Entre amigos e caiaques
* em parceria com Mauro Bevilacqua e amigos *
Fui participar dessa remada em Cananeia mais uma vez a
convite do amigo Mauro Bevilacqua, fabricante e mestre dos caiaques Ygará. Mais
uma vez também o Mauro estava aproveitando a entrega de um barco duplo aos
amigos de Guaraqueçaba Newton e Andrea pra organizar uma pequena expedição
nessa região que é, certamente, uma das mais belas do nosso litoral.
O Newton e a Andrea foram ainda mais ousados, pois saíram
caminhando do vilarejo de Superagui dois dias antes de nos encontrarmos,
fazendo um trekking duro e com certeza muito bonito de cerca de 30 km por
praias desertas.
Encontramo-nos no final da tarde da terça-feira na pousada
previamente combinada em Cananeia. Como eu estava com o meu carro
temporariamente indisponível por esses dias, não tive como levar o meu barco,
por isso o Mauro fez a inestimável gentileza de me emprestar um dos seus, o
moderno Inuk 560, para a remada.
Aproveitei essa conjunção de circunstâncias pra fazer a
pequena viagem de Curitiba a Cananeia (240 km) com a BMW R 1200 GS, e com isso
curtir um pouquinho do prazer de pilotar em estrada.
À noite saímos pra jantar num restaurante próximo e colocar a
conversa e os planos em dia. A ideia era remar até a cidadezinha de Ariri – a
uma distância aproximada de 40 km do nosso ponto de saída -, seguindo o curso
do emblemático Canal do Varadouro, que é um curso d’água que liga a região
lagunar de Cananeia à Baía dos Pinheiros em Guaraqueçaba e ao mar aberto na
altura do vilarejo de Superagui. De lá o Newton e a Andréa prosseguiriam
sozinhos até a casa deles, em Guaraqueçaba, e o Mauro, a Carla e eu faríamos um
dia de descanso e no outro retornaríamos ao ponto de saída em Cananeia.
Em setembro de 2016 tive a oportunidade de remar toda a
extensão do Canal do Varadouro em uma expedição de quatro dias com o amigo
Alexandre Manzan (relatada aqui no blog neste link: Viagem de caiaque pelo Canal do Varadouro), ocasião em que
pegamos muita chuva e céu fechado. Desta vez as condições eram outras:
predominava em toda a região, nesses dias, um calor infernal. O jeito era se
adaptar e curtir a brincadeira.
Na quarta feira levantamos cedo e começamos a colocar nossos
planos em ação. Tomamos um rápido café da manhã e em seguida iniciamos a
arrumação final dos equipamentos e transporte dos barcos até a marina de onde
zarparíamos para a remada.
Apesar de termos trabalhado com bastante agilidade, essas
arrumações sempre demandam algum tempo, de tal forma que conseguimos colocar os
remos n’água pouco depois das dez horas.
Mauro e Carla
O dia estava bonito e, conforme o previsto, muito quente
desde cedo. Saímos por dentro da baía, do outro lado da cidade de Cananeia, em
águas bem abrigadas. As duas primeiras horas pareceram mais lentas do que o
habitual, talvez em função da maré contra, talvez por causa mesmo da alta
temperatura, que deixa tudo com aquela sensação de pouco rendimento e lerdeza.
O belo Inuk 560, barco de projeto irlandês, construído sob
licença pelo Mauro em sua fábrica na cidade de Piedade-SP, me encantou com suas
linhas elegantes e cheias de estilo. Em comparação ao Kayapó, com o qual estou
bem acostumado, destaca-se o fino acabamento dos detalhes, a visível qualidade
dos materiais e o design mais esguio
do convés, com detalhes como os rebaixamentos de ambos os lados, feitos para se
harmonizar à passagem dos remos naqueles pontos. As tampas dos compartimentos
de carga são também um luxo, feitas de uma borracha especial, com encaixe
perfeito e de fácil colocação e retirada, dispensam a necessidade das capas de
neoprene utilizadas no Kayapó, o que torna sua utilização mais prática e
eficiente.
Fazer um teste como esse é um perigo, pois pode causar aquele
impacto de perceber subitamente como esse equipamento é superior ao que possuo,
e, com isso, desanimar a posterior volta ao barco de origem. Mas apesar da
inegável superioridade do moderno Inuk em relação ao clássico Kayapó, me sinto
muito satisfeito com este último, que é um “pau pra toda obra” nesse mundo
atrativo dos caiaques oceânicos.
Ao entrarmos no Canal do Varadouro, já por volta de uma hora
da tarde, a paisagem em volta começou a mudar. Do ambiente amplo e de
horizontes longínquos da baía em que vínhamos remando, estreitou-se e tomou
aspecto de um leito de rio, com intensa e intacta vegetação de mangue de ambos
os lados. O problema desse tipo de margem é que não tem onde desembarcar, já
que o espelho d’água adentra vários metros intrincado com os galhos das
árvores. Assim, as horas foram passando e não havia como fazer as paradas
técnicas, pra dar aquela esticada nas pernas e descansar um pouco.
