Travessia da
Serra Fina
Três dias de trekking nas montanhas da Mantiqueira
Em parceria com Felipe Amante
A
travessia da Serra Fina, localizada na divisa dos Estados de Minas, São Paulo e
Rio de Janeiro (entre as cidades de Passa Quatro/MG e Itamonte/MG), era mais uma das várias ideias que habitam meus sonhos de viagens e
instigam minha imaginação. Bastante conhecido no mundo outdoor como sendo “o trekking mais duro e mais bonito do Brasil”,
a caminhada impõe respeito e requer certa cautela na sua realização.
Carta topográfica da travessia
O
parceiro dessa empreitada foi o amigo Felipe Amante, de São Paulo. Estivemos
juntos em Urubici, no começo de julho, numa estadia de alguns dias na pousada
do nosso amigo Max, e, na ocasião, em conversas ao lado da lareira, entre um
copo de vinho e outro, a ideia foi relembrada e semeada. Algumas semanas depois
nos auto propusemos uma data e começamos a ajustar as circunstâncias para por o
pé na trilha.
Cerca de uma semana antes da data prevista iniciamos o monitoramento da previsão do tempo, condição essencial nessa caminhada. A temporada recomendada para essa travessia é o inverno, mais ou menos entre junho e meados de setembro, no máximo. Depois disso começam os períodos de chuva, e com ela as tempestades elétricas, tão perigosas nesse ambiente e situação. Ou seja, estávamos no limite final da época recomendada para a atividade. Se deixássemos pra depois corríamos o sério risco de ter que deixar somente para o próximo ano.
Com o avançar dos dias a previsão se consolidou, digamos assim, e nos mostrou uma janela de tempo bom na quinta e na sexta-feira, porém com chuvas iniciando no sábado e se estendendo pelo domingo. Existe um consenso de que o período ideal pra se fazer essa travessia é de quatro dias (e três noites) [mais tarde entenderíamos o porque dessa recomendação]. Como estávamos com tudo engrenado para iniciar o trekking na quinta-feira, começamos a entrar num quebra-cabeça com as circunstância à nossa frente. Ou adiávamos toda a viagem para uma outra remota oportunidade ou encarávamos as condições disponíveis, e nos virávamos com elas.
Felipe
Cerca de uma semana antes da data prevista iniciamos o monitoramento da previsão do tempo, condição essencial nessa caminhada. A temporada recomendada para essa travessia é o inverno, mais ou menos entre junho e meados de setembro, no máximo. Depois disso começam os períodos de chuva, e com ela as tempestades elétricas, tão perigosas nesse ambiente e situação. Ou seja, estávamos no limite final da época recomendada para a atividade. Se deixássemos pra depois corríamos o sério risco de ter que deixar somente para o próximo ano.
Com o avançar dos dias a previsão se consolidou, digamos assim, e nos mostrou uma janela de tempo bom na quinta e na sexta-feira, porém com chuvas iniciando no sábado e se estendendo pelo domingo. Existe um consenso de que o período ideal pra se fazer essa travessia é de quatro dias (e três noites) [mais tarde entenderíamos o porque dessa recomendação]. Como estávamos com tudo engrenado para iniciar o trekking na quinta-feira, começamos a entrar num quebra-cabeça com as circunstância à nossa frente. Ou adiávamos toda a viagem para uma outra remota oportunidade ou encarávamos as condições disponíveis, e nos virávamos com elas.
A
solução imaginada foi apertar o cronograma da travessia e tentar conclui-la em três
dias, em vez dos quatro recomendados. Assim, se a previsão se confirmasse, e se
tudo desse certo, pegaríamos chuva apenas no último dia, já no final.
Finalmente
concordamos em assumir os riscos desse planejamento e combinamos de nos
encontrar no Refúgio Serra Fina – uma simpática pousada pouco antes do começo
da trilha, nas imediações da cidadezinha mineira de Passa Quatro-. no final do
dia seguinte.
Após
uma longa viagem de carro desde Curitiba, cheguei à tal pousada exatamente no
momento em que o sol estava se pondo por trás das lindas montanhas no
horizonte. O rapaz que me recebeu disse: “chegou na hora certa...”. Recebi
aquelas boas vindas como um sinal de que as coisas dariam certo. A paz daquele
lugar me arrebatou por completo no instante em que desci do carro. Parei por
alguns momentos pra vivenciar com calma aqueles minutos e tive aquela grata
sensação de me sentir em um desses lugares que nos trazem aquela aconchegante
sensação de identidade.
