Investida nas terras do "Acaba Mundo"
Três dias de pedal nos arredores da Estrada Real, em parceria com Alexandre Manzan
(mais um capítulo da série: "ai meu deus!")
Na tarde do
domingo, 27 de março, chegava a Diamantina-MG, atendendo a um convite do
Alexandre Manzan, para uma viagem de bike de cerca de seis dias pela região.
“Deve ser uma
viagem meio travada. Venha com a cabeça aberta” - ele me alertara alguns
dias antes, via e-mail.
Diamantina é
uma das famosas cidades históricas de Minas, localizada na extremidade norte da
chamada Estrada Real, uma sequencia de estradinhas de terra que se estende dali
até Parati, no Rio, com algumas ramificações pelo caminho, e que ganhou
contornos turísticos como consequência de um projeto de resgate do valor
histórico dessa região, fortemente atrelada ao período da realeza portuguesa por
essas bandas.
Encontrei o
Manzan na pousada em que havíamos combinado e logo engrenamos uma animada
conversa sobre como seria o percurso, o que levar, qual a previsão do tempo, etc.
Em seguida fui retirar a bike do carro, a fim de monta-la e fazer os últimos ajustes
no equipamento. Quando coloquei a mão no quadro tive uma súbita sensação
estranha, como se houvesse algo errado. Alguns segundos depois percebi o
motivo: não me lembrava onde havia colocado o eixo da roda dianteira. “Ok, não
me lembro onde o coloquei, mas deve estar em algum lugar por aqui...” – pensei.
Mas não
estava. Procurei por todo canto, mas não encontrei. Pra tirar a dúvida, liguei
pra casa e perguntei à Mari se por acaso a tal peça não estava por lá, na área
de serviço, onde havia desmontado a bicicleta. Positivo! Havia esquecido o eixo
em casa! Dois problemas: achar uma peça idêntica numa cidade desconhecida num
domingo à tarde e digerir psicologicamente o erro básico de esquecer algo tão
fundamental de forma tão sem motivo.
Como estávamos
com o cronograma meio fechado pra começar a viagem no dia seguinte cedo,
começamos a pensar em alternativas para a encrenca. Saímos à cata de lojas de bicicleta
pela cidade, contando que, sendo uma cidade pequena, talvez não fosse difícil
achar o dono ou responsável morando por perto. Batemos em duas ou três lojas,
mas não conseguimos nada. Concluímos que teríamos que deixar pra retomar as
buscas na manhã seguinte, atrasando um pouco a partida.
No comecinho
da noite ainda demos uma saída pra uma corridinha, pra relaxar um pouco da
pressão do problema.
Na segunda
feira cedo fomos à loja que descobrimos ser a melhor da cidade, e onde já
havíamos visto, no dia anterior, que havia duas bicicletas que usavam o mesmo
eixo que precisava para a minha bike, que, explique-se, não era um eixo comum.
A minha bicicleta usa um eixo reforçado, mais moderno, de concepção diferente
dos eixos tradicionais, o que, nesses casos, só complica o problema de achar um
similar. A conversa na tal loja não evoluiu bem. Os caras não tinham um eixo
daqueles disponível pra venda, e não quiseram, mesmo sob todos os argumentos
que enfileiramos, negociar a peça da bicicleta que estava para venda.
Partimos então
para uma opção que surgiu no meio da conversa e telefonemas com os caras da
bicicletaria. Talvez um tal de Alexandre, que trabalhava num escritório no
centro, pudesse nos emprestar a peça da bicicleta dele... Achamos o cara no
meio do expediente de trabalho de um escritório de advocacia. Explicamos a
situação e ele se prontificou em nos ajudar. Ligou pra casa e pediu pra alguém
tirar a peça da bicicleta dele e levar até o escritório onde estávamos. Uns 30
minutos depois lá estava o eixo que precisávamos. Sem saber como agradecer,
propomos deixar uma caução ou um documento como garantia de que devolveríamos a
preciosa peça até o próximo sábado. Gentilmente ele disse que não precisava,
que tinha que ser na confiança. É assim que gostaríamos que o mundo todo fosse,
não é?
