Flertando com o horizonte
160 km de caiaque oceânico entre São Francisco
do Sul e Florianópolis,
em seis dias
(mais um capítulo da série: “um dia ainda vou
fazer algo assim...”)
Sentimentos
Extasiar-se com a natureza é uma
sensação inebriante (e rara). O problema, no caso específico dessa viagem, é
que a faixa desse êxtase era muito estreita, e a fronteira com a zona seguinte
muito tênue e oscilante. E essa faixa seguinte poderia ser chamada simplesmente
de medo (que também parecia ser uma faixa incerta de fronteira igualmente pouco
definida com a próxima, aquela em que as coisas saem de controle e viram caos).
Junte-se a isso a sensação igualmente fascinante
de estar numa situação de alta demanda de esforço físico e uma boa dose de
equilíbrio e jeito e tem-se a moldura dos sentimentos que embalaram esses dias
ao balanço do mar, no litoral catarinense, a bordo dos nossos queridos e
pequenos barcos.
Concepção
Essa viagem nasceu de um convite do
Alexandre Manzan, amigo de Brasília com quem já fiz outras expedições, há já
algum tempo. A ideia estava “na gaveta” até meados de setembro, quando ele me
enviou uma mensagem confirmando a vinda para o mês seguinte, e reforçando o
convite.
Apesar da nossa grande vontade de
implementar a ideia, o fato é que havia muitas variáveis no caminho. A
principal delas dizia respeito à questão de que o Manzan estava sem caiaque
oceânico, e estava negociando a compra de um com um argentino que ele havia
conhecido um tempo atrás, e que havia se prontificado a trazer o barco de
Buenos Aires até a região de Santa Catarina.
Esse argentino, que viria a conhecer,
chama-se Gustavo Damien. Ele fabrica caiaques – da marca M.G. - e acessórios
náuticos na capital portenha há cerca de quinze anos. Aproveitando a oportunidade,
o Manzan combinou a compra de dois caiaques, sendo o outro para o seu irmão. E,
por sua vez, aproveitando essas circunstâncias, o argentino propôs nos
acompanhar na remada, utilizando esse segundo caiaque... Baita quebra-cabeça
que foi se encaixando.
Restava encontrar o tal argentino no
local e dia combinados, em Bombinhas, pequena e famosa cidade do litoral
catarinense.
A ideia
O planejamento da viagem foi do
Manzan. A ideia inicial era partir do centro de Joinville e em seis pernadas
alcançar uma das praias da capital catarinense. Pretendíamos remar em torno de
30 a 35 km por dia e pernoitar em pousadas ou hotéis, já que esse trecho do
litoral tem várias pequenas cidades, que oferecem variadas opções de
hospedagem.
Ao longo das nossas conversas,
achamos melhor mudar o local da partida para a cidade portuária de São
Francisco do Sul, ao lado da Baía da Babitonga, a 60 km de Joinville, devido a
dúvidas quanto à navegabilidade do rio e influências da maré nesse curso
d’água.
Preâmbulo
Assim, o Manzan veio de Brasília pra
Curitiba de carro, e daqui partimos no meu,
levando o meu caiaque, no dia 19 de Outubro, em direção a Bombinhas, na
expectativa de encontrar o argentino com quem ele vinha conversando por e-mail
havia alguns dias.
À noite finalmente encontramos o
Gustavo com os dois caiaques, conforme o combinado, numa pousada da cidade.
Sentamos então pra conversar, repassar o planejamento e acertar os últimos
detalhes.
Ele estava com a esposa, Mariana, e
a filha de seis anos de idade, Irena, e nos informou que elas pretendiam nos
acompanhar em cada ponto que planejávamos pernoitar. Até então tínhamos
imaginado que seríamos somente nós três nos barcos, sem acompanhamento externo.
A conversa foi mais ou menos
longa... O Gustavo é um camarada de cinquenta e dois anos de idade, jeito
rústico, mãos grossas, que falava no típico espanhol portenho, sem a mínima
preocupação de facilitar a comunicação. Contou-nos depois que rema desde que
era criança, há uns quarenta anos (ou seja, é a “praia” dele). Acompanhou a
exposição do planejamento da viagem sem fazer grandes observações, e sem
demonstrar qualquer preocupação com o que estávamos prestes a iniciar. Na
verdade demonstrou sim uma certa preocupação: no meio da conversa perguntou
casualmente se eu estava acostumado a remar por longas horas, por dias seguidos...
