Curitiba a Brasília,
solo
Dar uma voada de moto um pouco mais longa de vez em quando é sempre um grande prazer. E também, de certa forma, um desafio, já que não é algo que se faz todo dia.
Pilotar uma moto por várias horas numa longa estrada, ainda mais sozinho, acaba nos colocando num estado meio hipnótico de concentração extrema, de desligamento das conexões mentais habituais. Aos poucos, os pensamentos tendem a silenciar e tudo vai se tornando muito simples: cálculos de inércia, velocidade, inclinação, espaço, distância, tempo, céu, autonomia, posição.
Se abordado por esse ângulo, é quase um exercício de meditação ativa. Aliás, um excelente exercício. Entram na equação também o gerenciamento emocional do momento (possíveis ansiedades, temores, expectativas) e, é lógico, as velhas questões existenciais, que eventualmente furam o bloqueio da concentração total e se apresentam à reflexão.
Em cima de uma moto, vendo o mundo passar rapidamente num ângulo de visão de quase cento e oitenta graus, tudo fica diferente. Diferente no bom sentido. As paisagens ganham uma vibração mais viva, mais presente, mais cinematográfica, muito mais dinâmicas. Mesmo o que em condições normais é apenas normal, sobre uma moto adquire ares de interesse. Os pensamentos também se tornam mais fluidos, mais ágeis, talvez experimentando ligações incomuns entre os neurônios. Bem, dito de outra forma, esse negócio dá um certo "barato".
Mas nem tudo são flores e 'viagens mentais', logicamente. Sempre tem o trabalho duro a ser feito. Gerenciar o tráfego de outros veículos, as condições climáticas, a moto em si. E é impressionante o nível de movimento de veículos nas estradas desse país. Em todo lugar, em qualquer hora, tem gente, carro e caminhão aos montes. E todo mundo apressado, correndo pra todo lado, vivendo numa maluquice.
Uma questão sempre presente em viagens de moto é a possibilidade (ou melhor seria dizer 'certeza') de pegar chuva. A sistemática aqui é como lidar com a situação, no sentido de estar adequadamente equipado, na hora certa. O problema é que as opções de capa de chuva existentes praticamente impossibilitam que elas sejam usadas quando não está chovendo, devido ao excessivo calor que isso provoca (nesse clima tropical em que vivemos). Assim, a arte do negócio é saber a hora (e o lugar) certa(o) de se vestir para o dilúvio. Pilotar na chuva em si, estando bem equipado e preparado, não é exatamente um problema. Se não se combinar com outros complicadores (como estrada ruim e visibilidade reduzida, como à noite) pode até ser bem divertido.
E a motocicleta é muito mais do que apenas um veículo. A sensação para quem pilota é que é quase uma nave espacial. Rsrs... Um belo cavalo mecânico incansável e instigante. E por haver essa ligação muito íntima e visceral entre piloto e máquina, cria-se uma certa cumplicidade na relação, uma co-dependência vital entre um e outro, tipo "eu cuido de você e você cuida de mim". Nesse sentido, paira sempre essa preocupação de que a máquina resista bem ao esforço que dela é requerido. E é sempre uma grata satisfação ver esses equipamentos funcionando bem a pleno vapor, entregando a sua melhor performance fazendo aquilo que foram projetadas pra fazer.
Nessa viagem, a ideia era apenas dar um pulo em Brasília, pra passar uns dias com a minha mãe.
Planejei fazer cada etapa de ida e de volta em duas pernadas, deixando a definição de onde exatamente parar para o momento em que estivesse na estrada.
No primeiro dia acabei saindo de casa meio tarde, já quase às dez horas da manhã. Optei por fazer o trajeto de ida saindo pelo interior do Paraná, sentido Ponta Grossa. De lá sentido geral à cidade de Ourinhos, depois Bauru, onde definiria o local do pernoite.
Depois de Ponta Grossa peguei um longo trecho de estradas de mão simples, o que sempre dificulta um pouco as coisas, em função dos lentos caminhões que dão uma travada no fluxo. Apesar disso, a viagem até que rendeu bem. Peguei um trechinho de chuva, mas foi passageiro. Logo retornou o tempo bom. Cheguei na altura de Bauru por volta das 17:30, e como estava um lindo fim de tarde, sem sinal de chuva, e estava me sentindo bem, resolvi tocar até Ribeirão Preto, mais duzentos e poucos quilômetros à frente, ainda que com isso tivesse que pilotar um trecho à noite.