Resolvido o
desagradável problema, juntamos nosso equipamento, fizemos um último check-list,
e já quase ao meio dia demos as primeiras pedaladas pelas tortuosas e íngremes
ruelas de Diamantina, dando início à nossa “volta a capa e espada”.
A concepção da
viagem planejada pelo Manzan era seguir a rota traçada por ele no Google Earth e passada para o GPS,
buscando o máximo possível caminhos fora de estrada (single tracks). Havia, entretanto, “trechos incógnitos”, que não se
sabia se havia trilha ou se era possível pedalar. Levávamos apenas uma pequena
mochila com os itens essenciais de “vivência” durante o pedal e nos pontos de
pernoite, previstos para pequenos vilarejos onde contávamos em achar algum tipo
de hospedagem.
Nos primeiros
quilômetros já sentimos o forte calor, amplificado por um céu totalmente azul e
o terreno predominantemente de pedra em que nos encontrávamos. Assim que
entramos na primeira trilha, saindo dos domínios urbanos, com 5 km rodados, o
pneu traseiro da minha bicicleta fura. Examinando o ocorrido, vejo que não foi
apenas um furo, mas um pequeno rasgo na lateral do pneu, causado certamente por
uma das inúmeras pedras do caminho. “Shit,
man!!”. Fazendo o trabalho de troca, suando feito uma bica d’água, me
perguntava se meus anjos da guarda estariam atentos aos fatos... “Acordem aí,
gente!!”.
O trecho que
se seguiu rendeu bem, com boas descidas, ambiente bucólico e paisagem
auspiciosa ao redor. Passamos pelo vilarejo de Biribiri, que outrora fora uma
fábrica de confecção de tecidos, e prosseguimos na rota prevista, o Manzan de
olho no GPS, e eu de olho nele.
Logo chegamos
a uma trilha identificada por algumas placas como “Caminho dos Escravos”,
seguindo um enorme vale no meio do nada. O caminho era impedalável, com enormes
pedras, grandes erosões e passagens muito estreitas. O jeito era ora empurrar,
ora carregar a bike. Assim fomos indo, curtindo a paisagem, o momento, a
sensação de estar em outro mundo, mas progredindo bem mais lentamente do que
gostaríamos.
Chegamos ao
vilarejo de Mendanha por volta das quatro e meia da tarde, um tanto cansados,
com muito calor, mas com tudo em ordem. A ideia inicial era tocar até uma vila
chamada São Gonçalo do Rio das Pedras nesse dia, perfazendo um total de 85 km
(o que seria, pelas nossas contas, o dia mais longo da viagem). Mas como
perdemos a manhã por conta de achar o tal eixo da bicicleta, nosso cronograma
começou a ficar comprometido. Tínhamos andado apenas cerca de 40 km, e era
inviável pensar em fazer mais 45 naquelas condições, de modos que concordamos
que seria melhor encerrar o dia por ali mesmo, já que no próximo trecho não
havia previsão de ter opção de hospedagem até a vila de destino.
Mendanha é uma
dessas pequenas vilas que parecem paradas no tempo. Cortada pelo manso Rio
Jequitinhonha, não resistimos ao apelo, e antes de qualquer outra coisa, demos
um belo mergulho em suas águas aparentemente limpas e de temperatura
incrivelmente agradável. Depois saímos a perguntar por casas de moradores que
pudessem nos receber para o pernoite, já que não havia pousadas. Pergunta dali,
pergunta daqui, recebemos a dica de uma fazenda um pouco distante do centrinho
da vila que provavelmente poderia nos abrigar. Fomos pra lá e fomos muito bem
recebidos pelo Ito, o cara responsável pelo local. Muito entusiasmado, nos
mostrou seus projetos, puxou conversa, e nos ofereceu um quarto de uma casa
muito bem ajeitada que funcionava como uma espécie de pousada rural. Em volta,
silêncio absoluto. Ao longe, as montanhas contra o horizonte. Para o dia estava
de bom tamanho.
