Recentemente li o livro “Portões
de Fogo” – um romance épico sobre Leônidas e os 300 de Esparta, de Steven
Pressfield (Editora Contexto, 2017/ tradução de Ana Luiza Dantas Borges).
A obra, ficcional, baseia-se em
ampla pesquisa e dados históricos da célebre batalha no desfiladeiro das
Termópilas, em que o Rei Xerxes, em 480 A.C, comanda dois milhões de homens do
Império Persa para invadir e submeter a Grécia.
Conta a história que, em oposição
a essa investida, uma pequena tropa composta de 300 selecionados guerreiros
espartanos segue para o estratégico desfiladeiro em que o poderoso exército
invasor teria que se afunilar para passar. Durante sete exaustivos dias de
combate, conseguem conter o ataque inimigo, eliminando cerca de 20 mil
opositores, após o que, exauridos e progressivamente aniquilados, acabam por
serem vencidos.
[Essa história é contada, também
como ficção, pelo icônico filme “300”, do diretor Zack Snyder, lançado em 2007.]
O autor cria um enredo em que o
único sobrevivente grego é resgatado pelas tropas persas e, muito ferido, é
feito prisioneiro pelo inimigo. O Rei persa então se interessa em ouvir o
relato do prisioneiro a respeito dos detalhes da preparação e do combate vistos
pela ótica espartana. Determina, para isso, que um historiador de seu séquito
interrogue e escreva o depoimento do soldado sobrevivente. Esse relato se
constitui, basicamente, no livro em si.
O prisioneiro grego, de nome
Xeones, conta então toda a história de sua vida, desde a infância abruptamente
interrompida pela invasão de sua cidade por inimigos, passando pelos vários
anos de vida errante como um “sem cidade”, até ser aceito como estrangeiro em
Esparta, e lá conseguir realizar sua visão de se transformar em um guerreiro.
Na sequencia, descreve em
detalhes as táticas de treinamento e educação adotados em Esparta, a preparação
do exército para a guerra nas Termópilas, além das inevitáveis intrigas e
polêmicas nos bastidores da tropa selecionada para o épico combate.
É uma bela obra, que prende a
atenção tanto pelo ritmo quanto pela intensidade dos eventos relatados.
Acho que o cerne da história é
evidenciar o verdadeiro espírito guerreiro – entendido, naquela época, como
sendo a mais nobre missão que um homem poderia desempenhar. Como o protagonista relata, os espartanos eram combatentes profissionais, treinados
desde o início da adolescência para fazer (apenas) aquilo.
Há que se destacar também a
convicção que esses homens tinham nos motivos que os levavam ao combate –
defender sua nação, seu povo, sua família, sua história. Não havia qualquer
sombra de dúvida nas raízes de suas ações. Ainda que na época já existisse a
malfadada política, a questão da guerra iminente era muito clara: ou eles
combatiam para se defender ou seriam varridos do mapa pelo exército invasor.
Outro aspecto muito relevante
dessa época é que o Rei espartano era tão guerreiro quanto qualquer soldado, e
mais do que isso, era reconhecido e reverenciado como o melhor de todos. Lutava
na linha de frente junto de todos os demais, liderando o combate pessoalmente.
A história descreve ainda vários
aspectos da educação espartana que são dignos de serem observados, como a
extrema resistência ao desconforto, à dor, aos castigos físicos, e, em última
instância, à própria morte. Pelo que se relata, não havia um apego à vida, no
sentido de um sentimento de desespero ou extremo pesar diante da morte, própria
ou de entes queridos. Percebe-se que, naquela época, morria-se muito
facilmente, às vezes apenas em consequência de uma frase mal colocada.
O relato enfatiza ainda a
importância das mulheres na cultura espartana, citando, no final da obra, o que
seria um segredo do Rei Leônidas, que teria revelado a uma das mulheres de
Esparta, a única a ter um filho e um marido selecionados para os 300, que o
verdadeiro critério para essa seleção teria sido a força das mulheres desses
homens, e não, na verdade, a capacidade individual de cada selecionado.
Interessante notar também a
estreita relação, na época, entre o esporte e a guerra. Vários dos melhores
guerreiros eram também melhores atletas nos jogos olímpicos recentes, muito em
função, é lógico, da importância da capacidade e habilidade física no
desempenho em combate.
