Três dias de caminhada
pela região de
Superagüi, Ariri, Batuva e Guaraqueçaba
*em parceria com Newton Adriano Weber (Caratuva)
Vermelho: 2º dia, de Ariri a Batuva-PR
(passando pela Trilha do Telégrafo) - 40 km
Azul: 3º dia, de Batuva a Guaraqueçaba-PR - 30 km
Roxo: 1º dia, de barco
Caminhar
longas distâncias tem o atributo inigualável de nos remeter a uma certa
ancestralidade, a uma simplicidade original que ecoa nos nossos genes mais
íntimos e profundos. Há um simbolismo nessa forma de percorrer distâncias que
parece nos levar de volta a um mundo de onde todos viemos, fazendo-nos sentir
algo como o sabor doce e pra sempre perdido de uma infância que jamais
retornará, de uma inocência que já não temos.
Peregrinar
é um ato que habita as histórias de busca e de reencontro do homem consigo
mesmo desde sempre.
Talvez
não haja nada mais simbólico da liberdade e do desapego dos confortos e tentações do mundo
moderno do que sair caminhando em uma direção, sem motivos ou recompensas.
Atendendo
a esse chamado interno, aceitei o convite do amigo Newton Adriano Weber
(Caratuva) pra fazer esse trekking de três dias pela belíssima região de
Superagüi e do Parque Estadual Lagamar de Cananeia.
Preâmbulo
A
ideia era partir de Guaraqueçaba, onde o Newton mora, para o vilarejo de
Superagüi, de barco, e a partir de lá começar a caminhada percorrendo toda a
extensão da praia deserta da Ilha de Superagüi.
Aproveitando
uma previsão de janela de tempo bom na região, marcamos o início da empreitada
para o dia 27 de Janeiro.
Por
coincidência, o pessoal da Reserva Natural Salto Morato marcou para o dia
anterior uma caminhada guiada em uma trilha normalmente fechada ao público
naquele espaço. O Newton comentou comigo sobre esse evento e resolvemos
incluí-lo na nossa programação.
Assim,
desci pra Guaraqueçaba, de carro, no dia 25, enfrentando com a necessária
cautela os 80 km de buracos e pedras da estrada de terra que leva até aquelas
bandas.
Cheguei
no final da tarde, bem a tempo de apreciar o lindo pôr do sol do outro lado da
Baía – verdadeiro espetáculo, em um dia especialmente limpo e transparente,
raro de ver por aqui. Bom presságio para iniciar uma jornada ao ar livre.
No
domingo, 26, juntamo-nos a um grupo de dez pessoas e percorremos a Trilha do
Bracinho, dentro da Reserva Natural Salto Morato. Foram cerca de duas horas e
meia de ida até uma cachoeira escondida no meio da mata, em um local
especialmente bonito e refrescante em um dia quente como aquele, e depois mais
duas horas pra retornar à sede da Reserva.
Contamos
com o acompanhamento de uma pequena equipe (biólogo, agente de relações
públicas e um guia) da Fundação Boticário, que administra a Reserva, que nos
explicou detalhes interessantes da fauna e da flora locais, além de aspectos do
funcionamento do espaço e do trabalho de preservação e conservação daquele ambiente natural.
Foi
bom pra nos introduzir ao ritmo da caminhada e da apreciação da natureza ao
nosso redor.
1º
dia
Às
cinco e quinze da manhã encontramo-nos com o barqueiro com quem o Newton havia
combinado o nosso transporte até o Vilarejo de Superagüi.
No
horizonte, o céu tingido de laranja escuro anunciava um belo dia de sol pela
frente, o que era excelente pra animar, mas também era um tanto preocupante,
tendo em vista que caminharíamos o dia todo pela praia, sem nenhuma proteção de
sombra ou qualquer outra cobertura.
Levamos
cerca de uma hora e meia até o nosso destino, com o barquinho zunindo o
barulhento motor nos nossos ouvidos, o que, no entanto, não chegou a
comprometer o verdadeiro espetáculo do nascer do sol e do alvorecer do dia em
um ambiente como aquele.
No
caminho, demos uma parada em uma ilha, pra apreciar a revoada de dezenas de
papagaios, que todos os dias alçam voo pela manhã e retornam no final da tarde.
Natureza em estado puro, encantador.
Às
sete horas desembarcamos na praia da Vila de Superagüi, despedimo-nos do
barqueiro, que retornaria a Guaraqueçaba, colocamos nossas mochilas, e sem
maiores cerimônias, pusemo-nos a caminho.