Disse que não, mas que não se preocupasse (na verdade, havia feito minha “lição
de casa”. Restava saber se havia sido suficiente).
Em Bombinhas ficamos hospedados na
casa de um amigo do Manzan, o Gilliard Pinheiro, um dos melhores corredores de
montanha e (em tempos passados) um dos melhores maratonistas do Brasil. Tivemos
assunto pra animadas conversas sobre suas inúmeras histórias, treinamentos,
métodos, etc. Ele estava se preparando pra correr uma corrida de 100 km em
trilha/ morro/ praia que ocorreria naquela região dali a alguns dias [diga-se
de passagem: ele venceu a tal corrida, a “100 K Indomit Bombinhas”, com o incrível tempo de 10 h e 02 min]. Muito bacana conhece-lo pessoalmente.
Primeiro dia
No dia 20, uma terça-feira, saímos
cedo de Bombinhas em direção a São Francisco do Sul, distante cerca de 150 km,
levando os caiaques nos carros.
Por volta de uma hora da tarde, após
o sempre um pouco longo ritual de arrumações de partida, estávamos com os
barcos na água, bem ao lado do centro histórico de São Francisco do Sul,
simpática cidade de forte tradição marítima.
Os primeiros quilômetros foram
debaixo de muito calor, singrando as águas calmas da Baía da Babitonga. Fomos
contornando o porto, a periferia da cidade, e logo estávamos fora dos vestígios
da civilização, imersos num ambiente belo e diferente.
Com uns quinze quilômetros remados
chegamos próximos ao Forte Marechal Luz, onde atualmente funciona uma Colônia
de Férias do Exército, e que marca o encontro da Baía com o mar. Contornamos a
ponta de pedra e pudemos sentir os primeiros impactos de remar em águas
expostas à força do mar aberto – ondulações intimidadoras, desencontradas,
compondo um quadro não muito confortável, digamos assim.
Mas passamos rápido e sem problemas,
e em mais alguns minutos aportávamos na tranquila praia da Enseada, onde a
Mariana e a Irena já nos esperavam, animadas. Comemoramos o sucesso do primeiro
dia com algumas fotos e tratamos de juntar a tralha e nos alojar num hotel
próximo, pra curtir o merecido descanso.
Eu tinha duas preocupações que me
inquietavam, como marinheiro de primeira viagem. A primeira era com relação à
minha capacidade física para dar conta da brincadeira... Remar exige
resistência, força, jeito e flexibilidade muscular que não são as mais usadas
em outras atividades com as quais sou mais acostumado. A outra era com a minha
adaptação ao ambiente marítimo, tanto no sentido mais biológico, que envolve
manter a sensação de equilíbrio num meio intensa e constantemente em movimento,
como no sentido de adaptação técnica às dificuldades e adversidades inerentes
ao contexto – ondas, mar grande, arrebentações, etc.
No teste inicial do primeiro dia
havia passado sem grandes problemas. Restava saber como o corpo se adaptaria ao
esforço continuado.
Distância percorrida: 23,5 km
Tempo de remada: 3h 07min
Velocidade média: 7,4 km/h
Segundo dia
Saímos calmamente da praia da
Enseada, que fica numa área abrigada do mar aberto, e logo em seguida, ao
contornar a ponta que havia ali, demos de cara com o mau humor de um mar
grande, com ondulações altas, bastante desafiadoras. O Gustavo passa por mim e recomenda
remar forte, de frente pras ondulações, pra poder passa-las com mais segurança.
Procuro seguir seus conselhos... O sufoco durou alguns minutos, até passarmos a
ponta de pedra, que sempre deixa o mar em volta mais agitado.
Seguiu-se então um introspectivo
trecho de praia deserta à nossa direita, navegando águas totalmente expostas ao
mar aberto e à sensação de que estávamos num mundo exatamente igual ao que
sempre foi. O céu estava cinzento, o tempo estava estranho...
