Ao som de dois
violinos numa encosta distante
El Cruce 2016 – Corrida de montanha de 100 km em
três dias,
por trilhas nas montanhas da Cordilheira dos Andes
(mais um capítulo da série "ou vai ou racha")
Há muito,
muito tempo, numa galáxia muito distante, ouvi falar de uma corrida épica que
cruzava os Andes da Argentina para o Chile através de trilhas nas montanhas. Na
sexta-feira, dia 12 de fevereiro de 2016, por volta das oito da manhã, descia
de uma Van no meio de uma região montanhosa próximo de San Martin de Los Andes,
simpática cidade argentina situada na aprazível região dos lagos, pra dar
início à tal empreitada.
O “El Cruce”
está na sua 15ª edição e se consolidou, nesse tempo, como uma corrida
de montanha muito difícil e muito bonita, que nos propõe a percorrer
aproximadamente 100 km em três etapas, predominantemente através de single tracks através das montanhas,
unindo Argentina e Chile no percurso. A organização da prova provê toda a
logística de acampamento e alimentação entre essas etapas, mas no percurso os
corredores devem ser autossuficientes em suas necessidades.
Nesse ano
havia cerca de 2700 inscritos, de 33 diferentes países, e a prova foi dividida
em três largadas, em dias distintos: na quarta-feira já havia largado a
categoria “solo avançado”, na quinta foi a vez das “duplas”, e na sexta dos
“solo amadores”, em que me incluía. Nessa última categoria havia cerca de um
mil inscritos, e pra não tumultuar a largada e o percurso, as saídas foram
feitas em levas de 120 corredores a cada 10 minutos. Nesse primeiro dia fui
incluído na sétima leva, acho que por ordem alfabética.
Por volta das
sete da manhã havia sido a apresentação para o check-in numa praça à beira do Lago Lácar, em San Martin, ocasião
em que foi verificado o material obrigatório que cada corredor deveria levar e
em que foram organizados os grupos de partida. Pouco depois fomos embarcando em
Vans e sendo transportados numa rápida viagem de 20 minutos até o local da
largada propriamente dito, já no alto das montanhas que circundam a pequena
cidade.
Sentada ao meu
lado no veículo estava uma menina de seus vinte e poucos anos com uma cara
quase de choro. Em determinado momento ela puxou conversa:
- Es tu
primero Cruce?
- Si.
- Estás
nervioso?
- No... Y
usted?
- Si.
Entrenaste bien?
- Si... Y
usted?
- No.
- Oh, no te
preocupes. Va a ser tranquilo...
Disse a ela,
fazendo uso da clássica mentirinha confortadora (e achando graça da
situação).
Quando
descemos da Van havia um pórtico de largada alguns metros adiante, com um
tapete de cronometragem embaixo, um frio e um vento cortantes, e uns dois ou
três staffs indicando o caminho: “Por
ali!”. E estava dada a largada!
Pórtico de largada no primeiro dia
Comecei a correr
logo, sem muita cerimônia, pra tentar aquecer um pouco. Essa primeira etapa era
prevista pra ser de 40 km, com um desnível positivo de 1512m. Pouco depois da
largada começaram os acentuados declives e aclives, amenizados por uma paisagem
belíssima de montanhas altas ao redor, com vegetação densa e meio seca, e
aquele silêncio típico só quebrado pelo tagarelar constante dos corredores que,
a despeito da largada fluida, se aglomeravam na estreita trilha. Como larguei
nas últimas levas, peguei muito trânsito pela frente.
Como material
obrigatório levava na pequena mochila: 2 litros de água, um agasalho tipo
“fleece”, uma jaqueta corta-vento, uma manta de emergência (dessas
aluminizadas), um “vivisac” (que é uma espécie de saco de dormir impermeável),
acessórios para o frio (gorro, luvas, lenço), além das comidinhas para o
trecho. Por determinação da organização da prova é proibido levar qualquer
produto em sua embalagem original. Tudo tem que ser levado em sacos plásticos
tipo “zip”. Os géis de carboidrato tem que ser diluídos em água e levados em
pequenas garrafas. Seguindo o meu “plano estratégico de alimentação e
hidratação” (montado por mim mesmo), levava quatro sachês de gel diluídos em
duas garrafinhas, algumas balas de carboidrato em gel, uma barrinha de fruta
desidratada, uma barra de proteína e uns dois saquinhos de castanhas e amêndoas
salgadas.
