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quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Caminho da Fé, 307 km caminhando em 12 dias, pelo interior de Minas Gerais e São Paulo, 12 a 23 de Outubro de 2020


 







Caminho da Fé

Uma jornada de 307 km percorridos a pé, em doze dias,

entre as cidades de Águas da Prata e Aparecida


 * em parceria com Andréa Santana e Newton Adriano Weber



       Segundo a digníssima Wikipédia, “uma peregrinação (do latim per agros, isto é, pelos campos) é uma jornada realizada por um devoto de uma dada religião a um lugar considerado sagrado por essa mesma religião. Para peregrinar há que ter em conta que não se trata apenas do ato de caminhar, ou executar um trajeto com um determinado número de quilômetros; é reconhecido que peregrinar carece caminhar motivado por ou para algo. A peregrinação tem, assim, um sentido e um valor acrescentado que é necessário descobrir a cada pessoa que a executa.”

Sentido, para que, finalidade... São questões que nos parecem essenciais, acostumados que somos a esses valores tão bem construídos ao longo de décadas de mentalidade industrial-produtiva.

O termo se adequa bem no caso do Caminho da Fé, já que a motivação religiosa foi a inspiração inicial da ideia.

Mas nem todos que se lançam nessa jornada tem razões especificamente religiosas, evidentemente. Cada um tem seus próprios motivos.

Creio que, no final das contas, tudo se encerra no sujeito da ação, e não na ação em si. Nós e nossos mundos mentais, nossos devaneios, nossa imaginação, nossos moinhos de vento como se fossem exércitos inimigos.

Quem nunca pelo menos pensou em um dia sair caminhando por aí, meio sem rumo, sem hora pra voltar, sem necessidade de motivos? Apenas apreciando a paisagem e deixando-se levar pelo caminho à frente e pelos passos um depois do outro...

Suspeito que tenha sido mais ou menos esse mito, incrustado em algum lugar nos meus labirintos, que me fez aceitar o convite dos amigos Andréa e Newton pra fazer o Caminho da Fé.

Já havíamos feito esse percurso (na verdade, ainda um pouco maior) em março do ano passado, de bicicleta, em sete dias. Agora a proposta era fazê-lo caminhando, saindo da cidade paulista de Águas da Prata e chegando a Aparecida, num total de pouco mais de trezentos quilômetros.

Baseados na experiência do ano passado e nas informações disponíveis, planejamos cumprir o percurso em doze etapas, sem apoio externo, contando apenas com nossas mochilas como item pessoal a nos acompanhar.

Saímos de Curitiba, de ônibus, à zero hora do dia 11 de Outubro. Seis horas depois chegamos a São Paulo. Longa espera de quatro horas na rodoviária e novo embarque em ônibus, com destino a Águas da Prata, aonde chegamos às 14 h.

Nos instalamos então em uma hospedaria chamada Pousada do Peregrino, que é meio que uma pousada oficial de início do Caminho naquela cidade. Saímos pra almoçar, uma passadinha no mercado e nos recolhemos novamente, a fim de preparar o espírito para a jornada iminente.

Ao final da tarde foram chegando outros peregrinos. Alguns vindos já de outros destinos (ciclistas), outros, como nós, ali estavam para o início, e logo o ambiente foi tomado por um certo ar de expectativa e alegres conversas e trocas de histórias. Bom pra animar, mas não tão bom pra quem gosta mesmo é de um bom sossego.

No dia seguinte, 12 de outubro, coincidentemente dia de Nossa Senhora Aparecida, acordamos cedo e logo colocamos o pé na estrada, indisfarçavelmente um tanto ansiosos, como crianças em noite de Natal, imaginando o que encontraríamos pela frente.

É muito bacana esse processo de transmutação daquilo que se imagina na realidade dos fatos, da teoria na prática. Ao mesmo tempo em que há uma alegria sincera e grande, há também certo pesar, porque de muitas formas os sonhos são mais belos e enternecedores do que a realidade que lhes corresponde.

A par de todas as questões possivelmente espirituais, filosóficas ou emocionais que embalam uma jornada como essa, há, logicamente, a incontornável demanda de esforço físico inerente à brincadeira. De acordo com nosso planejamento, deveríamos percorrer entre 20 a 35 km diariamente, dia após dia. Como nos adaptaríamos a tal exigência?

Nesse primeiro dia, em que percorremos 31 km até a cidade de Andradas, a grande adversidade ficou por conta do forte calor, que nos fazia sentir como se estivéssemos em um forno. Quando chegamos ao nosso destino, no começo da tarde, os termômetros marcavam 41 graus.