Após algumas horas de intenso
trabalho nos remos, faltando ainda um bom trecho para o destino do dia, vejo o
Gustavo conversando com o Manzan em tom preocupado. O motivo era nuvens de
tempestade à frente. Nosso amigo argentino ficou tenso e disse que devíamos
forçar o ritmo pra tentar chegar antes de sermos pegos pela tormenta que se
aproximava.
A preocupação dele era com os
possíveis raios da tempestade! Segundo ele, nossos remos de carbono teriam a
característica de atrair a eletricidade dos raios (será?). Além disso,
estávamos numa região totalmente isolada e, pra piorar, de difícil saída do
mar, caso precisássemos. A poucos metros à nossa direita, as ondas quebravam
altas e violentas, fazendo-nos temer ter que enfrenta-las numa eventual
aportagem.
Aumentamos o ritmo na “casa das
máquinas” e poucos minutos depois fomos rapidamente envolvidos pela chuva que
parecia distante pouco antes. Fomos tocando os barcos, literalmente; a essa
altura, já num ritmo de “tem que chegar logo”...
Algum tempo depois avistamos as
construções do Balneário de Barra do Sul, nosso destino do dia (e nossa única
opção de local pra ficar na região). Um pouco mais e estávamos em frente à
barra do rio junto à qual pensávamos desembarcar. Acontece que a situação
estava complicada. A chuva havia parado, mas o mar estava muito grande, quase
assustador. Enormes vagas de água passavam por nós elevando-nos a quatro, cinco
metros, algumas quase nos surpreendendo numa arrebentação feroz.
O Gustavo, mais confiante,
embrenhou-se pelas ondulações e desapareceu em direção à praia. Perdemo-lo de
vista. Aproximei-me do Manzan e comentei com ele que a situação estava tensa...
Ele concordou com ar preocupado e sugeriu que fossemos chegando pra perto da
praia aos poucos. Essa é uma manobra arriscada. É preciso estar “com um olho no
peixe e outro no gato”. Cuidar pra não ser colhido por uma arrebentação de trás
e ao mesmo tempo olhar pra frente pra escolher o ponto de entrada. Chegamos ao
limite do ponto onde as ondas começavam a quebrar e eu decidi investir em
direção à praia, que estava logo ali. Quase deu... No finalzinho uma onda traiçoeira
me colheu de lado e o barco virou. Ejetei-me do cockpit e já estava de pé na areia... Fui salvo pela sorte de não
ter quebrado o remo, o leme ou qualquer outra coisa, já que tudo foi envolvido
pelo turbilhão momentâneo de caos e água pra todo lado.
Instalamo-nos num hotelzinho próximo
e, após um bem vindo descanso, gastamos o resto do dia e da noite em pesquisas
em sites de previsão do tempo e em conversas entre nós três, tentando elaborar
um prognóstico em relação às péssimas previsões do tempo para os próximos dias.
Chegamos à conclusão, baseados nas informações disponíveis, que teríamos uma
janela sem chuva de algumas horas na manhã seguinte. Assim, combinamos sair
cedo.
Distância percorrida: 32,8 km/h
Tempo de remada: 4h 21min
Velocidade média: 7,5 km/h
Terceiro dia
De madrugada acordei com o vento
açoitando as janelas do quarto e logo em seguida uma chuva furiosa caindo sobre
o telhado. De manhã cedo a chuva continuava forte e o tempo estava virado numa
tempestade, não nos deixando escolha do que fazer. Engraçados esses sites de
previsão meteorológica... Nenhum mencionara aquela quantidade de chuva, naquela
hora da manhã, para aquela região...
Levantamos mais tarde, por volta das
oito e pouco, e nos reunimos na sala de café da manhã. Tínhamos basicamente
duas opções: ou esperávamos até o dia seguinte, na esperança de que o tempo
melhorasse e pudéssemos prosseguir, ou abortávamos a pernada do dia e
prosseguíamos para o próximo destino levando os caiaques no carro... Impasse! O
Manzan não bateu o pé, mas deixou claro que preferia a espera, a fim de cumprir
todo o trajeto que havíamos previsto inicialmente. O Gustavo, no entanto, meio
que impôs que seguíssemos para o próximo ponto de carro, alegando que não havia
o que fazer por ali e que não tínhamos certeza que no dia seguinte haveria
condição favorável.