Muita poeira levantada... O que resultou em certa dificuldade pra respirar à noite.
Os primeiros
quilômetros transcorreram na alegria e na leveza do maravilhoso estado de
descanso em que me encontrava. Depois de dois meses de treinos intensos (e
extensos), os últimos dez dias haviam sido de treininhos leves e regenerativos,
o que já estava me deixando com saudades de correr com um pouco mais de
liberdade.
Em determinada
altura alcançamos as margens do imenso e lindo Lago Lácar, e seguimos
margeando-o e desfrutando de seu belo visual por muitos quilômetros.
Por volta do
km 35 alcançamos o único posto de abastecimento da etapa – uma barraca com
água, Gatorade, uns biscoitinhos, uns salgadinhos, bananas, essas coisas. Percebi
que estava ligeiramente cansado, mas, de acordo com os dados do meu GPS, faltavam
só 5 km pro final. Mas, ouvindo a conversa do staff da barraca com outros corredores, entendi que faltavam ainda
10 km pra chegada, e não 5, como pensava. Tudo bem, cinco, dez, que diferença
faz?... Tomei um gole de Gatorade e retornei à aquela metódica contemplação
dinâmica da natureza ao redor.
Pouco mais à
frente o negócio começou a ficar meio tumultuado, por conta da estranha
passagem da fronteira com o Chile. Pra manter a tradição, o percurso foi até a
fronteira entre os dois países e nos fez cruzar para o lado chileno. Com isso
tivemos que fazer todo o processo de aduana tanto de saída da Argentina, quanto
de entrada no Chile e vice-versa (ou seja, fomos ao Chile e retornamos à
Argentina em poucas centenas de metros). Passaporte, carimbos, controles de
bagagem, tudo como numa fronteira normal. Com isso devemos ter gasto, ao todo,
uns 40 minutos parados nas diversas filas desse processo. E parar de correr,
nessa altura do campeonato, e ter que voltar a correr depois, definitivamente
não é o mais indicado nessas situações, mas era o que tinha que ser feito.
Cerca de 3 km mais nos levaram à linha de chegada da etapa, às margens do Rio
Hua-Hum, 6 horas e 15 minutos após o início. O Sr Garmin indicava que havia
percorrido 45 km.
Chegada do primeiro dia
Tempo em movimento do primeiro dia
Mais uma vez
havia Vans para nos levar dali até o acampamento, que não ficava distante. No
rápido trajeto, dentro do veículo, só o que se ouvia era uma sinfonia de
gemidos, sinal evidente de que a brincadeira não fora fácil, ainda que tenha
sido apenas o começo.
Chegando ao
acampamento, por volta das quatro da tarde, o tempo, que já vinha instável nas
últimas horas, desestabilizou-se de vez em uma chuva fina. Peguei minha mochila
(que havia sido transportada pela organização), localizei minha barraca, deixei
as coisas lá e, sem pensar muito, me dirigi ao rio que havia ali perto para o
devido banho. O frio do ambiente estava menos intenso que o da água, sendo
assim, a imersão transformou-se numa sessão forçada (e gratuita) de
crioterapia. Aguentei uns quinze minutos que pareceram uma eternidade, mas
certamente valeu muito a pena.
De volta ao
acampamento, vesti-me adequadamente e fui almoçar. No centro da grande área em
que estavam montadas as centenas de barracas azuis dos corredores, havia uma
enorme tenda de circo, dentro da qual funcionava o refeitório. O cardápio
constituía-se de um setor de massas (macarrão com dois tipos de molho), outro
(mais concorrido) de churrasco, no mais autêntico estilo “gaúcho bagual”, com
uma animada turma de assadores distribuindo fartos pedaços de carne (de gado e
de frango), além de acompanhamentos de salada verde e tomate, pães e frutas. No
acampamento do segundo dia o cardápio seria idêntico.
Barracas azuis dos corredores e a tenda refeitório |
As mochilas que eram transportadas pela organização da prova |
Churrasco gaudério |
Caminhão de apoio da organização |
Cumprido o
rito básico de banho e alimentação, parti para o necessário descanso. As
barracas são duplas, assim, esperava que a qualquer momento meu até então
desconhecido parceiro de barraca chegasse, mas, no final das contas, não apareceu
ninguém, e concluí que por algum acaso havia sido contemplado com o luxo de
poder ficar sozinho num espaço que, a bem da verdade, era muito melhor mesmo
para apenas um habitante.