Newton e Andréa
Outra característica marcante do canal é a
variação e forte influência da maré na correnteza do curso d’água. Dependendo
da hora do dia e da condição da maré, a correnteza varia entre contra, neutra
ou a favor. Para um barco a motor isso pode não fazer muita diferença, mas
quando se está apenas com a força dos remos esse é um fator bem importante.
Tentar entender e prever como a maré estará em cada hora do dia também não é um
processo muito fácil, porque essa influência depende também das condições
geográficas do local em que nos encontrávamos (distância do mar, curvas do
canal, etc.). Por isso, acabamos não nos prendendo muito a essa questão. A
questão era remar!
Procurando uma sombrinha...
Um aspecto muito bacana desse lugar é que é bem pouco
movimentado. Só de vez em quando passa um ou outro barco pequeno. Isso faz da
remada um instigante exercício de introspecção e contemplação ativa, embalado
pelo marulhar da água nas pás dos remos.
Interessante também observar como os caiaques duplos navegam
bem. Vistos em terra esses barcos aparentam ser demasiadamente grandes, e
suspeita-se que não sejam lá muito eficientes dentro d’água. Colocados pra
flutuar, no entanto, vê-se que essa é uma impressão equivocada, e que eles são
sim bem desenvoltos. Talvez se fizermos um cálculo de relação matemática entre
peso e volume a ser deslocado e capacidade de tração de cada remador, chegue-se
à explicação dessa boa eficiência dos duplos.
Newton e Andréa
As horas foram passando e, como de costume, fomos encaixando
o ritmo da remada. Por volta das cinco e meia começamos a avistar os primeiros
vestígios do vilarejo de Marujá, que sabíamos que ficava já próximo do nosso
destino planejado para o dia.
Pouco depois, numa curva do canal, alcançamos a “vila
fantasma” de Ararapira, assim chamada porque é um pequeno conjunto de casas que
com o tempo foi abandonado por seus moradores, e hoje restam as ruínas do que
outrora era vida. Desembarcamos pra visitar a igreja e as casas próximas, e pra
observar a geografia em volta.
A igrejinha de Ararapira
A "vila fantasma" de Ararapira, o Canal do Varadouro e o mar
Meia hora depois, às sete e quinze da noite, chegamos à
pequena cidade de Ariri, aonde passaríamos a noite. Achamos uma pousada próxima
ao ponto de desembarque e demos por encerrado nosso “expediente”.
Garagem da pousada em que ficamos
Mais tarde comemoramos o sucesso da nossa jornada num
restaurantezinho local, com um jantar à base de frutos do mar, boa conversa e
aquele cansaço bom decorrente de um longo dia de atividade.
No dia seguinte despedimo-nos do Newton e da Andréa, que
prosseguiram em direção a Guaraqueçaba, aonde chegariam no final da tarde, após
mais uma longa pernada de 42 km.
Nós três contratamos um barco a motor do rapaz da pousada e
fomos dar uma volta na praia do vilarejo de Marujá, por onde havíamos passado
sem desembarcar na véspera. Caminhamos umas duas horas indo e voltando ao final
da praia, completamente deserta, observando os pássaros, os caranguejos, as
nuvens, as ondas, as pedras, o vento. De volta à pequena vila, almoçamos no
restaurante da Dona Maria e depois aguardamos alguns minutos até que nosso
resgate chegasse.
No caminho de volta para Ariri o nosso barqueiro nos convidou
para dar uma esticada por algumas reentrâncias do canal, indo até próximo do
mar, onde nos explicou o que aconteceu ali há alguns meses. Uma grande porção
de praia foi simplesmente engolida pelo mar (indicado pela seta vermelha na foto abaixo), abrindo-se mais um ponto de
contato entre o Canal do Varadouro e o oceano. É impressionante ver essa
modificação in loco. Nesses momentos
compreende-se nitidamente que nosso planeta é realmente vivo e está em
constante transformação, e que as forças e intenções humanas são
insignificantes diante da grandeza e da dinâmica da natureza.
A seta vermelha indica o local em que o mar engoliu a praia, há poucos meses
Em novembro de 2014 fiz uma viagem solo de bicicleta por essa região
(relatada aqui no blog, neste link: Viagem de bicicleta Superagui), na qual percorri toda a extensão de
praia desde o Superagui até o Marujá. Hoje, devido a essa recente revolução
geográfica, esse trajeto já não é possível de ser feito, porque a praia foi
dividida por esse desmoronamento.
O nosso guia nos contou também que algumas casas próximas
tiveram que ser abandonadas e seus moradores tiveram que migrar para outras
localidades, além de outras consequências, como o assoreamento de vias fluviais
das redondezas. É como um efeito dominó: na hora que cai uma peça, várias
outras são afetadas.
No meio da tarde estávamos de volta a Ariri. Tiramos o
restante do dia pra descansar e preparar o retorno no dia seguinte.