Praia na Vila de Superagüi
A
primeira meia hora de caminhada foi através de uma trilha que sai dos fundos da vila e vai
percorrendo um caminho por entre as pequenas árvores. Em seguida chegamos à
praia deserta, que seria nosso caminho no restante do dia, no sentido norte.
Nosso
planejamento previa os pernoites em pousadas, nas vilas por onde passaríamos.
Por isso levávamos apenas uma mochila de média capacidade (30 litros) com
algumas mudas de roupa, kit de higiene, um pequeno lanche e muita água, já que
os trajetos (entre um ponto de pernoite e outro) eram todos por regiões
inóspitas, sem qualquer apoio ou lugar pra comprar alguma coisa.
A
Praia Deserta de Superagüi não tem esse nome à toa. São quase 30 km de areia,
mar e céu, sem nada no caminho. Ideal pra sentir essa rara e tão instigante
sensação de se sentir meio sozinho no mundo, distante de tudo.
Uma das várias boias perdidas ao longo da praia
A
percepção do tempo e da distância num ambiente como esse fica sensivelmente
modificada. Tínhamos noção da distância que deveríamos percorrer até o nosso
local de chegada, mas não exatamente quanto. Como a paisagem praticamente não
se modifica, não há muitas referências visuais, e o negócio é apenas andar e
confiar que cada passo a mais é um passo a menos na meta do dia.
Vale
lembrar que o Superagüi é uma ilha, e nosso destino desse dia era a cidadezinha
de Ariri, no continente, já no estado de São Paulo. Nosso ponto de chegada
seria o final da praia, onde o Newton já havia acertado com um barqueiro da
região para nos resgatar no meio da tarde.
Newton ao lado de um osso de baleia
Aproveitando uma rara sombra pra fazer um lanche
A longa Praia Deserta, vista pelo Mavic, sentido norte
Do mesmo ponto da foto anterior, olhando para o sul
[Quando fazia esse voo com o drone, passei um sufoco por conta de uma conjunção de fatores adversos nos controles. Estava voando relativamente alto, realizando as tomadas acima, quando o controle soou o alerta de bateria baixa, o que significa 30% da capacidade total, ou algo em torno de cinco minutos restantes de voo. Comecei então a baixar para o pouso, mas em seguida o equipamento entrou em modo de retorno automático para o local de decolagem. Acontece que estava a algumas centenas de metros distante do local de onde havia decolado, e por isso cancelei essa função e reassumi o controle.
O problema é que não estava mais enxergando onde estava a aeronave, e na sequência o controle soou o alerta de bateria extremamente baixa! Não tendo outra opção, pousei sem saber onde, guiado apenas pela câmera do drone. Em seguida o controle perdeu a conexão com a aeronave, provavelmente devido à baixa carga da bateria.
Resultado: tinha quase certeza de que havia pousado, mas não sabia onde, pra frente ou pra trás de onde estávamos. Num espaço aberto como aquele, isso era meio complicado. Iniciamos então a busca visual, caminhando ao longo da praia, e fomos encontra-lo pousado tranquilamente sobre a areia, somente uns vinte minutos depois, o que me pareceu uma eternidade.
Contribuiu para a pane de operador o excesso de luz incidindo sobre os controles, o que dificultou sobremaneira a visualização dos dados do voo. Mas é isso: vivendo e aprendendo. No final das contas, os acertos foram maiores do que os erros nessa confusão toda.]
Por
volta das 15 horas começamos a avistar algo como uma barra de rio à frente.
Andando mais um pouco enxergamos um barco encostado do lado de dentro da
pequena ponta de areia. Era o nosso resgate.
Naquele
local aconteceu, há poucos meses, uma grande transformação natural. Na verdade
continua acontecendo. Um pouco mais à frente do local onde paramos, o mar
erodiu um grande pedaço da praia. Onde antes havia uma barra pequena, de
algumas centenas de metros, se transformou numa barra grande, de mais de três
quilômetros de extensão. E pouco antes desse local, onde antes havia uma
pequena saída para o mar, foi e continua sendo aterrado.
Esse
fenômeno mexeu bastante com a vida dos moradores locais. Casas foram perdidas,
vilas foram abandonadas, e os hábitos dos pescadores tiveram que ser
modificados – onde antes qualquer barco passava, agora só barcos maiores e mais
capacitados conseguem sair para o mar em dias mais encrespados. É o nosso
planetinha se modificando por conta própria bem debaixo do nosso nariz.
Levamos
cerca de meia hora de barco até a vila de Ariri, passando por trechos bem
mexidos de lagamar, afetados pela grande e nova abertura para o mar ali perto.
