(Travessia abortada)
46,5 km de caminhada em dois dias
Andrea Santana
Felipe Amante e
Newton Adriano Weber
Se você gosta de lugares inóspitos
e desolados, a Praia do Cassino, localizada no extremo sul do Brasil, é o lugar
ideal pra você se divertir. Considerada como a maior praia do
mundo, a enigmática faixa de areia se estende por longos 226 km, desde os
molhes da barra do Rio Chuí, fronteira natural entre o Brasil e o Uruguai, até
os molhes da barra da cidade de Rio Grande, na ligação da Lagos dos Patos com o
mar. Nesse percurso, cerca de 200 km centrais são absolutamente despovoados,
sem nenhuma estrutura ou ponto de apoio (salvo o Farol do Albardão, situado a
cerca de 140 km da cidade de Rio Grande, onde há uma guarnição da Marinha do
Brasil ocupando a posição).
A oeste dessa região, há uma
faixa de cerca de 20 km de largura de vegetação esparsa, pântanos e a Lagoa Mangueira, até a BR 471, que se estende de norte a sul.
Fazer a travessia desse caminho,
a pé, sem apoio, é um desses desafios que certamente ainda pode ser enquadrado no desgastado termo “aventura", pois reúne, com acentuada intensidade, todos os
ingredientes desse tipo de empreitada, sobretudo a adversidade da natureza e as
incertezas do percurso.
Há algum tempo o Felipe e eu conversávamos sobre a ideia de colocar em prática o projeto desse trekking, meio que seduzidos pela proposta de isolamento e de profunda interação com os elementos naturais, que essa experiência promete.
Algumas semanas antes,
pressionados pelo rápido avançar do ano corrente e um tanto inquietos pela
longa abstinência de viagens desse tipo, imposta pelas medidas de segurança em
relação à pandemia, marcamos uma data de início e colocamos nossos planos em
marcha.
Nesse ínterim, o casal de amigos
Newton e Andréa também aderiu à ideia, reforçando o espírito de grupo, sempre
bem-vindo em situações como essa.
Já na fase de preparativos, nos
deparamos, com impactante clareza, com as dificuldades práticas de como resolver
a difícil equação entre as necessidades logísticas versus o peso ideal a ser
atingido na mochila. Estudando o percurso e fazendo alguns cálculos baseados em
estimativas pessoais, chegamos à ideia de percorrê-lo em sete dias, o que daria cerca de 30 km por dia. Para isso teríamos que ter pelo menos oito dias de
autonomia de comida, além, é lógico, dos tradicionais equipamentos de acampamento e
itens de uso pessoal, mais uma boa reserva de água potável, pois sabíamos que
as possibilidades de reabastecimento pelo caminho eram escassas. Esse
quebra-cabeça nos consumiu alguma energia e exigiu certo refinamento da nossa
capacidade de decisão (a respeito do que levar e o que não levar).
Essa questão da água, em particular,
era um ponto sensível do projeto, visto que a sabida escassez nos
obrigaria a levar pelo menos uns 4 litros cada um, além de, mesmo assim, ter
que usar sempre com restrição e muita economia, pois não havia como saber quando seria possível reabastecer.
No final das contas, por mais que
tenhamos nos esforçado a reduzir ao máximo nossas necessidades, estávamos,
todos, com bastante peso nas mochilas. Eu, pessoalmente, iniciei a travessia
com cerca de 21 kg, bem mais do que gostaria e acho confortável.
O Newton, a Andréa e eu saímos de Curitiba, de carro, no dia 6 de outubro. Foram dois dias de viagem até o Balneário do Cassino, na cidade de Rio Grande. De lá, no terceiro dia, nos deslocamos, com um carro e motorista contratados, para a cidade de Chuí, na fronteira com o Uruguai, onde nos encontramos com o Felipe, que viera de São Paulo de avião até Porto Alegre, e de lá de ônibus até o nosso ponto de encontro.
Na tarde desse dia, demos umas
voltas pelo comércio local, transitando ora pelo lado uruguaio, ora pelo lado
brasileiro, observando aquele jeito de ser típico de regiões
fronteiriças na América do Sul: um pouco de bagunça, farta oferta de
bugigangas, muita gente desocupada pelas ruas e aquele ar meio de faroeste.
No final da tarde hospedamo-nos
num hotelzinho na Barra do Chuí, distante uns 10 km da cidade, e já bem próximo
do nosso local de largada no dia seguinte. Fizemos alguns ajustes finais no
equipamento e descanso, porque a pegada a partir do dia seguinte seria bruta.