Assim, pra não criar polêmica numa
situação já um tanto delicada, cedemos à pressão da família argentina, fizemos
a proeza de carregar três caiaques oceânicos, quatro adultos, uma criança e
toda a tralha de equipamentos no pequeno Renault Sandero dos nossos hermanos e partimos rumo a Piçarras.
Ao longo do dia o tempo pareceu
melhorar um pouco, o que nos fez lamentar silenciosamente não termos tido
paciência ou determinação de esperar por lá até o dia seguinte, como havíamos
pensado.
Em Piçarras achamos um pequeno
hotel, alojamo-nos e, pra espantar o astral de marasmo do dia, no final da
tarde saí pra dar uma corridinha na praia. Envolvido pelo contexto do momento e
da situação, pus-me a pensar se tudo aquilo era mesmo real... Por alguns
momentos quase não me lembrava mais o que havia se passado no primeiro dia da
viagem... Em seguida percebi que meus pensamentos viajavam por caminhos não
exatamente voluntários, enquanto os minutos e os quilômetros passavam sob meus
tênis na areia... Pensei (ou tentei pensar) na questão da minha própria mortalidade,
na vastidão do universo, na maluquice que é o tempo cronológico... Pensei que
estamos sempre envoltos num constante vir a ser: se estou quieto demais, penso
“por que não dar uma corridinha?”, se saio pra correr logo me ponho a pensar
“quando vou parar?” Passou também pela minha cabeça a questão de quanto de pura
personalidade havia naquilo que estávamos fazendo... E o que afinal era a
personalidade, e quem estava pensando?... E por aí vai... Peças que se encaixam
mal num quebra-cabeça confuso, essa vida...
Quarto dia
De manhã cedo, sobre a mesa do café
da manhã, o jornal local estampava na capa a manchete “Sem trégua” e uma enorme
foto da cidade de Itajaí (ali próximo) debaixo d’água, referindo-se à violenta
enchente que castigava o povo daquela área havia dias.
Tratamos de agilizar nossas arrumações
e colocar os caiaques na água meio logo. O tempo parecia normal, sem cara de
chuva, e nós estávamos ávidos por retornar à viagem, refeitos pelo dia de
descanso forçado da véspera.
Saímos da praia de Piçarras e fomos
contornando os costões, procurando manter uma distância segura das
arrebentações e, ao mesmo tempo, não nos afastar muito da costa. O vento estava
vindo do sul, o que não era nada bom pra gente. Ao cruzarmos com um barco de
pescador, um camarada gritou que o vento sul estava mais forte depois da
próxima ponta que estava à nossa frente.
Após mais ou menos uma hora e meia
chegamos à grande enseada da cidade de Itajaí e resolvemos cruzar direto para a
outra ponta, distante cerca de dez quilômetros de onde nos encontrávamos. Isso
nos obrigaria a navegar mais afastados da costa, mas imaginávamos que nos
afastaria também da foz do Rio Itajaí, que deveria estar com uma vazão bem
forte, em função do elevado volume de chuvas dos últimos dias.
Ao longo dessa travessia a situação foi
ficando dramática. O vento aumentou bastante, em consequência, o mar também
cresceu, e, pra completar, a força do Rio Itajaí desaguando no mar estava
absurdamente grande. Sentimo-nos como se estivéssemos numa máquina de lavar
roupa (daquelas antigas...), com ondas batendo de todos os lados. Além disso,
havia muitos detritos na água – troncos de árvores, lixo, restos de vegetação –
e a água do mar se coloriu de um marrom espesso.