Em
Ariri, hospedamo-nos numa pousada local, que já conhecíamos de outras visitas,
e nos permitimos o devido e necessário descanso. E devo ressaltar que tomar um banho e dormir numa cama decente depois de um longo dia de atividade outdoor é um enorme prazer.
Pousada em Ariri
1º dia: da Vila de Superagüi ao final da Praia Deserta
(tempo total, incluindo paradas)
2º
dia
A
segunda pernada do nosso trajeto tinha previsão de ser a mais longa das três –
prevíamos algo em torno de 37 km. Além disso, grande parte desse percurso seria
por uma estrada de terra que atravessa a região. Ou seja, a paisagem seria
completamente diferente do dia anterior.
Acordamos
cedo, mas ficamos na dependência do horário do café da manhã da pousada, e depois
nos enrolamos um pouco com um bom bate papo com o dono da hospedaria, e por
isso acabamos saindo apenas às oito e meia da manhã.
A
estrada que sai de Ariri em direção a Cananeia, por onde caminhamos nas
primeiras horas, é incrivelmente deserta e pouco movimentada. Não há nada nem
ninguém em volta. De tal forma que tivemos que levar novamente bastante água e
um pequeno lanche pra segurar a fome.
O calor aumentou em relação ao dia anterior, porque ali não havia a brisa
refrescante que sempre sopra à beira mar. O que nos salvou foi o incrível
esquema de refrigeração que o Newton desenvolveu – uma bolsa de material
isolante térmico, onde ele levava as garrafinhas de água congeladas previamente.
Essa fantástica solução nos garantiu água gelada durante todo o dia. Mais um
aprendizado a ser levado para as próximas empreitadas!
Com
25 km andados chegamos à bifurcação onde à direita a estrada segue pra
Cananeia, e à esquerda inflete sentido sul, na direção do Paraná.
Aos
32 km, já bastante cansados, chegamos na entrada da icônica Trilha do Telégrafo
– uma surpreendente trilha de cerca de 7 km de extensão que liga São Paulo ao
Paraná pelo meio da mata, e por onde não passam carros.
Nesse momento já era quatro e pouco da tarde, o céu, a essa altura, já estava mais pra cinza
do que pra azul e o calor ainda incomodava, mas sabíamos que logo após o término
desse trecho de trilha chegaríamos ao nosso destino do dia, uma pequena vila de
agricultores onde passaríamos a noite.
Um dos poucos postes originais, remanescente na Trilha do Telégrafo
Mais
surpreendente do que haver uma trilha naquele fim de mundo, foi constatar que
havia pessoas morando ao longo desse percurso. E não poucas. Cruzamos com
vários habitantes locais, visivelmente engajados em suas tarefas diárias de cuidar
da pequena lavoura de subsistência, ou roçar o mato vigoroso prestes a tomar
conta de tudo, ou indo e voltando sabe deus de onde. Quem quiser experimentar uma
temporada escondido do mundo, certamente aquele é o lugar.
Algum ponto da Trilha do Telégrafo, visto pelo Mavic
Por
volta das seis e meia chegamos ao final da trilha, e meia hora depois estávamos
no bar da Dona Nica, no vilarejo do Batuva. O GPS marcava 40 km percorridos. Eu estava mais do que cansado – estava naquele estado de quase exaustão, que traz aquela
ambígua sensação de uma espécie de desconforto generalizado misturado com um
enorme prazer, uma espécie de relaxamento que só esses momentos extremos são
capazes de nos proporcionar. Se tivesse um medidor de energia no corpo,
certamente nesse momento ele estaria naquele estado mínimo, piscando, quase no
zero. Bom demais!
Chegada em Batuva. Ao fundo, o bar da Dona Nica
O
quarto em que ficamos, nos fundos do bar, era incrivelmente bem arrumado e
limpo, num capricho só. Curioso observar que não havia na frente do bar nenhuma
placa indicando que havia ali quartos pra alugar. Na verdade nem o bar em si
tinha placa alguma. Tudo ali é na base do boca a boca. Se quiser saber, tem que
perguntar. E além disso a disponibilização dos quartos pode ficar sujeita a uma
avaliação prévia do pretendente. Protocolos do interior...
O
Newton já conhecia o lugar, e me contou a bela história de vida da dona, que
ficou viúva cedo, passou fome, pensou em dar os filhos para adoção, mas deu a
volta por cima, e aos poucos foi superando as dificuldades, segurou as pontas,
e conseguiu se estabelecer com um comércio digno e de referência no pequeno vilarejo.
História de vida admirável.