O Canal do Varadouro no fim de tarde, visto pelo Mavic
À noitinha demos uma saída pra fazer um lanche e dar uma
caminhada pelas ruas em volta. Interessante perceber o ritmo de lugares como
esse, onde todo mundo conhece todo mundo. É tentador imaginar que o paraíso
deve estar logo ali, na próxima curva da estrada, que cidades pequenas são mais
humanas, onde as pessoas se cumprimentam e se preocupam umas com as outras, em
contraste com as cidades grandes, onde vizinhos mal sabem o nome uns dos outros
e tudo é muito mais impessoal. Mas existe um outro lado dessa história. Essa
proximidade típica dos lugarejos pode facilmente descambar para o
“patrulhamento” da vida alheia, e daí para a falta de privacidade é um pulinho.
O fato é que não existe “fórmula do bolo”, a solução perfeita para todos os
problemas. Cada modelo tem suas virtudes e suas mazelas. É bom sempre tomar
cuidado com os paradigmas que se vendem por aí, ou que nós mesmos criamos
dentro das nossas cabeças.
Na sexta feira acordamos bem cedo, na verdade, mais cedo do
que pretendíamos, porque em função das fortes chuvas que caíram na madrugada
houve uma pane elétrica na cidade, e com isso ficou tudo sem energia, e, por
consequência, sem ar condicionado, e assim o calor começou a incomodar antes de
amanhecer.
Aproveitamos pra arrumar tudo e ficar prontos pra partir o
quanto antes. Às oito horas estávamos na água. A primeira hora foi fantástica:
com a maré vazando a correnteza ficou a nosso favor e os barcos pareciam estar
voando sobre a água.
O dia rendeu bem. Mesmo sem maré a favor na maior parte do
tempo, parecia que estávamos mais à vontade com os remos e o rendimento foi um
pouco melhor do que na ida.
Mauro e Carla, num dos raros pontos disponíveis pra desembarcar
A certa altura, já na baía de Cananeia, por alguns momentos
pude contemplar uma dessas cenas idílicas: o Mauro e a Carla remando em seu
caiaque com as montanhas ao fundo, a água completamente lisa, como uma piscina
azul imóvel, e duas grandes aves dando voos rasantes em volta do barco deles.
Momentos assim nos fazem ter a sensação de que vale a pena se jogar nessas
pequenas aventuras.
Mauro e Carla
Às três e meia da tarde encostamos no píer da marina de onde
havíamos partido dois dias antes, sob um calor escaldante e com aquela
impagável sensação de alegria e satisfação por ter completado mais uma remada
bacana.
Outro dia estava lendo um texto do historiador israelense
Yuval Noah Harari (autor de “Sapiens, uma breve história da humanidade”), no
qual ele aborda o modo como nós, humanos, costumamos registrar nossas
memórias. Em resumo, ele defende que existe o “eu da experiência” e o “eu da
narrativa”, sendo que o primeiro é aquele que vive os fatos momento a momento e
o segundo é o responsável por “resgatar memórias, contar histórias e tomar
grandes decisões. (...) E está eternamente ocupado fantasiando sobre o passado
e fazendo planos para o futuro. Como todo jornalista, todo poeta e todo
político, o eu da narrativa toma muitos atalhos. Não narra tudo e comumente
tece uma história apenas com os pontos culminantes e os resultados finais.”
Refletindo sobre esses conceitos é fácil perceber que
realmente fazem sentido. De certa forma nossa memória é mesmo muito mais
benevolente com o passado do que a dura realidade dos fatos. Mas isso não quer
dizer que isso seja errado, ou que é um processo de distorção dos
acontecimentos. Creio que é a forma como interpretamos a vida.
No final das contas, a beleza do mundo e da própria vida
talvez seja mesmo uma visão muito mais subjetiva do que objetiva. É preciso
então manter e desenvolver essa valiosa capacidade de ver graça num mundo que,
em si, é apenas um mundo.
Bom demais!
A turminha (da esquerda pra direita):
Newton Weber (Caratuva), Andrea Santana, eu, Carla Barboza e Mauro Bevilcqua
P & B:
Meu muito obrigado ao Mauro Bevilacqua pelo convite e pelo empréstimo do caiaque, e a todos do grupo pela amizade e companheirismo na empreitada. Que possamos fazer novas parcerias para projetos futuros. Valeu!
Observações:
- Caiaques utilizados: modelos Marajó (duplos) e Inuk 560 (individual) - ygaracaiaques.com.br
- O Newton e a Andréa estão operando roteiros de caiaque, mountain bike e caminhada em Guaraqueçaba e região, inclusive com aluguel de caiaques. Quem quiser conhecer a área com essas abordagens, eles são os experts. No instagram: vivaguaraoutdoor.
Percurso e dados da ida: Cananeia a Ariri, 19 Dez
Volta: Ariri a Cananeia, 21 Dez
Interior da igrejinha de Ararapira
"O progresso é a realização de utopias".
(Oscar Wilde)
Gratidão
Força Sempre