Em determinada altura me dei conta
que estava completamente na zona do medo! Em meio à luta com as condições
momentâneas, me pus a pensar: “medo de que?”... Bem, o fato era que a situação
estava desagradável, mas estávamos avançando. Também podia ocorrer da situação
piorar ainda mais, o que poderia se tornar potencialmente trágico, mas do jeito
que estava ainda era controlável. Então pensei que o medo era simplesmente o
reconhecimento da nossa fragilidade diante de uma força muito, muito maior, e
absolutamente indiferente aos nossos esforços e intenções. O curioso era que ao
mesmo tempo havia também uma sensação muito clara de enorme satisfação por
estar ali... Ambíguo, mas bem assim.
Aos poucos fomos nos livrando da
enorme força da foz do Itajaí, mas antes disso percebemos que a corrente nos
derivou enormemente para dentro do mar. Algo como meio quilômetro... Quando
percebemos, estávamos muito mais distantes da costa do que pretendíamos.
Traçamos uma rota de recuperação, colocamos força nos remos e tratamos de sair
logo dali.
Algum tempo depois avistamos ao
longe a linha de prédios de Balneário Camboriú, nosso destino naquele dia.
Fomos chegando devagarzinho, exaustos pelo intenso esforço físico e emocional
da pernada, mas com um sentimento de conquista e de superação totalmente íntimo
e verdadeiro.
Chegar a Balneário Camboriú foi um
choque. A cidade virou um emaranhado nada aconchegante de prédios, carros e
gente em excesso. Precisamos de quase duas horas pra reorganizar todo nosso
equipamento, nos desvencilhar do caótico trânsito local e conseguir chegar a um
hotel.
Distância percorrida: 35,3 km
Tempo de remada: 5h 21min
Velocidade média: 6,6 km/h
Quinto dia
O sábado finalmente amanheceu com o
céu azul e sem perspectiva de chuva (mas ainda assim não seria um dia fácil).
Saímos da praia central da cidade
remando calmamente e bem dispostos. O dia bonito ajudava a melhorar o astral da
nossa empreitada. Além de tudo a paisagem daquele trecho do litoral faz jus à
fama, e torna a remada um extraordinário passeio de contemplação da natureza em
estado bruto.
O Manzan tinha alguns amigos em
Balneário Camboriú, e em contato com eles na véspera ficou sabendo que um deles
também remava, e se dispôs a nos acompanhar no trecho do dia seguinte. Assim,
em determinado momento, o Revo, esse amigo, nos alcançou com seu caiaque e
seguiu com a gente.
Vejo o ato de remar em si com
extrema admiração. O movimento da remada me parece elegante, harmonioso, bonito.
De certa forma se assemelha a uma espécie de nado, só que não estamos
mergulhados na água. O ângulo que o remo entra na água, a força que se aplica
na puxada, a imagem mental que se faz do movimento, tudo conta pra eficiência e
para o menor desgaste possível da remada. O barulho da água sendo alisada pelos
remos ajuda a compor o clima da “dança”.
Umas duas horas depois estávamos na
Enseada de Itapema, e novamente tínhamos uma longa travessia afastados da costa
pra fazer. Cerca de 9 km em linha reta, dessa vez ainda mais distantes da terra
firme. O vento sul entrou forte e o mar ficou muito picado, com ondulações
curtas açoitando nossos barcos insistentemente, sem piedade. Fomos obrigados a
fazer muita força pra vencer a força do vento. Nesse trecho consegui encaixar
um bom ritmo de remada e curtir muito aquela sensação de êxtase que comentei no
começo. O casco batendo nas ondas, a água limpa espirrando pra todos os lados,
o vento zunindo nos ouvidos, o sol brilhando no céu azul, a sensação de
amplidão do horizonte a perder de vista, a distância da costa, tudo contribuía
pra criar a vibração de curtição do momento. Muito bacana.
Quando avistamos a praia de
Bombinhas ao longe percebemos que estávamos exaustos. Olhávamo-nos quase sem
acreditar na força daquele vento contra, a nos frear como uma mão gigante
segurando os caiaques. Fomos brigando com as ondulações, com o vento e com o
cansaço muscular e avançando pouco a pouco. Comecei a sentir um barulho e um
peso estranho nos compartimentos de carga, e me dei conta que a água das ondas
passando por cima do barco estava invadindo esses compartimentos, que deveriam
ser estanques. Se estivesse mais longe da chegada, seria necessário parar e dar
um jeito de esvazia-los. Mas como já estávamos chegando, não foi preciso.