Mais tarde
ainda retornei à barraca refeitório para o jantar (cujo menu era o mesmo do
almoço, igualmente animado e bem servido). Depois disso, sem rodeios,
recolhi-me ao sossego do meu habitáculo. A chuva prosseguiu firme por boa parte
da noite, compondo um agradável fundo sonoro com o tamborilar dos pingos no
tecido da barraca, mas ao mesmo tempo deixando um fio de preocupação em relação
ao dia seguinte. Dormi um sono profundo e ao mesmo tempo superficial, sem dores
musculares, sem frio e sem divagações.
O segundo dia
amanheceu nublado, mas sem chuva. Tomei um rápido desjejum – chá, leite ou
café, pão, cereais, geleias, manteiga, frutas – e fiz os últimos ajustes pra
partida. Nesse dia montaram as largadas na ordem do tempo que cada um fez no
dia anterior, ou seja, os mais rápidos largariam primeiro, pra evitar
congestionamentos na trilha. Fui colocado na segunda leva (de 120 corredores a
cada 10 minutos).
Os primeiros
quilômetros foram costeando o Lago Nonthué, ora pela margem, ora por dentro do
próprio lago. No começo com uma altimetria um pouco mais amigável, fomos seguindo
por entre florestas nativas, algumas estradinhas bem legais e morros cheios de
estilo. A etapa tinha a previsão de ser de 30 km, com 1200 m de desnível
positivo, e era tida como a mais fácil das três que percorreríamos.
Mais ou menos
no km 22 encontramos o (único) posto de abastecimento da etapa. Água, Gatorade,
bolachinhas, frutas e “bora correr”. Nesse dia, em função da largada coordenada
com o tempo de cada um no primeiro dia, o fluxo de corredores na trilha foi bem
mais disperso. Ainda passávamos uns aos outros de vez em quando, mas bem menos
do que no dia anterior.
O caminho era
bem marcado sempre por fitas sinalizadoras brancas e vermelhas amarradas nas
árvores ou pedras do caminho, mas seguia também, de forma geral, a trilha mais
evidente. Além disso, na maior parte do tempo era comum avistar o corredor à
frente. Poucas vezes havia dúvidas sobre a direção a seguir. Houve apenas uma
bifurcação, nesse segundo dia, em que um pequeno grupo de uns quatro ou cinco
corredores passou batido numa sinalização e seguiu na direção errada. Pouco
depois percebemos o equívoco, retornamos e achamos o caminho correto sem
problemas.
O último terço
dessa segunda etapa voltou a subir as montanhas, enveredando por uma região
muito bonita e muito isolada, de onde se via longe em todas as direções. Já
próximo do final, por volta do km 25, começo a sentir uma incômoda dor na
altura da virilha direita. Logo o leve incômodo se transformou numa dor
decidida que começou a dificultar a tração da perna para as passadas. “Dorzinha
querida, quebre o meu galho e dê uma aliviada!” – vinha ansiando.
Os últimos 3
km foram de uma íngreme e aparentemente interminável subida. A temperatura
despencou e a paisagem perdeu a inocência das altitudes mais baixas e assumiu
aquele aspecto rústico de alta montanha. Negociando com a dor e tentando me
abstrair do tempo, fui chegando à linha de chegada da segunda etapa, 4 horas e
10 minutos depois da largada. O GPS indicava a distância de 30 km percorridos.
Chegada do segundo dia |
Peguei minha
mochila que havia sido levada pela organização e me dirigi à barraca. Parei ali
alguns instantes pra deixar as coisas e dar uma reorganizada e logo saí pra ir
deixar o GPS pra carregar no local destinado a isso. Nesse curto trajeto de não
mais do que 50 metros minha perna travou totalmente na altura da virilha, aonde
vinha sentindo as dores. Estava efetivamente mancando e morrendo de dor. Deixei
o relógio pra carregar, voltei à barraca, tomei um relaxante muscular e apaguei
por meia hora, na esperança de dar um “resset” na máquina. É incrível, mas
funcionou! Acordei renovado, mas ao tirar o tênis descubro que as duas meias da
marca suíça Compresport haviam rasgado no calcanhar – possivelmente devido a um
ajuste incorreto na hora de calça-las -, ocasionando um pequeno esfolado por trás
do calcanhar. Nada que um bandaid e
um esparadrapo não resolvam. Arrumei
minhas coisas e fui procurar um lugar pra tomar um banho. Aparentemente a dor sumira,
mas a preocupação se estabelecera.