Mais tarde tivemos que dar um pulo no posto de combustível do
vilarejo, junto à estrada principal, único local em que havia algo que se
pudesse comer a título de jantar. Não foi o melhor dos mundos, mas quebrou nosso galho.
Começamos o
segundo dia com um desjejum à base de pão de queijo e suco no mesmo posto do
dia anterior, e em seguida nos lançamos na rota. Os primeiros km foram de uma
íngreme subida na estrada de asfalto. Em seguida uma descida vertiginosa por
uma estradinha de terra muito acidentada e visivelmente pouco utilizada.
O
resto da manhã se desenvolveu lentamente ora através de trilhas apertadas,
íngremes e pedregosas, ora através de pastos e morros sem trilha alguma. Não
encontramos absolutamente nada nem ninguém. Passamos por lugares muito bonitos
e incríveis. Em uma ponte havia uma placa indicando: “Ponte do Acaba Mundo”!
Sugestivo nome para um lugar no meio do nada. Felizmente o mundo não estava
acabando, já minhas energias...
Por volta das
duas da tarde chegamos a um local que no mapa estava indicado como “Itapeva”, e
sobre o qual imaginávamos que bem poderia ser uma pequena vila, mas havia
apenas uma casa de um sítio. Atravessamos um pequeno morro e um pasto até a
pequena casa pra pedir um pouco de água, e fomos gentilmente recebidos pela
Dona Tereza, uma senhora de idade aparentemente sozinha, que nos ofereceu água
fresca e ainda umas bolachinhas feitas por ela mesma. Quando perguntamos se
havia uma subida no caminho à frente, ela deu uma risadinha meio macabra e
devolveu: “uma subida?!... não... tem é muita subida, moço”. Senti que estávamos
mesmo no meio do nada, quando nem nós conseguimos explicar, nem ela entender de
onde estávamos vindo e pra onde estávamos indo. Parecia que pra qualquer lado
não havia era nada...
Seguimos nossa
marcha, um pouco confortados pela indicação do GPS, que acusava 20 km para o vilarejo
de São Gonçalo, que era nossa primeira opção de pernoite no dia. “20 km não
podem ser tão duros assim...” – pensei (erroneamente).
Subida,
subida, subida! Dez metros pedalando, outros dez empurrando, passa cerca, abre
colchete, fecha colchete, levanta, abaixa, desvia, vira, desvira, passa rio,
pula pedra, desvia do galho, arranha no galho e fomos indo, mais lenta e
arduamente do que poderíamos supor.
Por volta das
cinco horas da tarde finalmente emergimos numa estrada de terra, junto a uma
bela ponte de concreto, a apenas 3 km do vilarejo de São Gonçalo. Eu estava literalmente
exausto, naquele estado em que as coisas já estão meio sem graça. Tomei um gel
de carboidrato, o último gole de água (quente) da garrafa e uma cápsula de cafeína, que estava perdida nos meus bolsos secretos à espera de
um momento como aquele. E ainda me joguei na beira da estrada, a contemplar, absorto, o belo céu que tínhamos sobre nós, com uma
longa nuvem de “carneirinhos” geometricamente enfileirados e aquela placidez
típica dos fins de tarde num lugar ermo.
O trecho final
foi de uma longa e infinita subida, em que já não entendia se estava empurrando
a bike porque estava muito íngreme ou porque eu estava muito fraco. Talvez
pelas duas razões.
Cheguei ao
vilarejo alguns (muitos) minutos depois do Manzan, que me esperava à porta de um
mercadinho com uma coca gelada e a “indecente proposta” de seguir mais 7 km até
a vila seguinte. Pra mim não dava... Achamos uma pousadinha e tiramos nosso
time de campo.
Descobrimos, por
uma dessas sortes típicas desses caminhos imprevisíveis, uma senhora que nos
preparou o melhor jantar de todos os tempos de nossas vidas. Uma deliciosa
comida caseira, com gosto, cheiro e aspecto de comida bem feita, fartamente
servida numa salinha absolutamente modesta em que só havia nós dois como “clientes”.