Chegamos a Bombinhas no começo da
tarde e fomos recebidos pelo nosso amigo Gilliard, que estava ansioso à nossa
espera. Curtimos um pouco o astral de sossego de sábado à tarde da pequena e
pacata cidade e logo depois nos instalamos na casa do nosso anfitrião, para o
muito bem vindo descanso e mais conversa sobre corridas e esportes de
endurance.
Distância percorrida: 27 km
Tempo de remada: 4h 35min
Velocidade média: 5,9 km/h
Sexto dia
O domingo acordou novamente
cinzento, mas afortunadamente parecia que sem vento. Zarpamos da tranquila
praia por volta das nove e meia, com o Gilliard e a esposa incentivando-nos
para a pernada que poderia ser a final da viagem. A previsão inicial era tocar
até a cidadezinha de Governador Celso Ramos, distante cerca de 27 km pelo mar,
mas pensávamos também, dependendo das condições do dia, em esticar até o
destino final, Florianópolis, o que nos acrescentaria mais uns quinze km na
conta. De manhã cedo nenhum de nós queria arriscar um palpite para a decisão
que teríamos que tomar logo mais, mesmo porque assumir a perspectiva de remar
mais de 40 km numa tacada só é algo meio doloroso pra mente...
Assim, fomos remando como quem não
quer nada. A condição do dia estava completamente diferente dos anteriores.
Finalmente sem vento, o mar, liso, como se fosse uma enorme piscina. Uma
maravilha.
Chegamos a Governador Celso Ramos, o
destino inicialmente previsto para o dia, por volta das duas da tarde.
Desembarcamos sem problemas na praia local, encontramos com a Mariana e com a
Irena, que lá estavam a nos esperar, fizemos um rápido lanche numa barraquinha
que havia por ali e entreolhamo-nos como a nos questionar: “e agora, ficamos ou
prosseguimos?”. O problema de encarar os 15 km finais era o cansaço, mas as
condições climáticas de vento, corrente e ausência de chuva estavam tão
favoráveis que seria um contra senso desperdiça-las pela dúvida de como
estariam no dia seguinte. Assim, resolvemos prosseguir, e terminar logo a
viagem.
O trecho final transcorreu tão bem
quanto a parte da manhã. Curtimos muito o mar liso, o visual bonito e a
magnífica sensação de estar atingindo um objetivo que custara caro pra ser
conquistado.
Naquele trecho senti efetivamente o
enorme privilégio e prazer de ter podido namorar aquele imenso e hipnotizante
horizonte do mar aberto durante aqueles últimos dias. Sensações e lembranças
praticamente impossíveis de descrever, mas que ficam ecoando dentro da gente...
Fizemos a última travessia, do
continente para a Ilha de Santa Catarina (Florianópolis), avistando ao longe a
praia que seria nosso porto de chegada. Mais alguns minutos e tocamos
suavemente as areias de Jurerê Internacional, o ponto final da viagem.
Comemoramos a chegada com fotos,
cumprimentos e o mais importante, a impagável sensação de ter conseguido!
O local não poderia ser mais
emblemático. Jurerê Internacional é a praia do “Ironman Brasil” em
Florianópolis. Tinha muito boas lembranças daquele local. Por seis vezes (entre
2004 e 2012) estive ali iniciando e finalizando a
bela e desafiante jornada do triathlon de endurance mais famoso do Brasil.
Restava-nos cuidar do nosso
equipamento e de nós mesmos, buscando o devido descanso e recuperação, e
iniciar a trabalhosa logística de retorno pra casa.
Naquele
momento entendia melhor do que nunca os célebres versos de Fernando Pessoa, que
diziam: “Valeu a pena? Tudo vale a pena
se a alma não é pequena. Quem quere passar além
do Bojador tem que passar além da dor. Deus, ao mar o perigo e o abysmo deu, mas
nelle é que espelhou o céu".
Distância percorrida: 40 km
Tempo de remada: 5h 50min
Velocidade média: 7 km/h
No link abaixo um pequeno vídeo com a compilação de algumas imagens:
...Gratidão