O banho desse
segundo dia foi menos eficiente. Havia apenas um pequeno córrego nas
imediações, de forma que só foi possível tomar um “banho de gato”. Voltei ao
acampamento e parti para o almoço, e como havia chegado bem mais cedo do que no
dia anterior, ainda foi possível tirar a tarde inteira para um muito bem vindo
descanso na barraca, curtindo uma musiquinha nos fones de ouvido e deixando o
mundo rodar.
Vida de acampamento: coisas secando e bate papo |
Acampamento do segundo dia |
À noite, no
jantar, a turma estava animada. Rolou uma música caribenha em alto volume nas
caixas de som e a galera partiu pra festa. Danças, performances, cambalhotas,
risadas, quase um baile de carnaval! A certa altura o diretor da prova
interrompeu pra dar os avisos sobre o dia seguinte e o pessoal voltou a cair na
real. O cara avisou pra gente se preparar pra guerra! A terceira etapa era
nitidamente a mais dura, pela altimetria bem agressiva e pelo ambiente de alta
montanha (de difícil acesso). Disse ainda que havia previsão de temperaturas
negativas nos pontos mais altos por onde passaríamos. Então tá...
Essa noite
realmente não foi tão confortável quanto a anterior. Em determinada altura
acordei com frio, mas já estava na intensidade máxima dos meus agasalhos e saco
de dormir. Ajustei então minha programação mental pra se adequar à demanda do
momento e voltei a dormir sem problemas.
A largada no
terceiro dia foi marcada pras sete e meia da manhã – bem mais cedo do que no
segundo dia, em que fora às nove. Seguindo a orientação dos organizadores,
equipei-me com uma segunda pele, a camisa da prova e uma jaqueta de fleece por cima de tudo. Ainda assim,
pouco antes da largada, estava com muito frio.
Acabamos
largando por volta das oito horas, segundo nos informaram, porque havia muito
nevoeiro no alto da montanha, para onde iríamos. Novamente a ordem de largada
seguiu a sequência do tempo de cada um no dia anterior. Novamente estava na
segunda leva.
Os primeiros 4
km foram de uma subida muito íngreme e longa. Saímos de aproximadamente 1000 m
de altitude para 1820 m. Não havia como correr. E quase também não dava pra
andar... Em certos trechos era necessário recorrer a técnicas de “escalaminhada”.
De tão lento, percebo que o GPS entra no modo “auto pause” automaticamente,
mesmo quando estou em movimento. Constato que por um longo período o cronômetro
não avança, ou seja, ele entende que estou parado. Na fase de treinamento
experimentei usa-lo com essa função desligada, mas percebi que então ele
marcava as distâncias a mais do que realmente fazia. Estranho esse
comportamento num equipamento feito pra esse ambiente e pra esse tipo de
atividade, mas fazer o que? Aproveitei pra me desligar do aparelhinho e me
concentrar nos passos que tinha que dar.
Nesse começo
voltei a sentir dor, agora na articulação da perna direita, por trás do joelho.
Que beleza! Pelo menos estamos revezando os pontos de pane! Chegando ao topo da
montanha que estávamos subindo, cerca de uma hora depois, a visão era
maravilhosa, embora o céu estivesse cinzento, com aspecto de chuva, e a
temperatura estivesse quase congelante. Percebo que consigo desenvolver bem na
subida, quer dizer, nessa situação, a dor era menos intensa, mas as descidas me
eram muito sofridas. O problema era que cerca de 80% do percurso dessa etapa
era uma longa e interminável descida. Penso intensamente em soluções possíveis.
Na pior das hipóteses, pensei, faço os 30 km da etapa caminhando, mas mesmo assim
sabia que não seria fácil.
Tomo mais um
comprimido relaxante muscular, meio por intuição, e vou tocando o barco. Agora
começamos a descida pela longa encosta da montanha. Vou administrando a dor e a
cabeça, tentando pensar que, afinal de contas, estou fazendo o que gosto, num
ambiente espetacular, e havia treinado muito pra aguentar essa parada... Não ia
ceder facilmente!