Engana-se quem (nunca tendo tido a salutar experiência de caminhar longas distâncias) pensa que sair andando por aí é algo leve e de fácil execução, como sugerem certas imagens que tem o poder de atrair nossa atenção e interesse. Depois de certo tempo, o caminhar se torna incrivelmente penoso, tudo dói, tudo incomoda, e não é nada raro a alegria acabar antes do destino planejado. E é aí que entra a importância dos motivos pessoais, do imaginário interno de cada um, do nível de convicção que se aplica à fórmula.

E assim fomos seguindo um dia após o outro. Nosso ritmo consistia em acordar cedo, normalmente por volta das cinco horas. Tomar café da manhã, arrumar as poucas coisas na mochila e partir, por volta das seis. Aí então caminhávamos até o destino previsto. Chegando à localidade, instalávamo-nos em uma pousada e então o que sobrava do dia era destinado ao necessário descanso, como preparação para a jornada seguinte.

Fizemos reservas em todas as pousadas do caminho, a fim de evitar qualquer imprevisto.

Havia um grupo de cerca de doze pessoas (organizadas por uma agência de viagens) que estava fazendo o mesmo percurso, com a mesma divisão de dias que a gente. Assim, acabamos ficando juntos em algumas hospedagens e trocando experiências e boas conversas (na verdade, da minha parte, mais ouvi do que falei, mas já foi bem válido). Como as pousadas são sempre bem modestas e intimistas, acabamos percebendo que essa coincidência também nos acarretava um certo inconveniente, pois o grupo era bem animado e dado a efusivas interações, naquele estilo de meio não levar em conta o mundo fora do seu micro universo. Com o passar dos dias, acabamos decidindo fazer algumas alterações em algumas das nossas reservas, com o objetivo de nos preservar um pouco do agito dos nossos colegas de caminho.

Encontramos também alguns outros peregrinos, e esses encontros são sempre interessantes e motivo de troca de experiências e conversas. Creio que cruzamos com três pessoas fazendo o caminho sozinhas, uma mulher e dois homens, bem como com um grupo de cerca de seis homens, todos na faixa de sessenta anos pra mais. Encontramos também, um pouco mais à frente, um grupo de três homens, pai, filho e cunhado, fazendo parte do caminho apenas (quatro dias).

E tivemos também um inusitado e casual encontro com um camarada raríssimo que estava fazendo o caminho correndo, sozinho, sem qualquer apoio, levando consigo apenas uma mini mochila de hidratação (ficamos sabendo alguns dias depois que ele (per)correu 430 km em oito dias... Fera demais!). Por coincidência encontramos com esse mesmo cara quando fizemos o caminho de bike no ano passado, quando ele também estava correndo sozinho no seu estilo minimalista.

Houve também um grupo de um homem e três mulheres com que cruzamos em que todos usavam sandálias (tipo papete) e uma das mulheres estava de chinelo. Aliás, descobrimos que essa é uma forte tendência dentre os caminhantes mais inveterados. A velha e boa simplicidade como solução.

E tivemos também o prazer de estabelecer um bom vínculo de contato com um grupo de duas mulheres (e o marido de uma delas, como motorista de apoio), com quem nos encontramos por diversas vezes, e caminhamos juntos durante todo o último dia. Enfim, cada um, uma história, um mundo.

Percebi que boa parte dessas pessoas que encontramos não tinha nenhuma motivação especificamente religiosa, mas outra parte tinha. Pode ter sido uma falsa impressão, mas me pareceu que os religiosos aparentavam uma alegria e convicção nitidamente superiores às dos demais.

O forte calor foi um verdadeiro desafio nos três primeiros dias. Esteve realmente muito quente. Mas depois o tempo virou e tivemos uma boa sequência de dias nublados e de temperatura incrivelmente agradável. O quarto dia foi o único em que choveu, uma chuva fina, mas constante por cerca de duas horas.

Vale comentar também sobre a altimetria bastante acentuada do percurso. Toda a região é bem montanhosa. Todo o tempo ou se está subindo ou descendo, uma serra depois da outra, e essa geografia abrupta cobra um preço alto da musculatura e, em particular, dos pés dentro dos calçados, a todo momento sendo espremidos pela onipresente gravidade. E, ao contrário do que ocorre quando se está pedalando, as descidas não representam descanso.

Acho que nós três nos adaptamos bem ao esforço físico requerido e realizamos todas as etapas sem qualquer incidente ou maiores problemas. O que não quer dizer que tenha sido fácil. Muito pelo contrário. Pessoalmente, constatei o que já sabia: que caminhar longas distâncias é duro, lento, quase penoso. Talvez não seja à toa que é uma forma clássica de pagar promessas ou oferecer uma espécie de sacrifício aos deuses. É um exercício que provoca um cansaço estrutural, profundo, que de alguma forma mexe com a gente. Acho que esse estado de profundo cansaço físico nos dá uma sensação de realização e de paz de espírito, difícil de explicar.