O
Felipe chegou pouco depois. Acertamos os últimos detalhes de equipamentos,
suprimentos, planejamento e “angústias” de cada um, jantamos e nos recolhemos
ao nosso alojamento, para uma noite absolutamente silenciosa de um bom sono,
com poucos sonhos.
Uma
das características dessa travessia é que entre o início e o fim só há dois
pontos de água em que se pode ter certeza de encontra-la para reabastecer os
cantis. Isso exige que se saia com pelo menos 4,5 a 5 litros de água na mochila,
cada um – quantidade necessária para beber, cozinhar e fazer a higiene pessoal
por cerca de um dia e meio, dependendo do ritmo de caminhada. Isso, somado à
alimentação (autonomia para 4 dias), ao equipamento de camping (barraca, saco
de dormir, isolante, panela, fogareiro, gás, etc), aos itens de vestuário e de
uso pessoal e aos inevitáveis (ainda que poucos) equipamentos eletrônicos,
resultou numa mochila com aproximadamente 22 kg de peso! O que não se pode
dizer que seja leve.
No
dia seguinte cedo, ao café da manhã, encontramo-nos com o dono da pousada,
Maurício Anchovas – que, mais do que proprietário do local, é montanhista de
alta montanha com várias conquistas ao redor do mundo e “alma de montanhista”,
pelo que pudemos perceber. Ele nos deu algumas últimas dicas e orientações,
enfatizando que seria altamente recomendável terminar a travessia até sábado,
pra não estar na montanha com a chuva prevista para o domingo.
Um
dos problemas de quebrar o cronograma “ideal” de quatro dias é perder a ordem
dos pontos de pernoite previamente ajustados no roteiro padrão. A travessia se
orienta basicamente pela conquista de três grandes picos da região – Capim Amarelo,
Pedra da Mina e Pico dos Três Estados -, sendo que esses cumes são ligados, em
grande parte, pela linha de crista das elevações entre eles. Nesse formato,
cada pernoite é feito no alto de cada um desses picos, em locais adequados para
se montar a barraca. Mas para fazer em três dias os pontos de parada para
pernoite teriam que ficar indefinidos, porque dependeriam do ritmo que
conseguíssemos empreender. O Maurício nos deu algumas dicas e ideias para
resolver esse quebra-cabeça, mas ainda assim tudo ficou meio nebuloso.
Iniciamos a caminhada, do portão da pousada,
às oito da manhã. 1,5 km depois estávamos no ponto chamado de Toca do Lobo, que
marca o início da trilha e também o último ponto de água até mais ou menos a
metade do dia seguinte. Ali encontramos com um guia local acompanhando um
senhor (seu cliente), numa caminhada “apenas” até o pico do Capim Amarelo, onde
pernoitariam e de onde retornariam no dia seguinte.
Ao
contrário do que imaginávamos, o visual estava totalmente fechado, envolto em
espessa neblina. Iniciamos a íngreme subida e de pronto sentimos o impacto da
agressiva inclinação e do peso das nossas mochilas sobre os ombros. Desse ponto
inicial da trilha até o cume do Capim Amarelo, são mil metros de desnível
vertical! É uma senhora subida!
Uma
hora e meia depois as costas ardiam torturadas pelo peso da mochila e a cabeça
começou a pensar apreensivamente no que podia haver de excesso na bagagem
pensada e repensada tantas vezes... O Felipe tinha a mesma sensação de
desconforto (dor), e comentamos entre nós que acostumar-se a esse incômodo era
semelhante a adaptar-se ao selim da bicicleta. A receita, em ambos os casos, é
bem simples: tudo depende de (muitas) “horas”. Horas de selim, ou, no nosso
caso, horas de mochila no lombo. É uma simples questão de transcender a dor
suportando-a, até o ponto em que não se lembre mais disso... Mas até lá...
Por
volta das dez e meia da manhã, meio que magicamente, a névoa começou a se
dissipar e aquele céu azul maravilhoso se estendeu sobre nós, como um manto
sagrado a colorir o mundo. É incrível a sensação de bem estar que poder
enxergar longe nos traz!