Um verdadeiro banquete!
Repostas as
energias e restabelecida a normalidade das funções, comuniquei ao Manzan que
não prosseguiria com ele na viagem. Decisão difícil que vinha amadurecendo ao
longo do dia e que ficou clara ao final daquela etapa. O nível de exigência
física e técnica estava acima do meu preparo e, por que não dizer, disposição.
O ritmo da tocada estava fora do meu ritmo interno... É lógico que é lamentável
abortar uma viagem assim, em plena execução, mas penso que precisamos ser
honestos com a gente mesmo, e ter coragem de mudar o rumo quando as coisas
perdem aquele necessário encanto que devem ter. Encarei como mais um exercício de
desapego.
No dia
seguinte acordamos cedo, reorganizamos algumas poucas coisas que estávamos
levando em conjunto, e cada um seguiu numa direção. O Manzan prosseguiu com o
que havia planejado. Eu retornei a Diamantina pela estrada de terra – 35 km de
muitas subidas e a velha sensação de pedalar sozinho por esse mundo grande que
tem aí.
Subindo a
serra que havia no caminho da cidade, sob um sol escaldante e nenhum movimento ao
redor, me vi de volta ao meu centro – respiração ritmada, o corpo trabalhando
bem, a cabeça em paz com o caminho, o barulhinho das rodas na estradinha de
terra, paisagens bonitas a perder de vista...
Ainda que não
tenha feito o que fora previsto, creio ter cumprido a finalidade principal dessas
empreitadas – dar uma saída, percorrer caminhos novos, enfrentar as
dificuldades naturais do caminho com dignidade, admirar o mundo em que vivemos,
conversar com gente simples, contemplar o céu num final de tarde especialmente
bonito, partilhar as expectativas, perrengues e frustrações da vivência com um
amigo, e muito mais.
*** *** ***
Meu muito obrigado
ao Manzan pelo convite, pela acolhida e pela paciência.
Meu muito obrigado também ao Alexandre Magno, que, ao me emprestar o eixo da bicicleta sem me conhecer e sem pedir nada em troca, expressou a pura e salutar satisfação de simplesmente ajudar.
E minha gratidão
à Vida, por ter me permitido percorrer mais esses caminhos nesse tempo em que
estou por aqui.
Igreja em Diamantina
Uma das ruas de Diamantina
P.S.
1) O Manzan seguiu com o roteiro que planejou e finalizou a viagem na sexta-feira daquela semana.
2) De volta a Diamantina, devolvi o eixo que pegara emprestado com o Alexandre Magno e deixei, junto, uma garrafa de vinho e um cartão de agradecimento. Alguns dias depois ele me mandou um e-mail agradecendo a atenção. Como diz aquele ditado: "gentileza gera gentileza".
3) Aproveitei essa viagem pra fazer um teste de estrada com o Troller. "Já que" estava nas terras das Minas Gerais e que encurtei a viagem de bicicleta, resolvi dar uma esticada até Brasília, para uma visita surpresa aos meus pais, e de lá retornei a Curitiba.
No total, fiz cinco pernadas entre 500 e 850 km nessa pequena volta - totalizando expressivos 3.493 km rodados, e pude constatar, com satisfação, que o carro com fama de bruto também vai bastante bem no asfalto liso. É lógico que não anda como um esportivo, mas estive pensando que é mais ou menos como andar com uma Mountain Bike no asfalto: não foi feito pra isso, não é o seu habitat, mas cumpre bem a missão ainda assim.
Há algo nessas máquinas que transcende puros arranjos mecânicos. Sentir o ronronar suave e grave do 3.0 turbodiesel ali na frente, empurrando com facilidade o carrinho por essas estradas sem fim, traz uma segurança e uma satisfação que vão muito além de meros resultados numéricos de desempenho ou impressões externas. O bicho realmente é bruto, mas também sabe ser multifuncional.
"Life is what happens to you while you are busy making other plans."
(Beautiful Boy, John Lennon)