Curtir esse finalzinho de tarde na estrada, com o sol se pondo por trás do horizonte, é uma delícia. Mas é incrível como a escuridão toma conta do ambiente rapidamente, nessa latitude em que nos encontramos. Em vinte e poucos minutos tudo muda de uma clara luminosidade para o aconchego e os mistérios da negra noite.
Cheguei em Ribeirão Preto pouco antes das oito horas da noite. Achei um hotelzinho e me recolhi ao descanso.
O segundo dia de viagem amanheceu, afortunadamente, com o céu tão limpo e azul quanto no dia anterior. Às oito da manhã estava levantando voo em direção ao espaço sideral. Rsrs...
Pilotar nessas estradas de São Paulo é um espetáculo à parte. O Brasil deveria aprender com São Paulo como se faz estradas, sempre com ótimo pavimento, sinalização impecável e na maioria das vezes com múltiplas faixas de rolamento. É lógico que a geografia ajuda, com aquelas colinas suavemente onduladas estendendo-se para além do horizonte em todas as direções. Não é uma região tipicamente turística, não obstante é de uma beleza singular e altamente envolvente.
De lá segui sentido Uberaba, Uberlândia, Catalão, Cristalina e logo em seguida o destino final, Brasília. Todo esse trajeto até Cristalina é de ótimas estradas, praticamente cem por cento duplicadas. O trecho entre Uberlândia e Cristalina é particularmente fantástico. Sem interrupções, quase sem cidades (à exceção de Catalão), com pouco movimento, e com poucas curvas. Um convite pra aumentar o giro do motor e esquecer do mundo. Quase um processo de catarse! Rsrs...
Cheguei em Brasília (mais precisamente na cidade satélite de Águas Claras) no final da tarde, um tanto cansado, mas muito satisfeito por encontrar minha querida mãe e poder ficar com ela por alguns dias.
No retorno, no primeiro dia, fiz o caminho exatamente inverso. No meio da tarde estava em Ribeirão Preto, possível local de pernoite naquele trecho, mas resolvi tocar um pouco mais, até Pirassununga, onde cheguei por volta das 17:30, sob um céu cinzento e carregado de nuvens. Pensei um pouco e decidi seguir até a cidade de Santa Bárbara d'Oeste, cem quilômetros à frente. Mas aí fui pego pela chuva que vinha se anunciando, que acabou se combinando com aquele lusco-fusco do cair da noite, o que acabou proporcionando alguns momentos de um pouco mais de tensão, mas tudo sob controle (ou não... Rsrs). Logo cheguei a Santa Bárbara, achei um hotelzinho e tirei meu time de campo.
No segundo dia segui em direção a Sorocaba, depois Piedade, de onde desci pra Juquiá, na Rodovia Régis Bitencourt, por uma serrinha bem travada que tem ali, cento e poucos quilômetros bem lentos e enfadonhos. A partir dali a chuva me acompanhou pelos duzentos e poucos quilômetros finais até em casa, confirmando o prognóstico característico dessa região.
Como se diz por aí, viajar é bom, mas voltar pra casa é muito melhor. Mas logicamente este prazer só pode ser experimentado sob o contraste do esforço de se lançar pra fora da rotina de vez em quando. E assim é a vida. Normalmente as melhores recompensar estão inevitavelmente atreladas aos maiores esforços.
A Tiger se comportou de forma incrivelmente fantástica e irrepreensível na viagem. Motor forte, envolvente, com um ronco agradável, ciclística impecável, eletrônica de sobra, componentes de qualidade, a motinha é um espetáculo.
De vez em quando a gente vê por aí esses conceitos (alguns até muito interessantes) de que vivemos nos iludindo com itens de consumo, de que "o prazer está mais na conquista (ou na compra) do que no uso", etc. Mas devo dizer que não é bem assim. Na verdade, não é nada assim. O que acontece é que, como sabemos, o bom discurso defende qualquer ideia, se adapta a qualquer viés, vende qualquer coisa. Dois anos depois de adquirir essa bela máquina, continua sendo um enorme prazer cavalgá-la estradas a fora. A questão, talvez, não seja ter ou não ter, ou ter essa ou aquela, isso ou aquilo, mas sim buscar o bom uso do que se tem. E sempre existirão máquinas (e destinos) melhores e mais atraentes, mas penso que isso não é um problema, mas antes um estímulo a novas viagens e novas experiências.