A
certa altura da trilha avistamos uma barraca montada no meio do mato, poucos
metros fora do caminho. Chegamos mais perto e, por coincidência, naquele
momento um rapaz saiu da tal barraca, meio com cara de sono, meio se ajeitando.
Trocamos um “olá” e ele perguntou, meio desorientado: “que horas são aí?”. “Onze
e quinze” – respondi. Batemos um rápido papo, no qual ele nos disse que também
iria fazer a travessia completa, que havia iniciado no dia anterior desde a
cidade de Passa Quatro e tal... Pouco depois uma jovem sai da barraca, com cara
curiosa, e ele nos diz, ou subentendemos, não lembro bem, que ela era sua
namorada. Perguntamos até onde eles iriam naquele dia e eles disseram que não
sabiam bem. Que iriam arrumar as coisas e caminhar até onde desse.
Despedimo-nos e seguimos nosso caminho.
Comentamos
entre nós que estar tão tranquilo numa hora daquelas, no meio de uma travessia
com tantas condicionantes importantes, beirava a irresponsabilidade. Mas, por
algum motivo, senti uma pontinha de admiração pela leveza (ou irresponsabilidade?)
do rapaz. Desde que dê certo, acho que ter essa atitude desapegada de
parâmetros e controles é um luxo. Resta saber onde termina a saudável
despreocupação e começa a perigosa zona do “sem noção”.
Em alguns trechos havia cordas pra auxiliar a "escalaminhada".
Por
volta das 13 horas chegamos ao topo do Pico do Capim Amarelo – o primeiro cume
da travessia. A vista lá de cima é realmente espetacular. O dia estava perfeito
– claro, sem uma nuvem no céu. O horizonte ao longe mesclava-se com o céu num dégradé belo e comovente. O único “problema”
era o “preço” – estávamos bem cansados. Foi uma subida bem puxada.
Vista do topo do Pìco do Capim Amarelo (2500 m de altitude).
Comemoramos
a “conquista” fazendo um rápido lanche (pão com queijo, algumas castanhas,
água), apreciamos a vista e resolvemos esperar a chegada do guia que
encontramos no começo pensando que ele poderia nos dar mais algumas orientações
a respeito do caminho. Demorou mais de uma hora, mas às 14 horas e pouco chegou
o casal de jovens “despreocupados”, e logo em seguida o guia e seu cliente.
Conversamos
um pouco mais com o garoto e sua namorada, e eles nos contaram que estavam com
pouca água (num ponto em que deveriam estar com pelo menos uns dois litros cada
um), mas que estava “tudo bem”... Observando sua mochila, percebi que era totalmente
remendada, costurada em vários pontos, bem desgastada, com vários adesivos de
países da América do Sul fixados, aquele aspecto meio vira-mundo, enfim.
Puxando conversa, ele nos disse que estava viajando há três anos, de carona, e
que de vez em quando fazia “umas aventuras” assim...
O casal que encontramos no primeiro dia.
O
guia, a nosso pedido, fez então um “giro do horizonte” conosco, mostrando-nos,
muito ao longe, o caminho que percorreríamos nos próximos dois dias, até o Pico
dos Três Estados. Entretanto, seu tom foi mais ameaçador do que encorajador – “ihhh!!...
muita gente se perde aí... vocês estão com GPS?... não adianta de nada esse
negócio... tem um monte de tracklog
errado na internet... em tal ponto tomem muito cuidado, se pegarem a direção
errada vocês vão se dar muito mal... [mais tarde ficaríamos sabendo que esse
camarada foi visto retirando placas de sinalização da trilha, e era do tipo que
pensava mesquinhamente que facilitar o caminho de montanhistas independentes
prejudicaria o seu “emprego” como guia].
O discurso do cara, ainda que tenhamos percebido sua intenção claramente alarmista, trouxe uma energia de preocupação ao nosso “passeio”. Pegamos nossas mochilas e retornamos à trilha, agora descendo e já imaginando chegar ao local do primeiro pernoite.
Às
quatro e meia, mais ou menos, alcançamos uma área relativamente ampla, aberta e
plana, que identificamos como sendo o que se chama de “Maracanãzinho” – um local
indicado para montar acampamento naquele ponto. Escolhemos nosso cantinho,
montamos a barraca e esperamos a noite cair. Cerca de meia hora depois chegou o
jovem casal e se instalou próximo da nossa barraca.
