Zanzando por aí
Viagem de moto de Curitiba a Novo Hamburgo-RS, ida e volta,
pelas BR 116 e 101, em três dias.
No começo há, sempre, a dúvida.
Ir ou não ir? Atacar ou manter? Ousar ou ser prevenido? Casar ou comprar uma
bicicleta? A fim de não sermos vencidos pelas intermináveis inquietações e
escolhas da vida, devemos nos lembrar que não há, na maioria desses dilemas
entre opções aparentemente conflitantes, escolhas absolutamente certas ou
erradas. O que há são caminhos diversos, sendo uns mais tortuosos do que
outros, mas todos são caminhos.
Nesses tempos esquisitos que
estamos vivendo, surpreendidos e invadidos por uma pandemia que ninguém ainda
entendeu ou conseguiu controlar, acrescenta-se mais essa difícil variável às
análises a respeito de ser adequado ou não viajar a algum lugar (ou ir à
padaria da esquina comprar o pão do dia-a-dia). De repente tudo ficou ainda
mais confuso do que já era.
O fato é que dentre todas as
questões circulando à minha volta nas últimas semanas (e meses), sentia claro
como a luz do sol a vontade de dar uma circulada, sair um pouco do quintal de
casa, ver outros horizontes, respirar outros ares. De modo que, contrariando as
insistentes orientações de meio mundo, bolei essa viagenzinha de moto, a fim de
atender às minhas próprias orientações.
Cabe comentar ainda que há cerca
de três meses, depois de um longo e exaustivo processo decisório, implementei a
troca da velha e boa BMW 1200 GS, que me acompanhava havia mais de nove anos,
pela Ducati Multistrada 1200 Enduro, uma super máquina de receita italiana, que
agora vive na minha garagem a me instigar com seu belo design e apelo
esportivo.
E nada melhor pra honrar uma
motocicleta como essa do que colocá-la no seu habitat natural, a estrada. E
nada melhor do que uma pequena viagem pra juntar esses elementos em um pacote
completo.
Saí de Curitiba em uma ensolarada
manhã de segunda-feira, seguindo pela BR 116 em direção ao sul. Aos poucos, à
medida que os quilômetros iam passando, a estrada foi ficando com o movimento
mais tranquilo, e o prazer da pilotagem foi aumentando na mesma proporção.
Frequentemente eu próprio me
questiono e me provoco a respeito dessa inclinação por motocicletas de alta
performance e as inerentes viagens que elas inspiram. Ah, mas é muito caro!... Mas
usa-se tão pouco!... Mas e a manutenção?... E os riscos?... Etc, etc, etc. Às
vezes parece haver algum tipo de magia em torno desse tipo de equipamento.
Olhando de fora, racionalmente, todos esses argumentos (dentre muitos outros)
fazem todo o sentido. O “problema” é que quando se monta nessas máquinas e o
giro do motor sobe entre as pernas, a poderosa razão desaparece sob as enormes
asas da emoção que toma conta da gente com o vigor de um vórtice de energia.
Talvez seja, no final das contas,
uma questão simbólica. Acelerar estrada a fora, afastando-se da cidade e da
vida cotidiana, nos dá a sensação (muito impactante, ainda que momentânea) de
estar entrando em outra dimensão mental, ou ainda, poder-se-ia dizer, quase em um
outro mundo.
As horas e os quilômetros passaram
rápido nesse primeiro dia. As condições do tempo estavam incrivelmente
favoráveis e agradáveis. Céu azul, sol amarelo, vegetação verde pelos lados,
temperatura agradável, paisagem quase bucólica.
Amparado pelo fantástico tanque
de combustível de 30 litros de capacidade, por um conforto ciclístico
irrepreensível e pelo vigor interminável do motor Testastretta DVT de 160 cv,
não dava vontade alguma de parar pra nada.
A ideia era seguir nesse dia até
a cidade de Novo Hamburgo, já nas imediações da capital Porto Alegre. Por volta
das 17 horas alcancei a cidade de Caxias do Sul e a partir daí a intensidade do
trânsito meio que deu uma quebrada no prazer de pilotar sem interrupções.
Muitos carros, todos apressados, semáforos, quebra-molas, rotatórias e toda
essa parafernália típica de cidades tumultuaram um pouco o contexto.