Outro ponto notável é o respeito que esses homens tinham aos seus deuses, de uma forma que para nós, hoje em
dia, é até difícil entender. Seus deuses eram fonte de inspiração, de
aconselhamento, de devoção, de razão de viver e de morrer.
O livro conta que, a rigor, os
espartanos não combateram sozinhos. Havia várias nações aliadas, igualmente
interessadas em defender seu território e povo, que enviaram suas tropas para
reforçar o exército de Esparta. Os números são imprecisos, e mesmo a história
oficial tem dificuldade em confirmar esses dados, mas fala-se em cerca de dez
mil aliados no começo dos combates.
Esse reforço, no entanto, não era composto
de soldados efetivamente profissionais, e por isso não foi de grande ajuda. No
decorrer dos dias, foram sendo rapidamente dizimados, e na véspera do confronto
final os que restaram foram “liberados” pelo Rei Leônidas, ciente então de que
já não havia mais como resistir.
O relato do prisioneiro não
aborda a questão do motivo pelo qual Esparta enviou apenas 300 soldados de seu
exército para esse importante combate [O filme “300”, quem assistiu deve se
lembrar, cita intrigas políticas e traições na cúpula do governo espartano como
motivo para não enviar o exército como um todo], mas faz menção a uma profecia
que afirmaria que assim deveria ser, que o Rei tombaria para Esparta
sobreviver.
Desde a seleção dos 300 soldados
havia a noção clara de que combateriam uma guerra perdida, em função da
incrível superioridade numérica do inimigo. De fato, no último dia de
confronto, os soldados que restaram lutaram com a intenção de causar o maior
número de baixas ao inimigo, até serem finalmente vencidos (aniquilados).
A obra me fez refletir sobre
alguns valores e cultura daquela época aplicados ao nosso tempo atual. É lógico
que o momento histórico é completamente diferente, mas do ponto de vista
humano, de certa forma, somos os mesmos.
Um desses pontos sobre os quais
estive pensando é a respeito da forma de fazer guerra, e, atrelado a isso, a “legitimidade”
da guerra, ou a “justiça” ou “código de ética” de uma guerra. É incrível como
essa questão se transformou ao longo do tempo! Me parece que o combate corpo a
corpo, em condições muito semelhantes de armamento entre os oponentes, era incomparavelmente mais “honesto”
do que as guerras atuais, em que o que conta é a capacidade tecnológica,
bélica, econômica e demais artimanhas de cada lado.
Junto a isso vem o fator da
liderança em combate, com a pessoa do Rei e todos os demais “oficiais” combatendo
lado a lado com todos os demais soldados. Isso também mudou muito nesses mais
de vinte séculos. Hoje em dia o conceito vigente é o das lideranças militares
(generais, coronéis e afins) “gerenciarem” o combate de uma segura posição na
retaguarda (quando não do conforto de seus longínquos postos de comando). Não
quero dizer que isso seja errado, mas que parece menos “nobre” do que o modelo
anterior, isso parece.
Outro tema que a história me
levou a refletir foi sobre a questão da guerra em si, como conceito. Esse ato
extremo da condição humana de “precisar” matar um oponente por que esse
adversário igualmente o quer matar.
Outro dia assisti a um outro filme, chamado
“Até o último homem”, em que o herói da história era um soldado americano que
se alistou para combater na Segunda Guerra Mundial, mas se recusou a pegar em
arma e a matar. O filme nomeia esse tipo de atitude como “oposição de
consciência”. No filme, baseado em fatos reais, o protagonista enfrenta uma
série de problemas, ofensas e polêmicas, mas mantém sua posição firmemente.
Chega a ir para a linha de frente, onde se destaca por sua grande coragem no
resgate de seus companheiros feridos, mas mesmo no fragor do combate se recusa
a pegar em armas para atirar contra o inimigo.
Onde está a virtude e o valor
mais elevado, afinal de contas? Acho esse um dos temas mais interessantes e instigantes
quando se fala em exércitos, guerras, heroísmos. Até que ponto o soldado que
está ali atirando, matando o soldado do outro lado, o faz por convicção
ideológica, com firme clareza de suas atitudes, e a partir de onde se torna
apenas uma peça num jogo obscuro e tortuoso, um “inocente útil” para interesses
pouco nobres, ou tão somente um ser desesperado lutando por sua própria
sobrevivência...?