Primeiro pernoite.
Mais
tarde fizemos nosso jantar, batemos um papo sobre o desenvolvimento do dia,
sobre a perspectiva para o dia seguinte e tratamos de deitar cedo. Eu estava um
tanto preocupado com a questão da orientação/navegação na trilha. Me dei conta,
meio subitamente, que estávamos sozinhos numa cadeia de montanha enorme, e que
não tínhamos se quer uma carta topográfica da região. Como podia ter “esquecido”
a carta? O fato é que havíamos estudado bastante a descrição do caminho, tínhamos
várias indicações de que direção seguir, que cuidados tomar, o que encontrar
pela frente, e tínhamos até um GPS com o tracklog
da trilha, mas naquele momento tudo aquilo me pareceu frágil e pouco confiável.
Senti falta de ter uma boa carta topográfica em mãos [visto em retrospecto, não
creio que a carta teria sido assim de vital importância, afinal de contas, a
não ser pelo fator psicológico].
Pôr do sol no primeiro dia.
O
segundo dia amanheceu tão belo quanto o anterior, animando-nos à (árdua) tarefa
que tínhamos pela frente. Às sete e quarenta estávamos com o pé na trilha. O
casal aventureiro havia saído dez minutos antes.
Pouco
depois alcançamos nossos companheiros de trilha e vimos que a menina, apesar de
estar muito bem humorada e disposta, sentia a dificuldade de caminhar num
terreno bastante acidentado e cheio de sobe e desce, estando nitidamente bem
lenta. O garoto nos contou que eles tinham só mais um gole d’água, mas também
parecia bem animado e tranquilo. Perguntamos até onde eles pretendiam ir
naquele dia, e ele disse que eles pretendiam ir caminhando, e na hora que
cansassem, parariam. Foi a última vez que os vimos na trilha. Dali pra frente não
os encontramos mais. Espero que tenham chegado bem.
Nosso
plano para o dia era chegar à Pedra da Mina (o segundo pico da travessia) e
prosseguir um pouco mais adiante, dependendo das nossas condições físicas e
psicológicas. Por volta das onze da manhã alcançamos o primeiro ponto de água
da travessia, abastecemo-nos, mas não totalmente, pois calculamos que
chegaríamos ao segundo e último ponto de coleta de água no meio da tarde
daquele mesmo dia.
Ao
meio dia e meia, após uma longa e bela ascensão de quase duas horas, chegamos
ao topo do pico da Pedra da Mina, a 2800m de altitude, quarto ponto mais alto
do Brasil. Corroborando os relatos, a vista lá de cima é absolutamente
arrebatadora. 360 graus de horizonte, montanhas e mundo a perder de vista.
Ficamos encantados com o momento e com o lugar. Comemoramos com um farto
lanche, água quase à vontade, fotos e até uma revigorante soneca.
Uma pena não termos pernoitado lá... Teria sido, com certeza, espetacular. O problema é que estávamos no meio de um “jogo de xadrez” com as circunstâncias. Sabíamos que o belo dia que estávamos tendo não duraria mais duas jornadas. Se cedêssemos à tentação e ficássemos para passar a noite, desperdiçaríamos valiosas horas de caminhada naquela tarde, o que certamente impactaria na etapa do dia seguinte... Usamos o bom senso e às duas horas pusemo-nos de volta à trilha.
Chegando ao topo da Pedra da Mina.
Vista do topo da Pedra da Mina (2800m de altitude).
Ao longe (no centro, no horizonte), o Pico Agulhas Negras.
(Crédito da foto: Felipe Amante)
Uma pena não termos pernoitado lá... Teria sido, com certeza, espetacular. O problema é que estávamos no meio de um “jogo de xadrez” com as circunstâncias. Sabíamos que o belo dia que estávamos tendo não duraria mais duas jornadas. Se cedêssemos à tentação e ficássemos para passar a noite, desperdiçaríamos valiosas horas de caminhada naquela tarde, o que certamente impactaria na etapa do dia seguinte... Usamos o bom senso e às duas horas pusemo-nos de volta à trilha.