No sábado, dia 9, acordamos cedo, tomamos um rápido desjejum no hotel e logo nos arrumamos pra partir. O dia estava auspicioso: sem sinal de chuva, ainda que meio nublado, mas com uma cara boa. Aliás, a previsão do tempo é outro fator determinante nesse tipo de investida. Buscamos acompanhar, nos dias anteriores, a previsão para a semana da nossa caminhada. Havia expectativa de chuva para o terceiro e quarto dias, mas parecia ser de pouca intensidade, o que nos levou a supor que não haveria problema.
No dia anterior à nossa partida surgiu também a preocupação com
relação à direção e intensidade dos ventos na região. Em conversas com alguns
habitantes locais, ficamos sabendo que os ventos predominantes por lá são norte e nordeste, contrários, portanto, ao sentido do nosso deslocamento. A
princípio pensamos que isso não seria assim tão relevante, mas a realidade dos
fatos se encarregaria de nos provar que estávamos enormemente enganados.
Às sete e meia da manhã tiramos a
foto da partida, demos um rápido depoimento gravado em vídeo, e, um tanto
ansiosos, demos os primeiros passos na longa jornada, contentes como crianças
que vão para o primeiro dia de aula numa nova escola.
Logo o sol venceu as nuvens e iluminou o
vasto horizonte à nossa volta com aquela bela luz dourada, dando ainda mais
ânimo aos entusiasmados caminhantes. Mas nem tudo eram flores... Já na saída
uma das fivelas da mochila do Newton quebrou (justo a da barrigueira),
obrigando-o a fazer uma adaptação que dificultou bastante a sua lida com o pesado
fardo. Não obstante, caminhamos bem os primeiros quilômetros.
Por volta das doze horas alcançamos
o que seria o último ponto de civilização pelos próximos vários dias, a localidade
do Hermenegildo. Aproveitamos para reabastecer nossas garrafas de água e ainda
nos demos ao luxo de comprar umas frutas e um rápido lanche num comércio local,
e tocamos o barco.
No decorrer da tarde começamos a
sentir com mais intensidade o desgaste físico, o peso das mochilas e o
rendimento muito aquém do esperado em termos de velocidade de deslocamento, em
função, principalmente, do forte vento contra, mas um pouco também devido à
areia não ser tão firme quanto um piso de terra batida ou mesmo um piso rígido.
Já quase no final da tarde
cruzamos com alguns pescadores e moradores das redondezas, de carro, que nos
alertaram sobre locais para coleta de água próximo e nos desejaram boa sorte.
De olho na meta de fazer os 30 km pretendidos para o dia, não nos demos conta
de que estávamos já bem cansados, e prosseguimos até por
volta das 18 horas, quando finalmente atingimos a tal distância. Saímos alguns
metros da faixa de areia da praia e iniciamos a montagem do nosso acampamento,
o que, diga-se de passagem, não foi nada fácil devido ao insistente vento forte
que não dava um minuto de trégua.
Logo em seguida o sol se pôs e a
escuridão tomou conta, conferindo um ar quase místico ao ambiente em volta: a forte presença do mar ali do lado, com aquele
rugido constante das ondas no seu eterno vai e vem, o vento absurdo soprando
com fúria, testando a resistência das nossas barraquinhas, as estrelas no céu e
mais nada.
Cada um de nós entrou para o seu
casulo e, meio que embriagados pelo cansaço, meio que impedidos pelo vento, não
houve mais conversa.
Esforcei-me pra preparar uma rápida
refeição (dentro da barraca mesmo, porque não havia como acender o fogareiro do
lado de fora), comi, tomei um pouco d’água, de olho na quantidade ainda
restante, e de repente me caiu a ficha de que eu, pessoalmente (bem como,
aparentemente, meus companheiros também) não daria conta de manter aquele
ritmo por mais seis ou sete dias (o prazo que havíamos imaginado como limite). Naquele dia havíamos caminhado, apenas com curtos
intervalos de descanso, das sete e meia da manhã às seis da tarde, era apenas o
primeiro dia, e estávamos todos visivelmente exaustos.
Pensei em possíveis soluções. A
mais evidente seria esquecer aquela meta irreal de fazer 30 km pro dia e já
projetar concluir a jornada em nove ou até dez dias, mas aí a realidade nos
pegava por outro lado: teoricamente estávamos com suprimentos de alimentação
para até oito dias. A conta não fechava... Podíamos racionar um pouco a alimentação,
mas aí me surgiu outra dúvida cruel nesse tipo de situação: será que valeria a
pena? Não a questão de eventualmente ter que racionar a comida, mas a jornada
em si. E os dados do problema requeriam uma decisão naquele ponto em que
estávamos, porque se prosseguíssemos perderíamos, praticamente, a possibilidade
de fazer um auto resgaste, e se por algum motivo não pudéssemos ou
resolvêssemos não prosseguir mais à frente, ficaríamos à mercê de ajuda externa
para conseguir sair dali. Ou seja, muitas questões e sentimentos conflitantes.
