É interessante como certos
lugares (assim como certas pessoas) nos cativam de forma especial. A região do
Pico Agulhas Negras, na parte alta do Parque Nacional de Itatiaia, no estado do
Rio, é, para mim, um desses lugares.
Nesses dois dias criei a
oportunidade de estar por lá novamente, e estive refletindo sobre essa “leitura”
que tenho desse lugar. A impressão mais imediata é que é um lugar muito bonito
(o que, admito, é uma avaliação subjetiva), mas pensando bem, a relação que
tenho com aquele espaço é bem mais do que “apenas” isso. Estar lá também me
traz uma sensação boa de me sentir num lugar inóspito, afastado da civilização
(ainda que não muito, é verdade...), rude, imponente e silencioso. Mas há ainda mais nesses sentimentos. Há o incalculável valor da
memória, das lembranças ali registradas, do passado ali vivido.
De certa forma, acho que foi
andando por aquelas trilhas, há quase trinta anos, que descobri minha afinidade
e prazer com esse tipo de vivência outdoor e com esse tipo de ambiente de
montanha. Na época (1988 a 1991) estudava na Academia Militar das Agulhas
Negras, em Resende, ali perto, e por algumas vezes, sempre que conseguíamos uma
folguinha na agenda e os meios necessários, eu e um grupo de amigos gostávamos
de perambular por lá nos finais de semana. Sem contar as “experiências curriculares”
acadêmicas ali vividas... Nesse caso, memórias um pouco mais “dramáticas” [risos].
Ao fundo, o Pico Agulhas Negras, visto do alto da Pedra do Altar
De tal forma que é difícil saber
exatamente o que mais conta nessa equação. Dessa vez pensei em fazer uma
caminhada pelas redondezas do emblemático Pico, e, se possível, passar uma
noite acampado nas imediações do conhecido Abrigo Rebouças. Após algumas
pesquisas e consultas a amigos que moram na região, e também ajustes a algumas
condicionantes do momento, decidi fazer dois percursos de trekking que mais se
encaixavam no que pretendia.
Ao longe, no centro, as Prateleiras
A primeira trilha foi a
Couto-Prateleiras, que percorre basicamente as alturas leste da estrada que chega
ao Abrigo Rebouças, começando e terminando próximo à guarita de entrada do
parque, indo até a base das Prateleiras e retornando pela estrada. Para essa
jornada optei pelo acompanhamento de um guia credenciado pelo Parque,
considerando que é um caminho relativamente novo e não muito bem demarcado.
Ter a companhia da guia Fátima Li
foi, mais do que ter alguém para indicar a direção a seguir, a oportunidade de
trocar ideias, informações, histórias e simples conversas que acabam por tornar
o esforço da caminhada mais leve e aprazível.
Nesse bate papo ela me contou,
por exemplo, sobre a alta procura que tem havido pelas trilhas do Parque, em
particular as mais conhecidas, que são o Pico e as Prateleiras. Disse-me que
nos finais de semana dos meses de alta temporada (inverno) as pessoas começam a
chegar à portaria do Parque na noite anterior do dia pretendido para a
investida, pra conseguir uma das poucas vagas disponibilizadas pelo Parque para
cada um dos percursos. Segundo ela, esse “sucesso” se deve às redes sociais e
sua incrível capacidade de divulgar fotos sensacionais (e algumas vezes até apelativas).
(crédito da foto: Fátima Li, guia)
Conversamos também sobre a
questão do conflito entre o uso e a preservação do ambiente natural. Ela me
contou que foi uma das pioneiras na pesquisa, demarcação e luta pela homologação
da própria trilha que estávamos fazendo, dentre outras, juntamente com seu
marido à época, por coincidência também oficial do Exército. Trocamos ideias
ainda sobre esse sentimento de admiração e quase veneração que pessoas como nós
sentem por aquelas montanhas, e que nem todas as pessoas tem o mesmo
sentimento. Foi, enfim, muito bom poder contar com a sua companhia (e do seu
sobrinho) e boa conversa nessa jornada.
Agulhas Negras, visto da trilha Couto-Prateleiras
A trilha, confirmando as
recomendações que recebera, é efetivamente belíssima. Ainda tivemos a sorte de
contar com um belo dia de sol e céu azul que contribuiu para deixar tudo com um
astral ainda mais elevado. Caminha-se praticamente o tempo todo pela linha de
crista das elevações, tendo o belo cenário do vale do Rio Paraíba do Sul a
leste, a fantástica Serra Fina ao sul e os emblemáticos maciços do Pico e das
Prateleiras a norte e noroeste. É um verdadeiro espetáculo para os olhos e para
o coração. Começamos a trilha por volta das oito e cinquenta da manhã e
retornamos ao ponto inicial no final da tarde, por volta das 16:30.
Agulhas Negras, visto da trilha Couto-Prateleiras
Neste momento tive uma apertada
negociação com os guarda parques que ficam na guarita de entrada do Parque a
respeito das regras e condições impostas para o acesso ao local do camping ao
lado do Abrigo Rebouças. Acontece que o local do camping fica a 3 km do ponto
onde estávamos, conhecido como Posto Marcão. E acontece que alguém estabeleceu
uma teia de complicadas regras de limites de acesso de veículos ao Abrigo
Rebouças, que fica no final da estrada. Pra resumir a história, os caras
queriam que eu deixasse meu material no camping (com o carro), e retornasse
para deixar o carro no estacionamento ao lado da Guarita, e depois retornasse
caminhando os 3 km de volta ao local do camping, “porque é a regra”. Depois de
alguma conversa e paciência, acabaram por liberar a permanência do carro para
pernoitar na estrada junto ao Abrigo Rebouças, mas não foi fácil.