O
trecho a seguir era um dos mais temidos da travessia – o vale do Ruah. Um vale
dominado por enormes pés de capim elefante, que, além de serem potencialmente
cortantes, são muito altos, da altura de uma pessoa adulta, o que dificulta
bastante a orientação nessa área.
O vale do Ruah, visto da encosta da Pedra da Mina (descendo).
Fomos
tocando devagarzinho, tentando manter o foco nas montanhas à frente e no rio
que teríamos que margear. Naquele ponto era praticamente impossível seguir a
trilha. O jeito ali era seguir a direção geral. Meio que tateando aqui e ali,
chegamos ao tal rio que deveria nos balizar e no qual deveríamos nos abastecer
de água completamente novamente – o que significava 4,5 litros pra cada um, ou
seja, mochilas bem pesadas de novo.
(Crédito da foto: Felipe Amante)
O capim elefante do vale do Ruah.
Não
sei bem como, mas achamos o ponto em que tínhamos que sair do vale e recomeçar
a subir pra linha de crista. A partir dali, já bastante cansados, começamos a
pegar vegetação mais fechada e trilha bem estreita, dificultando bastante a
progressão. Entre muito sobe e desce, muito bambuzinho travando a mochila,
muita pedra, buraco e algumas dúvidas em certos momentos, a tarde foi passando
rapidamente, e quando vimos já era quase cinco horas. E estávamos no alto de
uma linha de crista a perder de vista, de cujos pontos mais altos podíamos ver
o Pico dos Três Estados, ao longe, desafiando-nos a chegar.
Às
cinco e dez passamos por um pequeno (muito pequeno) espaço aberto ao lado da
trilha e pensamos que, numa emergência, até poderia servir para armarmos a
barraca. Pensando melhor, não estávamos exatamente numa emergência, mas o sol
iria se por muito em breve, não havia qualquer sinal de que acharíamos lugar
mais adequado à frente, já estávamos beirando a exaustão física... Então
paramos e conversamos rapidamente sobre o que cada um achava de ficar ali
mesmo. O problema era que o espaço era bem apertado para acomodar a nossa
barraca. Ainda fui um pouco mais à frente (sem a mochila) pra dar uma olhada,
mas não havia outra opção... Admitimos que tinha que ser ali mesmo.
Montamos
a barraca muito precariamente e tentamos gerenciar o pequeno perrengue da
melhor forma possível. Pra complicar, ainda estávamos expostos a uma face da
montanha por onde o vento subia com toda a força e ânimo. Estávamos tão
cansados que mal tivemos energia pra fazer o jantar. Fora da barraca era
impossível acender o fogareiro (devido ao vento), portanto o jeito foi
improvisar do lado de dentro mesmo. Comemos alguma coisa meio forçadamente,
jogamos as coisas pro lado, nos enfiamos nos sacos de dormir e deixamos o vento
sacudir a barraca e o mundo girar em volta.
Não
foi uma noite tranquila. Mesmo contra-atacando a fúria do vento com músicas
suaves nos fones de ouvido do aparelhinho tocador de música, pareceu que
passamos a noite num barco sacolejando ao sabor das ondas (ok, não tão ruim
assim...).
Às
cinco e meia pusemo-nos de pé. E como o vento não desse trégua, resolvemos
adiar o café da manhã pra mais tarde, recolher nossas coisas e sair logo dali.
O vento era claro sinal de mudança do tempo (conforme previsto). Além disso, o
ambiente em volta não tinha a mesma paz dos dias anteriores. Nuvens passavam
rapidamente pelo céu, uma névoa estranha subia pelas encostas e havia uma
energia de inquietação em volta.
Nascer do sol no terceiro dia - espetáculo!
Fizemos
uns cálculos aproximados e previmos que, se não tivéssemos surpresas, conseguiríamos
chegar ao final da travessia ao fim do dia com certa folga.
Linha de crista que vínhamos seguindo em direção ao Pico dos Três Estados.
"Mar de nuvens" no vale abaixo: visual bonito e preocupante.
Por
volta das onze horas atingimos o terceiro e último pico da travessia – o Pìco
dos Três Estados. Em comparação à Pedra da Mina não era tão espetacular, mas
ainda assim era bem bonito. O vento continuava castigando. Fizemos rápida
parada pra comer alguma coisa e descansar um pouco e prosseguimos.