Chega a ser emocionante imaginar
a guerra como descrita no livro sobre os 300 de Esparta. Um confronto direto e
claro entre um exército interessado em invadir e pilhar terras alheias e
soldados lutando pra defender seu povo, suas famílias, sua história. Trazendo
esse modelo para os dias atuais, a quantos conflitos poderíamos aplicar uma
lógica dessas?
O fato é que a vida e o ser
humano não são simples e redutíveis a análises de certo e errado. Pessoalmente
não vejo a história do soldado “opositor de consciência” do referido filme com
aprovação. É bonito, é romântico, mas não é realista. Acredito que certas
situações extremas requerem medidas extremas. A ideia do pacifismo é muito
encantadora, mas não creio que se possa aplica-la como quem tira um produto
novo da caixa e sai usando. Acredito, isto sim, que ela tem que ser construída,
conquistada, ambientada, para que funcione, sem recorrer a mais heroísmo e a atitudes
desencaixadas dos fatos em volta.
Achei muito interessante também a
ideia de rusticidade e maturidade precoce da educação espartana, relatada no
livro. À época, os meninos iniciavam seu treinamento militar com treze,
quatorze anos de idade. Aos dezesseis já eram homens.
Outro dia li um texto que
abordava muito bem essa questão do adiamento da maturidade típica dos nossos
tempos. O tal texto trazia o exemplo dos jovens aviadores das Forças Aéreas
alemã e inglesa na Segunda Guerra Mundial, jovens dos seus 18 anos, pilotando
aviões de combate, tomando decisões cruciais sob extrema pressão, lidando com o
perigo iminente, escrevendo a história de seus países no dia-a-dia de suas
ações. Hoje em dia, dizia o texto, e é a mais pura verdade, nossa geração de
jovens, salvo raríssimas exceções, chega aos vinte e cinco, trinta anos de
idade, muitas vezes sem saber o que fazer da vida, sem estrutura emocional pra
assumir decisões, cheios de vontades, “problemas”, “conflitos” e ideias
sem muita coerência entre si.
Não acho que a responsabilidade por essa situação
seja exclusivamente dessa geração que protagoniza esse perfil dependente e
imaturo, mas de todos nós, da nossa sociedade que cria, a cada dia que passa, mais
regras inúteis, mais direitos absurdos, mais medidas de proteção
desnecessárias, mais “necessidades” alienadoras e aprisionadoras.
Nesse sentido, é também
inspirador imaginar uma cultura em que essa lógica é invertida, e desde cedo
busque-se fazer dos meninos, verdadeiros homens.
Por fim, destaco outro aspecto
que me chamou a atenção na história contada no livro, a devoção do povo
espartano, seu relacionamento com seus deuses, sua fé e suas crenças. De alguma
forma, me parece que também nesse sentido a nossa sociedade se enfraqueceu e se
perdeu um pouco. A nossa devoção, de forma geral, foi terceirizada às
religiões, aos “esquemas religiosos”, a modelos criados para serem vendidos e
comprados como um produto.
Pensar num formato mais direto,
genuíno e convincente para essa ligação com o espiritual é também uma grata
inspiração do livro de Pressfield.
Encerro esse breve comentário transcrevendo uma passagem descrita nas últimas páginas do livro, ocorrida pouco
antes da batalha final. Disse o soldado sobrevivente, relator da história, que, pouco antes da investida derradeira, Xerxes enviou um mensageiro ao Rei
Leônidas, a fim de propor-lhe a rendição:
“O emissário foi Ptammitechus, o marinheiro
egípcio Teco. Dessa vez, seu filho não o acompanhou como intérprete; essa
função foi desempenhada por um oficial persa. Os quatro cavalos haviam empacado
por causa dos cadáveres sob suas patas. Antes de Teco ter tempo de falar,
Leônidas interrompeu-o:
- A resposta é não – gritou do alto do muro.
- Não ouviu a proposta.
- Foda-se a proposta – gritou Leônidas com
um sorriso largo. – E o senhor também!
O egípcio riu, o sorriso cintilando mais que
nunca. Puxou as rédeas de seu cavalo assustado.
- Xerxes não quer suas vidas, senhor – gritou
Teco. – Só suas armas.
Leônidas riu.
- Diga-lhe para vir pegá-las.”
"Passantes, aos espartanos dizei
que aqui jazemos, em obediência a sua lei."
(inscrição na lápide em homenagem aos 300)
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