Muitos associam o caminhar a uma espécie de meditação em movimento. E faz todo sentido. Os movimentos repetitivos, contínuos, simples na sua essência, nos induzem a um estado mental de relaxamento e de desconexão com os infinitos detalhes que vivem a nos atormentar no cotidiano. Pode ser também que o próprio desconforto da situação absorva quase toda a atenção que em situações normais se ocupa de outras futilidades. O fato é que a jornada toda me pareceu um excelente processo de higiene mental.

É evidente que outras formas de percorrer distâncias (como, por exemplo, pedalar, remar, pilotar motocicleta ou dirigir carro) são infinitamente mais lúdicas e divertidas [opinião pessoal, logicamente], mas talvez seja justamente aí que esteja a riqueza dessa volta ao essencial que o caminhar nos proporciona. A não distração nos coloca em um estado mental muito especial.

No nosso décimo dia tivemos uma jornada particularmente dura. Pra ficar em uma pousada que sabíamos ser um pouco melhor do que a inicialmente prevista, acabamos fazendo uma alteração no nosso ponto de parada no dia anterior, o que acrescentou cerca de 4 km ao percurso do dia seguinte. Nessa décima etapa foi também o dia de subir a temida Serra da Luminosa, uma longa e íngreme subida que exige muito do físico e do mental. E, pra completar, na chegada a Campos do Jordão (o destino do dia), a pousada que havíamos reservado ficava do outro lado da cidade, o que acrescentou mais alguns quilômetros extras ao previsto. Resultado: acabamos caminhando 40,5 km, das 06:40 da manhã às 18:50 h, com as devidas (e não longas) paradas pra descanso e alimentação. Foi um dia bem intenso!

A chegada a Aparecida, nosso destino final, no último dia, foi novamente sob forte calor e sob o efeito do cansaço acumulado ao longo do caminho. Pra quem não tem o enfoque religioso relacionado ao santuário de Nossa Senhora Aparecida essa chegada acaba sendo um pouco esvaziada de emoção e de significado. Se fosse à beira de um rio de águas límpidas e frescas, à sombra de algumas árvores, com pouca gente e muito silêncio em volta, certamente teria me tocado mais. Mas as coisas são como são.

Creio que um contraponto importante a comentar é que, ainda que algo em torno de noventa por cento do caminho seja por estradas de terra e região rural, o contexto todo ainda é urbanizado demais. Ficar hospedado em pousadas ao final de cada jornada tem o lado bom de normalmente nos proporcionar um bom descanso, um bom banho e coisa e tal. Por outro lado quebra o encanto do isolamento que se vive enquanto se está andando e nos remete de volta, um pouco, ao mundo real. Uma peregrinação como essa é um formato bem diferente de um trekking em trilha em região montanhosa, por exemplo. Cada formato com suas belezas e limitações.

Uma grande vantagem desse caminho é o fácil acesso em termos de distância de qualquer lugar no centro-sul do Brasil e a preparação que existe em termos de opções e posicionamento das hospedagens, localizadas a distâncias estratégicas entre si, oferecendo variadas possibilidades de montagem das distâncias a serem percorridas a cada dia. É um excelente exercício pra quem sonha em percorrer o famoso Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, que serviu de modelo e inspiração para o Caminho da Fé.

Tenho que comentar também, já como forma de agradecimento, o prazer de ter tido a companhia do casal de amigos Andréa e Newton, que mantiveram o astral sempre elevado e um apuradíssimo espírito de equipe. Aprendi muito nas inúmeras conversas que compartilhamos juntos. Foi uma parceria sensacional. Muito obrigado, meus amigos.

Embora boa parte do mito de percorrer grandes distâncias caminhando tenha sido realizado nessa viagem, sinto que há ainda algumas ideias a serem vivenciadas nessa área, como, por exemplo, caminhar não com ideia de peregrinação, mas do puro caminhar, como um bom andarilho, bem como a experiência de um dia, quem sabe, experimentar esse tipo de vivência em solitário.

No final das contas, lembrando o que dizia o bom e velho pequeno príncipe, de Saint-Exupéry, “o essencial é invisível aos olhos”. Pra enxergar a beleza e o sentido seja de um caminho como esse, seja da própria vida, é realmente preciso ver além do que os olhos alcançam. 

Vamos juntos?


