Imaginamos
que dali pra frente seria basicamente só descer, mas nos enganamos. Ainda havia
uma elevação pela frente, o Alto dos Ivos. A trilha pareceu ficar ainda mais
acidentada, mais íngreme e mais fechada, obrigando-nos a nos esforçar a cada
passo. Em certo ponto, numa encosta bem inclinada, num trecho de trilha bem
estreita, demos de cara com mato fechado por todos os lados. Parecia que não
havia saída! Não era possível! Será que havíamos errado em algum lugar ali pra
trás? Mas onde? Voltei uns quatro passos e dei uma olhada em volta, e percebi
um pequeno vestígio de caminho seguindo diretamente morro acima, totalmente
vertical, num paredão de alguns metros. Uma pequena “escalaminhada” nos
confirmou que era mesmo por ali o caminho. Na verdade a trilha é cheia de
pontos dessas pequenas “escalaminhadas”, em que é preciso adotar um misto de
caminhar com escalar a fim de transpor o obstáculo. Carece ter certa
desenvoltura com terrenos mais difíceis.
À
uma da tarde atingimos, com muito custo, o cume do Alto dos Ivos, última grande
elevação da travessia. Dali até o final, segundo os relatos que lêramos,
levaríamos mais umas 3 a 4 horas. O Felipe conseguiu sinal de celular e ligou
para o nosso resgate, seu Antonio – um camarada que trabalha com isso na região -, avisando
onde estávamos e dando uma previsão de chegada.
(Crédito da foto: Felipe Amante)
No topo do Pico do Alto dos Ivos.
No topo do Pico do Alto dos Ivos.
Apesar
de teoricamente estarmos na reta final, o fato é que olhando pra frente a
sensação era de que não chegaríamos nunca, pois só o que se via era uma enorme
linha de crista descendo o vale, coberta de mata fechada por todos os lados.
Estávamos naquele ponto em que nos víamos quase exaustos e ainda faltava muito
chão pela frente.
Fomos
tocando e tocando e a certa altura a trilha tomou aspectos mais amigáveis –inclinação
mais suave, um pouco mais desimpedida, com uma mata simpática em volta. Já
estávamos no meio da tarde e o tempo parecia que havia estabilizado um pouco,
dando sinais de que talvez não choveria.
Depois
de muito andar demos de cara com um pequeno córrego d’água, onde havia uma
mangueira que canalizava um pouco o filete. Pelo que lêramos, aquele ponto
marcava praticamente o final da trilha. Dali até a estrada seria apenas mais
uma hora de caminhada. Fartamo-nos de água (que até ali estava meio restrita),
descansamos um pouco, recolocamos nossas mochilas e retornamos à trilha para a
etapa final.
Poucos
metros depois havia um resto de estrada no meio do mato. O caminho seguia para
os dois lados, mas havia três fitinhas vermelhas reluzentes para a direita. Sem
pensar muito, seguimos a indicação das fitas e infletimos para a direita. Logo
nos primeiros metros desse novo caminho estranhei o mato fechado, sem os sinais
de trilha batida que vínhamos seguindo até então. Mas as fitas na bifurcação ali
atrás não deixavam dúvidas, portanto seguimos em frente. Fomos caminhando, mas
algo me dizia que havia alguma coisa errada. Estava claro que aquele caminho
não estava sendo usado há algum tempo. Saquei o GPS e chequei o tracklog... Mais dúvidas. Conversamos
entre nós, mas a indicação das tais fitas quase piscava na nossa frente. Depois
de três dias seguindo aquele tipo de balizamento não ia ser agora que estaria
errado, não é?
Minhas
dúvidas ganharam força quando a tal estradinha começou a subir, e, além disso,
não víamos qualquer sinal de civilização. “Não é possível!!! Só pode estar
errado!” – pensei. Propus ao Felipe retornarmos até as malditas fitas,
distantes já quase 40 minutos de onde nos encontrávamos, pra checar o outro
lado da bifurcação e tirar a dúvida. O problema era se fosse mesmo por ali o
caminho... A essa altura do campeonato ficar andando pra cima e pra baixo pra
tirar dúvidas não é lá muito divertido. Voltamos.