Não tenho
ideia como nem por que, mas o fato é que dali a alguns minutos a dor
desapareceu totalmente, e eu voltei a me sentir bem como de costume. Só ficou
aquela pontinha de preocupação – “vai que a droga dessa dor volta...”. Aos
poucos fui restabelecendo a confiança e voltando a encaixar um bom ritmo de
prova.
A paisagem
realmente correspondia à expectativa e se mostrava esplêndida. Montanhas a
perder de vista, um lindo e enorme lago muito longe e aquele aspecto de se
sentir num outro mundo...
Quem corre
sabe que depois de certo tempo entra-se numa espécie de hipnose, em que tudo
fica meio amortecido em volta e a percepção se restringe ao caminho à frente, à
percepção da respiração, ao equilíbrio das passadas... Estava profundamente
imerso nesse estado, quando, numa encosta pedregosa de um lindo trecho, começo
a ouvir um som diferente e melodioso. Avançando um pouco mais percebo que se trata
de uma bela música. Mais um pouco e consigo avistar dois rapazes tocando
violino, absolutamente no meio do nada. Apenas aquele solo de violino, o vento,
um longo caminho já percorrido e faltando muito ainda pra chegada. Confesso que
foram momentos de profunda emoção. Que bela sacada terem bolado aquele presente!
Tirou-nos, por alguns instantes, da dureza do momento diretamente para a
suavidade de um mundo idílico.
Prosseguimos
sempre descendo, ora atravessando belos trechos de mata com flores amarelas e
árvores gigantescas, que pareciam fazer parte de um conto de fadas, ora de
volta à encosta da enorme crista que vínhamos seguindo.
A certa altura
entrei numa sequência muito divertida de uma descida muito íngreme. Era uma single track bem técnica e bem exigente.
Foram vários quilômetros e minutos descendo forte. Em determinado ponto, correndo
bem rápido (considerando o contexto), levantando muita poeira, passadas bem fortes e novamente aquela “hipnose boa”, aconteceu o que temia em cada
movimento: a trajetória do pé esquerdo foi subitamente interrompida por um objeto
rígido invisível em meio à poeira e à rápida troca de passos – provavelmente uma pedra ou uma
raiz. De imediato me senti no ar, rebatendo repentinamente sobre o terreno à
frente. “Senhores passageiros, lamento informar que estamos caindo! Apertem os cintos para um pouso
forçado!!!” Aterrissei de peito no chão. Ouvi um “cruchhhhh” na altura do ombro
direito e levantei-me quase tão rápido quanto caí. Ainda com gosto de terra na
boca, olho para o lado e quase vejo a sorte me sorrindo sorrateiramente, como a
dizer: “Quebrei teu galho dessa vez! Vê se se cuida melhor!”. Porque quedas
assim são como uma roleta russa, podem dar em nada (como felizmente foi o caso)
ou podem significar o fim da brincadeira.
Prossegui com
um pouco mais de cautela, na medida em que isso era possível naquele estado de
fadiga muscular e entusiasmo com a situação. Mais alguns minutos (ou horas...)
se passaram e percebi nitidamente a mudança da vegetação e da geografia ao
redor. Estávamos saindo da região de montanha e voltando à “normalidade” das
terras mais baixas.
Um pouco mais
e enxergo o posto de reabastecimento da etapa, ao lado de uma estrada, com
muita gente ao redor. Chego ao local e vejo que há corredores gemendo pelos
cantos, alguns encostados nas árvores, outros largados no chão. Paro por um
instante pra tomar um gole de Gatorade e comer alguma coisa e quase vejo ao meu
lado o fantasma da exaustão física, como a me dizer: “E aí, não quer descansar
um pouquinho?”. Armadilha!!! Parar nessas horas é arriscar-se a perder a sutil
homeostase do movimento. Sinto que é melhor voltar a correr logo. O pessoal da
barraca incentiva-nos euforicamente: “Vamos!! Vamos!! Faltam só 8 km!!” Então
volto a me ligar no meu GPS, que a essa altura marca vinte km percorridos (fora o trecho não marcado no
início). Ok, só oito!!
Volto à trilha
e vou curtindo o jogo mental que se desenrola e a paisagem, que continua bela.