Resolvi deixar tudo em suspenso, dormir e voltar a pensar no assunto na manhã
seguinte. A noite até que transcorreu bem, ainda que não se possa
dizer que tenha sido tranquila, por conta da barraca sacudindo furiosamente de
um lado para o outro incessantemente.
Pela manhã, todos pareciam mais
animados e refeitos da surra do dia anterior, mas a realidade dos fatos ainda
estava ali, incontornável. Convoquei então meus companheiros para uma conversa
e expus meu ponto de vista e minhas preocupações, concluindo que, por mim,
achava mais adequado abortarmos nossa investida e retornar ao ponto de início,
e de lá encerrar a viagem. Cada um expôs sua opinião, basicamente concordando
com o que eu havia dito, reconhecendo que estava sendo bem mais duro do que
havíamos imaginado. Pensamos ainda em algumas possíveis alternativas, como
prosseguir mais dois ou três dias, até o Farol do Albardão, ou até dividir o
grupo, fazendo com que dois retornassem e buscassem reformular todo o
planejamento, pensando inclusive em utilizar o nosso carro como apoio à
travessia. Mas o fato é que todas as ideias tinham sérios óbices, e assim nos
convencemos que o melhor mesmo era darmos o braço a torcer e encerrar a brincadeira.
Retornamos então 16,5
km até a localidade do Hermenegildo e lá demos por finalizada a nossa expedição.
Decisões como essa são sempre
difíceis e carregadas de emoção e de contrariedade. Não é fácil reconhecer que “não
vai dar”. Grande parte da dificuldade reside em conseguir enxergar com clareza
a situação, a fim de não errar a avaliação, nem pra mais, nem pra menos. Mal
comparando, é mais ou menos como escalar uma montanha: nunca é fácil desistir
do cume, principalmente quanto mais próximo se está dele. No nosso caso ali,
não havia propriamente um cume a conquistar, mas sim um “abismo horizontal” que
exigia um elevado nível de preparo e de abstração mental pra ser “vencido”.
Conversamos muito nos dias seguintes,
em que ainda ficamos juntos, a respeito do ocorrido, e acho que todos
concordamos que tomamos a melhor decisão naquele momento. Temos
muito claro que cometemos alguns erros determinantes de planejamento, como a
direção escolhida para a travessia e, no final das contas, o peso ainda excessivo
das mochilas (ou talvez a falta de preparo físico especifico pra caminhar
com aquele peso por longas distâncias e dias seguidos).
Além de todas essas questões
práticas, há também aspectos mais sutis e subjetivos, como a convicção na ideia
e o preparo psicológico para lidar com os elementos da empreitada (como alto
desconforto, incerteza, vazio de atrativos, isolamento, etc). Tudo tem
influência e importância.
E há também a reflexão a respeito
do formato que optamos para essa travessia: a pé, sem apoio externo.
Considerando que fazer a pé seja um parâmetro que se deseja, há que se
considerar se realmente precisa ser sem apoio, quer dizer, se essa condição é efetivamente
importante para o que se busca. Porque fazer, por exemplo, com apoio de um
veículo (que levaria a bagagem, suprimentos e água), ainda nos daria o prazer
da caminhada (que ainda assim seria difícil), da contemplação, do isolamento, etc., e
resolveria diversos outras dificuldades, mas não teria o “glamour” da
dificuldade extrema, do isolamento extremo, etc. E aí? O que de fato desejamos?
Isso é como essas histórias de escaladas em alta montanha, que lemos ou ouvimos
falar de vez em quando: com ou sem carregador?
Com ou sem oxigênio suplementar? Com ou
sem equipe de apoio?
Enfim, questões intermináveis e muito interessantes a serem pensadas, analisadas e decididas de acordo com os
critérios de cada um. Só acho que não devemos engessar o raciocínio e misturar
as coisas. Clareza, sobretudo.
No final das contas diria que perdemos
o jogo, mas aprendemos valiosas lições, tentamos, demos a cara a tapa, e, de
quebra, ainda nos divertimos, achando graça de nós mesmos, e ainda tivemos a
dádiva de fortalecer a amizade.
A praia ainda está lá (assim como
as montanhas). A ideia ainda está de pé. Vamos fazer os ajustes necessários e
oportunamente voltaremos a nos encontrar, se assim for pra ser.
Vamos juntos?
P.S: Meu muito obrigado aos companheiros
de jornada: Felipe, Newton e Andrea! Tenho certeza que cada vez que nos reencontrarmos
vamos relembrar dessa história e dar boas risadas. Valeu!
1º dia:
2º dia:
*** *** ***
Off topic (cliques aleatórios na viagem):
"O melhor da vida são as ilusões da vida."
(Honoré de Balzac)
Gratidão
Força Sempre
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