Cheguei
primeiro à tal bifurcação e de cara me dei conta que o caminho certo era para o
outro lado. A trilha estava nítida para a esquerda, ao passo que para a
direita, onde havia as fitas, estava praticamente fechada [mais tarde ficaríamos
sabendo que as tais fitas que nos induziram ao erro estavam balizando o caminho de uma corrida/desafio
que estava sendo realizada na região, e que conduziam a um
hotel na direção oposta ao final da trilha que estávamos fazendo].
Sítio do Pierre: depois de três dias, de volta ao "aconchego" da civilização.
Seguimos
então na direção “lógica” e pouco depois chegávamos ao Sítio do Pierre, que
marca efetivamente o final da trilha. Ainda levamos mais meia hora até
encontrar nosso resgate, às cinco e dez da tarde, encostado ao lado de uma
porteira, com sua Kombi branca, nos aguardando. Chegamos.
No final das contas foi mesmo uma bela travessia, com todos os ingredientes e sabores de uma boa aventura - pesquisa, preparação, dúvidas, incertezas, esforço físico, um tanto de desconforto, empolgação, deslumbramento, admiração, aprendizado, superação... Teve de tudo um pouco. Não sei se é o trekking mais duro e mais bonito do Brasil, mas que é bem duro e bem bonito, isso é, com certeza.
No final das contas foi mesmo uma bela travessia, com todos os ingredientes e sabores de uma boa aventura - pesquisa, preparação, dúvidas, incertezas, esforço físico, um tanto de desconforto, empolgação, deslumbramento, admiração, aprendizado, superação... Teve de tudo um pouco. Não sei se é o trekking mais duro e mais bonito do Brasil, mas que é bem duro e bem bonito, isso é, com certeza.
Pensando
em retrospecto, alguns dias depois de terminado, me dei conta que, de certa
forma, essa travessia é uma boa metáfora da própria vida. Às vezes até
enxergamos ao longe onde queremos chegar, mas ainda assim é preciso percorrer o
caminho até lá. E invariavelmente esse caminho é tortuoso, cheio de pequenos desafios,
pedras, dúvidas, subidas e descidas íngremes, mas uma hora chega.
Muitas vezes parece que não está levando a lugar nenhum, que não está adiantando de nada, mas, se persistirmos, chegaremos onde queremos. E, de certa forma, até podemos ter a carta topográfica (quem sabe, nossos muitos livros e manuais, quem sabe a própria bíblia...) e até mesmo o tracklog num GPS (quem sabe nossas carreiras profissionais, nossos “roteiros” de vida socialmente aceitos), mas o que decide mesmo são os pequenos sinais no caminho, as fitinhas amarradas nos galhos das árvores, a trilha batida sob os pés... Nossa velha e boa intuição.
** Meu muito obrigado ao Felipe, pela parceria valente, pela amizade, pela paciência, pelo companheirismo.
** A propósito do tempo: no domingo, conforme o previsto, amanheceu com aquela chuvinha fina e tudo fechado... Não seria mesmo interessante estar lá em cima naquelas condições.
** Estava pensando que as fotos dessa viagem infelizmente não representam a real dimensão do que vimos e vivemos naquelas montanhas. Em particular o tamanho, a distância, a proporção de escala entre o olhar daquele que vê e o horizonte ao longe... Mas é o que temos... Fico pensando ainda que o ponto de vista de quem vê essas imagens sem ter estado lá, no contexto do momento, é completamente diferente do olhar de quem viveu a situação. Talvez a arte da fotografia seja conseguir passar um pouco dessa impressão a esse olhar externo à vivência. Nesse sentido estou só "engatinhando".
** Outro dia alguém comentou comigo que seria interessante eu adotar um estilo mais sucinto nesses meus relatos. Na verdade, acho que a pessoa quis dizer que textos desse tamanho e nesse nível de detalhe "ninguém mais lê..." "Estamos em outros tempos...". Ora, ora, ora! E pra quem escrevo? Acho que a graça dessa plataforma (chamada estranhamente de "blog") é justamente permitir essa liberdade, convidar a ir um pouco além dos dois minutos de atenção que as pessoas se acostumaram a prestar aos assuntos de "hoje em dia". Se não for lido por ninguém (o que, aliás, acho bastante provável), sem problemas. Está aí pra quem tiver interesse e paciência. Pessoalmente acho que as palavras tem um poder de transmitir ideias e até mesmo vivências que muitas vezes as imagens não tem (apesar do ditado popular que diz que "uma imagem vale mais do que mil palavras"). Muitas vezes as palavras contam histórias que imagem nenhuma no mundo poderia contar. Acho que essa é a graça de escrever (e de ler, consequentemente). Mas é lógico também que as críticas são sempre muito bem vindas, e pode ser mesmo que eu esteja sendo meio chato com essa história de querer contar história. Seja como for.