Mais alguns quilômetros e chegamos a um parque muito bonito, com árvores muito
grandes e o lago Lácar a aparecer por entre elas como uma visão fantástica,
irreal. Começam a aparecer pessoas “normais”, não corredores. Parece que
estamos chegando.
Mais algumas
centenas de metros e já avisto o contorno da cidade de San Martin. Mais um
pouco e começo a ouvir o agito da chegada. Incrível.
Entro na praia
do lago Lácar, ao fim da qual está montado o pórtico de chegada. Faltam uns
duzentos metros. Entro no funil de chegada ao som estridente e emblemático de “We
will rock you”!! Eu, que costumo ser muito frio nessas horas (e, tanto quanto possível,
em todas as outras...), quase me emociono. Cheguei.
Tempo em movimento no terceiro dia |
Algumas considerações:
Logística de transporte de ida e volta a San Martin de Los Andes:
A viagem foi quase uma procissão... Três pernadas de avião - Curitiba a São Paulo, São Paulo a Buenos Aires e de lá a Bariloche - mais uma de ônibus - de Bariloche a San Martin (e tudo de novo, na volta). Ao todo, contando vôos, esperas e tempo de estrada, foram cerca de 18 horas pra ir e 24 pra voltar. Uma jornada e tanto.
Equipamento:
Bastões de apoio: a maioria dos corredores usou aqueles bastões de apoio retráteis. Desde a fase de treinamento eu optei por não usa-los, por julgar que o custo-benefício não compensava, tendo em vista que nem sempre ele é útil. De forma geral ele auxilia bastante nas subidas, e eventualmente nas descidas. Mas acho que ele nos tira um pouco a percepção de correr com o equilíbrio do próprio corpo, e tende a nos acomodar um pouco à mecânica do seu uso, que é um pouco diferente da mecânica da corrida propriamente dita. Entretanto reconheço que é um equipamento bastante útil, apesar de não ter chegado a me arrepender de não os ter usado. Como tudo, tem vantagens e desvantagens.
Tênis: usei os tênis Salomon S-LAB XT6, que, segundo pesquisei, são dos melhores pra esse tipo de corrida. Cumpriram de forma exemplar sua árdua tarefa. Excelentes, em todos os aspectos. Mas na fase de treinamento adquiri e usei temporariamente um modelo da The North Face chamado Ultracardiac. Dura decepção: apesar de excelente conforto, começou a descolar a sola com três semanas de uso e perdeu minha confiança. Reprovado. Nesse domínio, a Salomon está muito à frente.
Conceito:
Recentemente li um editorial de uma tradicional revista brasileira sobre corrida em que o editor tecia uma dura crítica a essas "pseudo-corridas" em montanha, argumentando (entre outros aspectos a respeito dos quais talvez até tenha alguma razão) que não são corridas "de verdade", que são feitas só para os participantes tirarem fotos e se vangloriarem depois, etc... Ora, ora, ora, senhor editor!! Que que é isso!?... Isso me faz lembrar a rivalidadezinha que existe entre mountain bikers e ciclistas de estrada, estes achando que ciclismo "de verdade" é o de estrada, e que o MTB é uma variante menos nobre do esporte... Nada mais equivocado e preconceituoso!! Pra resumir a história, o fato é que cada esporte, e cada modalidade de cada esporte, tem sua riqueza e sua beleza. Querer compara-las é descabido, de tão diferentes que elas acabam sendo. E é mais ou menos isso que ocorre entre a corrida de rua e a corrida de montanha. São quase esportes diferentes. Um não é melhor do que o outro. Cada um tem suas virtudes e seus problemas. Mas adivinha qual é mais divertido!!
Contra ponto:
Apesar de toda a beleza da corrida, do seu glamour e da bela história e lembranças que ficam, é lógico que existem contra pontos... O custo financeiro da brincadeira, o estilo talvez excessivamente espetaculoso da organização, o custo (difícil de avaliar) em termos de desgaste físico tanto no pré-prova quanto (principalmente) na prova em si. Mas é aquela história: motivos pra não fazer existem aos montes. Se for pra fazer conta, seja financeira ou subjetiva, o melhor é mesmo não sair de casa. Essas coisas tem um valor muito relativo. Depende, no final das contas, dos olhos de quem vê.
Gracias a la vida, que me ha dado tanto...