É isso. Vamos juntos?
3 de março
Curitiba a Ribeirão Preto, 762 km
Ida, 2º dia
4 de março
Ribeirão Preto a Brasília, 733 km
Trecho saindo de Catalão
Volta, 1º dia
12 de março
Brasília a Santa Bárbara d'Oeste, 917 km
Volta, 2º dia
13 de março
Santa Bárbara d'Oeste a Curitiba, 526 km
*** *** ***
Breve liberdade poética (escrito nesses dias):
Verdades?
A verdade é que a vida não é fácil pra ninguém.
A verdade é que todos queremos ser amados, admirados, queridos.
A verdade é que todos gostaríamos de ser melhores do que somos. Mais fortes, mais sábios, mais animados.
A verdade é que todos temos nossos medos, nossas falhas, nossos vazios.
A verdade é que todos sonhamos com coisas como felicidade, liberdade e plenitude, mas não sabemos bem ao certo o que significam, muito menos como realizá-las.
A verdade é que muitas vezes pensamos coisas que não temos coragem de dizer. E às vezes pensamos coisas incoerentes e sem sentido.
A verdade é que tudo que fazemos (e deixamos de fazer) na vida tem um custo e um benefício. Não tem nada grátis, isento, perfeito.
A verdade é que a vida não obedece a uma lógica matemática. Tipo: "se você fizer tudo certo, vai dar tudo certo". Em algum momento, sem razão aparente, tudo pode dar errado.
Aliás, a verdade é que nem tudo se encaixa nesse parâmetro de certo e errado. Vai haver momentos e situações totalmente incongruentes com os melhores princípios e boas intenções.
A verdade é que não importa quanto nos esforcemos, sempre haverá áreas da vida que ficarão negligenciadas.
A verdade é que não sabemos bem ao certo quem somos. Um espírito encarnado em um corpo físico? Uma consciência? Algo que pensa? Um sistema de órgãos e fluidos? Um pouco de tudo isso? Nada disso?
A verdade é que não dá pra agradar todo mundo, acertar sempre, resolver tudo o tempo todo. Mas isso não é desculpa para as coisas que não dão certo. Devemos, como regra, dar o nosso melhor em todas as situações (apenas temos que estar cientes de que isso nem sempre é suficiente).
A verdade é que tudo na vida tende a se desorganizar, a envelhecer, a ficar obsoleto. Não importa o que façamos ou quão bom sejamos.
A verdade é que todos ansiamos por novidades. Ver paisagens diferentes, conhecer pessoas, respirar outros ares, mudar de roupa, de carro, de casa. Mas talvez o que valha mesmo é ir atualizando o sujeito da ação, e não necessariamente os objetos.
A verdade é que todos gostaríamos de fazer grandes coisas, viver grandes histórias, fortes emoções, etc., mas vivemos tão imersos no cotidiano, nas questões menores do viver, nas engrenagens logísticas da vida, que acaba sobrando pouco para as coisas realmente importantes.
A verdade é que somos todos sozinhos, abandonados, isolados nessa individualidade fria e angustiante. E assim não temos, nos momentos mais extremos, como ajudar ninguém, por mais amor ou vontade que tenhamos.
A verdade é que todos gostaríamos de crer em Deus. Todos gostaríamos de ver Deus, de sentar e bater um papo com Ele.
A verdade é que todos gostaríamos de entender esse negócio chamado vida. E mais que entender, dominar.
A verdade é que apenas não sentir dor já é uma tremenda felicidade.
A verdade é que o sossego e a tranquilidade são muito melhores do que o agito e a correria, mas aqueles só são assim por causa destes.
A verdade é que habitamos um corpo físico-orgânico em constante mutação, sempre em movimento e, a rigor, totalmente fora do nosso controle.
A verdade é que todos sabemos que um dia vamos morrer, e ninguém sabe ao certo como é isso.
A verdade é que todos temos medo da morte, do escuro, de ir embora.
A verdade é que sempre pensamos como será depois da morte, "para onde vamos", essas coisas. Mas raramente pensamos como era antes de nascermos, "onde estávamos", o que fazíamos.
A verdade é que não há um momento na vida em que vamos considerar que está tudo feito e concluído. A vida não tem parâmetro de suficiência, não tem como ser concluída. No final, seremos sempre arrancados dela.