** Rápidas considerações sobre alguns equipamentos utilizados:
** Bonus images:
Muitas vezes parece que não está levando a lugar nenhum, que não está adiantando de nada, mas, se persistirmos, chegaremos onde queremos. E, de certa forma, até podemos ter a carta topográfica (quem sabe, nossos muitos livros e manuais, quem sabe a própria bíblia...) e até mesmo o tracklog num GPS (quem sabe nossas carreiras profissionais, nossos “roteiros” de vida socialmente aceitos), mas o que decide mesmo são os pequenos sinais no caminho, as fitinhas amarradas nos galhos das árvores, a trilha batida sob os pés... Nossa velha e boa intuição.
** Meu muito obrigado ao Felipe, pela parceria valente, pela amizade, pela paciência, pelo companheirismo.
** A propósito do tempo: no domingo, conforme o previsto, amanheceu com aquela chuvinha fina e tudo fechado... Não seria mesmo interessante estar lá em cima naquelas condições.
** Estava pensando que as fotos dessa viagem infelizmente não representam a real dimensão do que vimos e vivemos naquelas montanhas. Em particular o tamanho, a distância, a proporção de escala entre o olhar daquele que vê e o horizonte ao longe... Mas é o que temos... Fico pensando ainda que o ponto de vista de quem vê essas imagens sem ter estado lá, no contexto do momento, é completamente diferente do olhar de quem viveu a situação. Talvez a arte da fotografia seja conseguir passar um pouco dessa impressão a esse olhar externo à vivência. Nesse sentido estou só "engatinhando".
** Outro dia alguém comentou comigo que seria interessante eu adotar um estilo mais sucinto nesses meus relatos. Na verdade, acho que a pessoa quis dizer que textos desse tamanho e nesse nível de detalhe "ninguém mais lê..." "Estamos em outros tempos...". Ora, ora, ora! E pra quem escrevo? Acho que a graça dessa plataforma (chamada estranhamente de "blog") é justamente permitir essa liberdade, convidar a ir um pouco além dos dois minutos de atenção que as pessoas se acostumaram a prestar aos assuntos de "hoje em dia". Se não for lido por ninguém (o que, aliás, acho bastante provável), sem problemas. Está aí pra quem tiver interesse e paciência. Pessoalmente acho que as palavras tem um poder de transmitir ideias e até mesmo vivências que muitas vezes as imagens não tem (apesar do ditado popular que diz que "uma imagem vale mais do que mil palavras"). Muitas vezes as palavras contam histórias que imagem nenhuma no mundo poderia contar. Acho que essa é a graça de escrever (e de ler, consequentemente). Mas é lógico também que as críticas são sempre muito bem vindas, e pode ser mesmo que eu esteja sendo meio chato com essa história de querer contar história. Seja como for.
** Rápidas considerações sobre alguns equipamentos utilizados:
Bota de caminhada: SALOMON LAB
Excelente em todos os aspectos. Chego a ter carinho por essa bota, de tão boa que ela é (risos)... E já está comigo há vários anos.
Bastões de apoio (sem marca)
O uso desses walk sticks num trekking como esse é praticamente indispensável. No caso, esses estão comigo (em usos bem esporádicos) há mais de vinte anos (são os mesmos que usei no trekking do Himalaia, no Nepal, em 1996), e continuam "cumprindo missão".
Mochila: DEUTER 60+15 AircontactPro
Uma boa mochila num trekking longo é tão essencial quanto a bota e os bastões. Essa Deuter é como a bota Salomon: praticamente perfeita (para esse tipo de atividade, logicamente). A mochila em si (sem bagagem) é um pouco pesada, mas é o preço que se paga pelo conforto que se tem. Também já está na "equipe" há alguns anos.
** Bonus images:
Estradinha de terra que leva ao Refúgio Serra Fina:
Gratidão.
Força Sempre.