1º dia, 12 Out

De Águas da Prata a Andradas

31,67 km/ 837 m de ganho de elevação

Tempo total: 8h 43 min/ Ritmo médio de movimentação: 13:08 min/km




















































Cidade de Andradas












2º dia, 13 Out

De Andradas a Barra

21,88 km/ 621 m de ganho de elevação

Tempo total: 6h 42min/ Ritmo médio de movimentação: 13:51 min/km









































































































































Conversa com os donos da pousada, ao anoitecer







3º dia, 14 Out 

De Barra a Inconfidentes

33,07km/ 679m de ganho de elevação

Tempo total: 9h 39min/ Ritmo médio de movimentação: 12:56 min/km

















































Monumento "Menino da Porteira", em Ouro Fino
































































4º dia, 15 Out

De Inconfidentes a Borda da Mata

22,59km/ 543m de ganho de elevação

Tempo total: 6h 09min/ Ritmo médio de movimentação: 13:22 min/ km




























































5º dia, 16 Out

De Borda da Mata a Tocos do Mogi

18,07km/ 706m de ganho de elevação

Tempo total: 5h 00min/ Ritmo médio de movimentação: 13:39 min/km




































































































Parte do grupo que estava caminhando junto com o nosso cronograma























































6º dia, 17 Out

De Tocos do Moji a Estiva

21,64km/ 813m de ganho de elevação

Tempo total: 6h 26min/ Ritmo médio de movimentação: 14:04 min/km













































































7º dia, 18 Out

De Estiva a Consolação

20,07km/ 648m de ganho de elevação

Tempo total: 5h 40min/ Ritmo médio de movimentação: 13:28 min/km












































































































8º dia, 19 Out

De Consolação a Paraisópolis

21,88km/ 549m de ganho de elevação

Tempo total: 5h 59min/ Ritmo médio de movimentação:13:47 min/km


























































9º dia, 20 Out

De Paraisópolis a Luminosa

24,22km/ 656m de ganho de elevação

Tempo total: 6h 27min/ Ritmo médio de movimentação:13:41 min/km













































Distrito de Luminosa 

















10º dia, 21 Out

De Luminosa a Campos do Jordão

40,46km/ 1591m de ganho de elevação

Tempo total: 12h 07min/ Ritmo médio de movimentação: 13:36 min/km


































































































Encontro inusitado, bem do nosso lado














11º dia, 22 Out 

De Campos do Jordão a Gomeral

22,34km/ 562m de ganho de elevação

Tempo total: 6h 50min/ Ritmo médio de movimentação: 13:25 min/km




Os nossos amigos de Valinhos, com quem caminhamos juntos por alguns períodos















Ao longe, a cidade de Aparecida e o vale do Paraíba






















Pousada em que ficamos no último dia, casarão construído no século XVIII































12º dia, 23 Out

De Gomeral a Aparecida

29,18km/ 166m de ganho de elevação

Tempo total: 7h 23min/ Ritmo médio de movimentação: 12:31 min/km

Distância total percorrida: 307,07km

Ganho de elevação total: 7.750m




















































 

 



 















































































































































































Observações:

- Sobre a fotografia nesta viagem: utilizei duas câmeras compactas, a Nikon Coolpix AW130 e a GoPro Hero 7. Pensei até o último momento antes de partir em levar a DSLR Canon que possuo, mas acabei decidindo apenas pelas compactas, em função da leveza e praticidade do uso para a situação que enfrentaríamos. No caminho quase me arrependi por não estar com uma câmera com mais recursos, porque as pequenas são bem limitadas para situações mais específicas. Assim sendo, todas as fotos aqui apresentadas foram feitas naquele esquema "apontar e atirar". 

- Sobre a pandemia Covid-19: analisar se era o caso ou não de empreender a viagem em função desse vírus foi uma questão delicada. No final das contas, acabei decidindo por ir principalmente considerando que, pelo que sabemos, essa situação não vai se resolver completamente tão cedo. Esse vírus não vai desaparecer de uma hora pra outra. Por isso penso que temos que buscar nos adaptar à situação e tocar a vida em frente, fazendo o que está ao nosso alcance fazer, e que já sabemos tão bem - álcool em gel, máscara e distanciamento social. Dentro do possível essas medidas foram observadas e respeitadas. 













Assista no link abaixo a um vídeo da viagem:















"Para ver o que você nunca viu
é preciso andar por onde nunca andou."
(de uma placa no caminho)









"Mais forte do que nunca penetrou-o o sentimento do apátrida, do andarilho que não soube erguer um muro de casa, de castelo ou de convento entre sua própria pessoa e o grande medo, que pura e simplesmente corre sozinho através do mundo incompreensível e hostil; sozinho entre as estrelas frias e desdenhosas, entre os animais à espreita, entre as árvores pacientes e inabaláveis."

(Hermann Hesse, in "Narciso e Goldmund")










Gratidão





Força Sempre