A verdade é que nunca sabemos o dia que vamos morrer. Pode ser no próximo instante ou daqui a muitos anos ou décadas.
A verdade é que a vida que vivemos não é de fato nossa. O sopro da vida nos é apenas emprestado, por tempo finito e indeterminado.
A verdade é que somos todos um pouco egoístas, em alguma medida.
A verdade é que a gente se enrola demais com coisas simples. Se bem que nada é simples...
A verdade é que todos nós mentimos em algum momento, e em grande parte das vezes, pra nós mesmos.
A verdade é que ter um filho é mesmo uma das mais ricas experiências que podemos ter nessa vida. É o amor na sua forma mais sublime.
A verdade é que a realidade dura dos fatos é mesmo fria demais pra ser vivida sem nenhum tipo de filtro. Pelo menos uma pequena fantasia mental temos que criar pra ir tocando a vida.
A verdade é que em algum momento a vida vai nos apertar, nos deixar sem ação, sem rumo.
A verdade é que de fato sabemos muito pouco de tudo, do universo infinito lá fora ao universo infinito dentro de cada um de nós.
A verdade é que não temos certeza de nada, até mesmo das nossas certezas, e a vida é um constante tatear no escuro.
A verdade é que todos temos vergonha de alguma coisa que fizemos, ou que pensamos, ou que gostaríamos de fazer.
A verdade é que, de alguma forma, sempre invejamos um pouco a vida do outro (ou de algum outro específico).
A verdade é que em algum momento da vida sempre vamos ter aquela vontade de deixar tudo pra trás, de mudar tudo de lugar e de sentido, de sair correndo por aí, sem direção, sem hora pra voltar, sem avisar ninguém.
A verdade é que tudo nos cansa em algum momento, até o que nos diverte e encanta.
A verdade é que somos todos meio loucos, cada um acreditando e vivendo a sua loucura particular.
A verdade é que o silêncio, ao mesmo tempo que nos enternece, nos assusta.
A verdade é que viajar nem sempre é assim tão bacana. Nem ficar em casa, nem isso, nem aquilo. Tudo depende do contexto, do momento, da paixão, do sujeito da ação.
A verdade é que é a incerteza da vida que dá graça à vida, mas também nos deixa sempre nesse estado de alerta que nos rouba um pouco a paz de curtir cada momento de forma plena.
A verdade é que todos adoramos um abraço sincero e demorado, um olhar afetuoso, um toque suave.
A verdade é que todos gostaríamos de ter amigos com quem pudéssemos confessar nossos mais altos ideais, nossas mais secretas ambições, nossas mais angustiantes aflições. Mas amigos assim são bem raros.
A verdade é que vivemos nos equilibrando entre sonhos e projetos não realizados e sonhos e projetos que nunca realizaremos.
A verdade é que a vida não passa rápido. A gente é que fica distraído por anos e ai, quando de repente acordamos, já era.
E o tempo? A verdade é que o tempo não existe. Não. Calma aí. Isso é clichê. O tempo é uma dessas fantasias que inventamos pra tentar entender esse mundo maluco em que vivemos.
A verdade é que tudo que fazemos, se visto com bastante honestidade, é apenas distração, entretenimento, uma dança suave com o tempo e as nossas fantasias.
A verdade é que todos temos pressa, sem saber por que.
A verdade é que estamos sempre pensando no que está por vir, sempre fazendo planos, sempre achando que um dia vamos chegar a algum lugar.
A verdade é que todos gostamos de poesia, boa música, um bom livro. Ou pelo menos deveríamos gostar.
A verdade é que todos apreciamos um céu azul, o barulhinho da água correndo num córrego no meio da mata, o cantar dos pássaros numa manhã de sol. Pequenos luxos espalhados por aí, disponíveis a quem tiver olhos (e tempo) pra ver.
A verdade é que a vida não tem sentido (ou se tem, não somos capazes de saber qual é).
A verdade é que a vida é um belo mistério, muito além de nosso sempre limitado ponto de vista.
A verdade mesmo é que a verdade não existe.
Estamos todos presos num mundo de ilusões e aparências, vivendo um sonho como se fosse realidade.
A verdade é que gostaríamos de ser só amor, e um dia, talvez, venhamos a ser.
A verdade é que a Vida é o que é (e nós não somos nada).
(Sidnei Assis, Março/ 2023)
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(Raymond B. Fosdick)
Gratidão
Força Sempre