do cotidiano, expectativas, medos,
conflitos internos e muitas outras questões estão sempre presentes na equação.
Como coordenar tudo isso?
Pra mim a prática esportiva é uma
espécie de devoção. É como um mundo íntimo no qual entro e procuro me sentir
à vontade, e no qual evito a intromissão de dúvidas e outras interferências.
Engana-se enormemente quem pensa
que correr é tão somente uma atividade física. É muito mais. Penso que é,
sobretudo, energética, de troca de energias, de renovação, de reencontro. O
aspecto físico é apenas a superfície de todo o processo.
No dia da prova cheguei ao local
da largada cerca de vinte minutos antes do horário previsto para o início (que
seria às sete horas).
Um fator determinante numa prova como essa é a condição climática do momento (a alta temperatura, em particular, pode ser um elemento extremamente dificultador da manobra). Nesse caso, a previsão para a manhã por aqui era de temperaturas se elevando rapidamente e possíveis chuvas a qualquer hora.
Um fator determinante numa prova como essa é a condição climática do momento (a alta temperatura, em particular, pode ser um elemento extremamente dificultador da manobra). Nesse caso, a previsão para a manhã por aqui era de temperaturas se elevando rapidamente e possíveis chuvas a qualquer hora.
Posicionei-me para a largada no
setor de quem pretendia adotar um ritmo de 5 min a 5 min e 30 seg por km. Dei
uma olhada em volta e vi um carinha com uma camiseta identificada como sendo o pacer oficial do ritmo de 5 min/ km.
Como disse, nos treinos que vinha
fazendo estava muito mais concentrado nas sensações do que em tempo e
performance, mas treino é treino e jogo é jogo. Pensei, portanto, em tentar
seguir, pelo menos no começo, o pacer
dos 5 min/km, pra encaixar um ritmo um pouquinho mais firme.
No mesmo evento havia também as
provas de 5 e de 10 km (e a maratona em revezamento de duplas), por isso havia
uma verdadeira multidão nesse começo.
Dada a largada meu mundo se concentrou nas passadas, na respiração ritmada, nas articulações desimpedidas, no pulmão expandindo, no calor interno aumentando, no corpo procurando se adaptar à demanda e na mente focada na proposta auto determinada.
Junto com o pacer dos 5 min/km havia inicialmente um grupo de oito ou nove
corredores, que foi variando e diminuindo com o passar dos quilômetros.
A temperatura ambiente estava já
bem elevada (para os padrões curitibanos), a despeito de ser ainda bem cedo,
mas por volta do km 10 ao 15 houve uma rápida e brusca mudança dessas
condições. O céu ficou cinzento e o calor deu lugar a um ar mais ameno,
anunciando a chuva iminente.
Passei pela metade da prova
(local do revezamento das duplas) ainda colado no rapaz que era o pacer dos 5 min/ km (cumprindo
exatamente essa meta de performance), me sentindo razoavelmente confortável.
Mas subitamente o nosso ‘guia’ deu uma guinada de noventa graus e, dizendo algo
que entendi como sendo “vou ao banheiro”, sumiu atrás de um muro.
Prossegui então em ritmo próprio,
buscando manter o padrão adotado até ali. Por volta do km 25 começou a garoar,
o que foi simplesmente perfeito para o momento, pois ajudou a refrescar a
sensação de calor que vinha aumentando gradativamente.
Um pouco mais adiante atingi a
marca do km 30 e é por aí que a maratona de fato começa. Há diversos relatos e
estudos do impacto dessa distância no desempenho dos corredores. Aparentemente,
no entanto, continuei me sentindo “ok”.
Um sujeito de bicicleta
acompanhando um outro corredor que estava próximo de mim comentou com este, em
tom bem humorado, algo do tipo: “rapaz, você tem é que correr o Ironman... aí
você já chega nessa droga de maratona detonado, e corre só no veneno!”.
Relembrei as provas de Iron que fiz e achei a maior graça. De certa forma é
verdade. Parece mesmo que a maratona de um Ironman é menos sofrida que uma
prova dessa isolada, como estávamos fazendo. É um negócio estranho essa
sensação de esforço, ou de sacrifício... o corpo físico tem suas manhas, suas
defesas, seus ciclos de funcionamento. Tentar entender isso e reagir
adequadamente é uma necessidade e uma arte desse tipo de brincadeira.
Por volta do km 35 senti que já
não estava mais mantendo os 5 min/km. Mas não fazia diferença. Estava naquele
estágio “anestesiado”, com uma sensação intensa de dores musculares
generalizadas combinada com uma profunda paz interior. “Cara, poderia correr o
dia inteiro nesse ritmo”, pensei comigo mesmo.
Nesse momento percebe-se
nitidamente que não somos o nosso corpo físico, muito embora estejamos
profundamente identificados e envolvidos em suas sensações. Simultaneamente há
a clara noção de distanciamento de tudo isso, de quase desprezo pela dor, de
uma espécie de indiferença sagrada em relação a todo o mundo ao redor. Havia vários
grupos de incentivo gritando palavras de ânimo de quando em quando, motoristas
impacientes buzinando nos cruzamentos em protesto por estarem travados no
trânsito e até um grupo musical tocando um rock pauleira em uma esquina, mas
tudo isso parecia distante, irreal.
Mais ou menos no km 37 sou bruscamente
retirado do meu estado de quase hipnose com alguém gritando o meu nome ao meu
lado. Caramba! Quem poderia ser? Era a Mari, de bicicleta, que me encontrou não
sei como. Seguimos juntos os quilômetros finais, ela com a alegria e empolgação
que lhe é peculiar, eu com as forças que me restavam. Sentia-me bem, mas estava
cansado.
Já no funil de chegada, nos
últimos dez metros, era de se esperar que o objetivo estava atingido e que dava
pra dar uma relaxada, não? Mas eis que cinco metros antes de cruzar a linha
final vejo o vulto de algo grande vindo em minha direção. Instintivamente aciono
os freios e faço uma parada forçada. Nada mais nada menos do que o pórtico de
chegada (uma enorme estrutura de ferro em forma de “U”) havia tombado sobre a
pista, derrubado pela força do vento! Três segundos de diferença poderiam ter
me colocado na cena de um acidente inusitado e potencialmente grave. Desviei da
bagunça que se formou e cruzei o tapete de cronometragem que estava logo à frente,
pra encerrar oficialmente a brincadeira.
Poucas atividades humanas nos proporcionam
a oportunidade de realizar algo tão desapegado do fruto das ações como o
esporte amador. Do ponto de vista utilitarista, não serve pra nada esse
negócio. Não nos acrescenta nada materialmente (à exceção da singela medalha de
participação), não favorece ninguém, não nos dá nenhum prêmio mirabolante, mas
talvez seja justamente essa a riqueza desse tipo de ação – a renúncia aos
frutos, em troca da paz.
Bom demais.
"Apagar tudo do quadro de um dia para o outro,
ser novo em cada nova madrugada,
numa revirgindade perpétua da emoção -
isto, e só isto, vale a pena ser ou ter,
para ser ou ter o que imperfeitamente somos."
(Fernando Pessoa, in "Livro do Desassossego")
Força Sempre
Sem comentários. A família Assis tem um verdadeiro campeão.
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