Represa do Funil e Vale do Rio Paraíba do Sul
Cabe aqui um rápido comentário
sobre esse tipo de “política” de uso. Concordo que tenha que haver regras e
normas estabelecidas para a preservação do ambiente, caso contrário corre-se o
risco da coisa virar uma baderna, mas tenho a nítida sensação de que em algum
ponto desse percurso perdemos o bom senso e uma noção mais ampla da situação, e
estamos, com isso, apenas emaranhados num conjunto de medidas restritivas que
muito mais atrapalham do que resolvem alguma coisa. Pra ser bem claro, e aqui
faço uso de uma sensação mais geral do que a dessa experiência no PNI, a
impressão que tenho é que temos tornado o mundo cada vez mais chato e com mais
proibições! É incrível a quantidade de coisas que não se pode fazer em tudo que
é lugar. E ainda mais incrível é que, ao invés de tornar esses lugares mais organizados
e “preservados”, apenas os faz mais complicados e desestimulantes.
Prateleiras (:Mavic)
Saudades da época em que íamos para
esse Parque e tínhamos aquela sensação boa de apenas ir dar uma caminhada nas
montanhas. Hoje em dia, lamentavelmente, a coisa toda virou um grande “processo”
que requer um bocado de energia e paciência pra ser administrado! Tremenda incomodação essa tendência complicadora do nosso belo mundinho moderno!
Prateleiras (:Mavic)
(crédito da foto: Fátima Li, guia)
Resolvida a encrenca da liberação
para permanecer com o carro próximo ao camping, dirigi-me ao local e, sem perda
de tempo, montei minha barraquinha, já no começo da noite, fiz meu jantar,
tomei um chá quente e me recolhi ao aconchego do meu saco de dormir. Não foi exatamente
uma noite de sono tranquilo. Por diversas vezes acordei sem saber ao certo por
que razão, oscilando entre um sono profundo e a sensação de um sono leve.
Acordei com os primeiros raios de
luz na manhã seguinte, e, ao abrir o zíper da barraca me dei conta do “tamanho”
do frio que havia feito na madrugada, ao constatar uma camada de gelo cobrindo
o sobre teto e a mochila que havia ficado do lado de fora. Resolvi dar uma
checada no termômetro e levei um susto ao verificar a marcação de sete graus
negativos! Estava realmente gelado. Cerca de duas horas depois, ao passar
novamente pela guarita de entrada do Parque, o guarda parque me informou que o
termômetro deles registrou -8.7 graus Celsius durante a madrugada. Congelante!
7 graus Celsius negativos, às 07:15 da manhã!
Gelo de um riacho perto
Gelo no teto do carro
Nesse segundo dia fiz, sozinho, a trilha conhecida como dos Cinco Lagos.
Começando novamente junto ao Posto Marcão, a trilha segue pelo lado oeste da
estrada do Abrigo Rebouças em direção ao maciço do Pico Agulhas Negras. No
caminho fiz ainda um pequeno desvio para chegar ao cume da Pedra do Altar, de
onde a vista é simplesmente espetacular! Novamente estava um dia claro de sol e
céu azul. Verdadeiro presente das circunstâncias do momento.
Asa de Hermes, visto da Pedra do Altar
Caminhar sozinho também tem,
logicamente, seu valor e sua sintonia própria. Parece que a sensibilidade e a capacidade
de observação ficam mais refinadas e precisas, e a sensação geral de controle
da situação fica mais “na mão”, digamos assim...
Agulhas Negras, visto da trilha dos Cinco Lagos
Quatro horas depois do início
cheguei de volta o ponto inicial, satisfeitíssimo com a grata experiência e
pronto pra encarar o longo retorno pra casa.
Como sempre, fica aquela sensação
de que deveria fazer mais disso, e de como seria bom se pudesse reunir certos
amigos pra esse tipo de “passeio”. Mas tudo na vida tem sua hora e suas
possibilidades e limitações. Talvez mais importante do que tudo seja manter
essa chama acesa no coração, essa capacidade de conseguir apreciar o ar frio e
os horizontes amplos que só as montanhas são capazes de nos oferecer. Deixemos
fluir!
Nascente do Rio Campo Belo
"No meio de um trigal, que beira um rio de águas cristalinas,
encontrei uma gaiola, e vi nela um pássaro morto
ao lado de um copo sem água e de um prato sem sementes.
Aquele pássaro morrera de sede na margem do rio
e de fome no meio do trigal.
Enquanto olhava, vi a gaiola transformar-se num corpo humano,
e o pássaro num coração ferido.
E ouvi uma voz, que saía da própria ferida, dizer:
'sou o coração humano, prisioneiro da matéria
e vítima das leis decretadas pelo homem.
No meio dos campos da beleza, à margem dos rios da vida,
fui encarcerado na gaiola das leis artificiais,
pelas quais se pretende governar os sentimentos.
Em meio às belezas das criaturas e aos campos do amor,
morri de privação; pois tudo que desejo é considerado vergonhoso;
tudo que almejo é considerado ilícito... Sou o coração humano.
A noite das tradições me envolve; as cadeias das quimeras me prendem.
Morri desprezado ante uma sociedade endurecida e indiferente'."
(Gibran, Uma Lágrima e um Sorriso)
Gratidão
Força Sempre
Obs;
- Todas as fotos: arquivo pessoal.
- Agradecimento especial aos amigos D'Ângelo, Theo e Sirpa, pelo apoio na implementação dessa viagem.