Dormimos
aquele sono profundo e gratificante típico de um pós jornada intensa e extensa.
2º dia: de Ariri a Batuva
(tempo total, incluindo paradas)
3º
dia
Na
noite anterior fiquei seriamente preocupado se o corpo se recuperaria do
desgaste daquela etapa, para prosseguir no dia seguinte. Pensei que seria
complicado encarar mais umas dezenas de quilômetros no outro dia naquele estado
dramático de extremo cansaço. Mas nada como um dia depois do outro, com uma
noite no meio.
Acordamos revigorados, prontos pra última etapa do nosso passeio, que seria
totalmente por estradas de terra, perfazendo um total estimado de 30 km.
O
calor já era intenso desde as primeiras horas da manhã. Aprontamo-nos,
despedimo-nos da Dona Nica, que nos atendeu atenciosa e gentilmente o tempo
todo, e colocamos o pé na estrada.
O
trecho até a estrada principal de Guaraqueçaba tinha 18 km. Combinamos fazer
três pernadas de 6 km, com breves descansos entre elas. A graça dessa etapa
ficou por conta dos muitos riachos que cortam a estrada. Procurávamos parar
sempre junto a um deles, e assim aproveitar para um refrescante banho de
imersão nas águas límpidas e frias.
Chegando
na estrada principal, contávamos em parar num barzinho que o Newton sabia que
tinha ali, pra tomar alguma coisa e fazer um lanche. Acontece que o tal bar
estava fechado, e com isso frustramo-nos e tivemos que prosseguir contando
apenas com o estoque de água que levávamos.
Por
volta das 15 horas chegamos nas imediações da cidade de Guaraqueçaba, e pouco
minutos depois estávamos na praça central, junto ao píer, extremamente
satisfeitos por concluir bem o pequeno desafio ao qual havíamos nos lançado
três dias atrás.
3º dia: de Batuva a Guaraqueçaba
(tempo total, incluindo paradas)
Conclusão
Vivemos
em um mundo e um tempo de muitas e variadas possibilidades, em todas as áreas.
Pra qualquer lado que se olhe, há múltiplas opções de caminhos a seguir, de
coisas a fazer, de itens que seria interessante possuir. Mas essa diversidade
toda traz embutida em si a angústia de não ser possível fazer tudo, ter tudo,
usufruir de todas as possibilidades. Nem mesmo se fosse uma de cada vez.
Daí
a beleza de, de vez em quando, reduzir todo esse jogo a uma simplicidade
restrita e pré definida. É o que acontece em uma caminhada como essa:
fechamo-nos em um mundo particular, com um único caminho a ser percorrido,
poucas coisas pra levar e pra usar e uma única atividade a ser realizada ao
longo de todo o dia.
Bacana
se trouxéssemos um pouco desse modelo pra nossa vida diária, não é?
Oxalá possamos manter sempre essa força que nos impulsiona a sair do lugar comum, ainda
que seja para lugar nenhum... Que sejamos sempre capazes de encontrar sentido
nos caminhos que percorremos, sejam quais forem... Que sejamos sempre fieis a
nós mesmos e a esses chamados que nos falam à alma.
Assista no link abaixo (clique sobre o título) a
um pequeno vídeo da caminhada
*** *** ***
Meu muito obrigado ao amigo Newton pelo convite, por ter organizado tudo, por me receber na sua casa, pela parceria na caminhada e pela amizade. Valeu! Vamos pensar na próxima!
O Newton (Caratuva) e a Andrea trabalham como
guias de eco-turismo em Guaraqueçaba e região.
Super recomendados!
*** *** ***
Ponte sobre o Rio Cachoeira, na estrada que leva a Guaraqueçaba
Pôr do Sol na Baía de Guaraqueçaba, visto pelo Mavic
"Um dia podemos descobrir que toda viagem é, de algum modo,
uma peregrinação em busca de um lugar que é o coração do viajante.
Seu destino final é sua realidade interior,
mas faz parte do ritual a busca em lugares distantes,
onde seu coração sempre vai,
desejoso de um encontro que nem sempre acontece."
(Luiz Carlos Lisboa)
Gratidão
Força Sempre
Que caminhada maravilhosa com uma narrativa espetacular,lindas fotos! Parabéns a todos os envolvidos .
ResponderExcluirOpa. Maravilha de percurso. Diz uma coisa, quase no final da praia deserta, onde tem uma casa e canoa junto a uns tipos de pinus, nenhum cachorro tentou os atacar?
ResponderExcluirShow, da vontade de pegar a mochila, muito bom, Parabéns
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