Estava sem GPS, o que dificultou
um pouco a orientação nas várias bifurcações e viradas de direção nesse trecho.
O jeito foi guiar-se à moda antiga, pelas placas e noção geral de direção.
Pouco depois das dezoito horas
escureceu rapidamente e ainda faltava um tanto para o destino pretendido.
Apesar do excelente conjunto óptico da moto, a visibilidade à noite diminuiu consideravelmente, o que, aliado ao cansaço que começava a dar sinais de
presença, acendeu o alerta de que estava de bom tamanho a brincadeira.
Alguns minutos mais tarde cheguei à cidade de Novo Hamburgo, onde instalei-me em um hotel, após passar pela
checagem de temperatura corporal e preencher um questionário com perguntas do
meu estado de saúde, de onde vinha, etc. Tudo bem, a gente se acostuma com
esses procedimentos, mas isso não lhes tira a estranheza e certa incongruência.
Pra minimizar a necessidade de
circulação e contato com pessoas, levei meu próprio kit de alimentação, que me
permitiu fazer um lanche no quarto mesmo, o que, aliás, achei ótimo.
No dia seguinte acordei por volta
das seis e meia da manhã, abri as cortinas das janelas e tudo ainda estava
escuro lá fora. Até verifiquei novamente o horário, pra ter certeza de que não
estava enganado, mas era isso mesmo. O dia só foi clarear já quase às sete
horas.
Após um rápido café da manhã, reorganizei as coisas e estrada. O céu estava cinzento e com uma camada de nuvens baixas, dando aquela sensação de ligeira melancolia.
Pouco tempo depois passei por
Porto Alegre e peguei a chamada Freeway, anel viário que contorna a cidade.
Dali era só seguir em frente, primeiro no sentido leste, e logo em seguida no sentido
norte pela BR 101, e ir tocando de volta pra Curitiba.
Aos poucos o tempo foi
melhorando. Por volta das onze horas já havia um pouco de céu azul e o sol
começava a dar as caras.
A BR 101 tem a vantagem de ser
totalmente duplicada, o que é bom por razões de segurança e de rendimento da
viagem, no entanto, não tem aquele aspecto um pouco mais isolado que a 116
proporciona.
Ao alcançar a altura de
Florianópolis, no começo da tarde, o pouco de paz que ainda havia se perdeu de
vez, em função do trânsito intenso de veículos, que se mantém praticamente sem interrupção
até Curitiba (e além). Muitos carros e caminhões! Quase uma procissão
interminável que se estende por centenas de quilômetros.
Pra quebrar um pouco esse ritmo,
planejei o pernoite dessa jornada no escondido e aprazível Forte Marechal Luz,
em São Francisco do Sul. Cheguei lá pouco depois das dezessete horas. O lugar
definitivamente é um oásis de tranquilidade.
Montei minha barraquinha no
camping, dei uma organizada nas coisas e saí pra dar uma caminhada na praia.
Embalado pelo barulhinho das ondas chegando suaves à areia, apreciei com todo o
direito e deleite esse precioso e belo momento. Minha irrestrita reverência a
essa paisagem encantadora que é o mar estendendo-se até o horizonte. Absolutamente
renovador esse contato.
Noite de sono tranquila e longa
dentro do meu saco de dormir, com o charme de alguns pingos de chuva caindo
leves no tecido da barraca.
O dia seguinte amanheceu bem
cinzento e frio, conforme a previsão. Fiz meu chá, comi alguma coisa e saí pra
caminhar um pouco. Na curva da estrada que leva aos canhões no alto do morro,
sentei e fiquei a contemplar o sempre hipnotizante cenário: o mar, o horizonte,
os pássaros, o céu... e algumas lembranças bem profundas, algumas ideias,
alguns conceitos existenciais... e a questão do tempo, na escala comentada no
livro “Origens”, que li há alguns meses (milhões e bilhões de anos, no passado
e no futuro, e ali, aqueles minutos, aquele momento).
Poderia ficar horas ali (e um dia
ainda ficarei... rsrsrs), mas resolvi aproveitar o lugar e a oportunidade pra fazer uma corridinha. Retornei à barraca, coloquei calção e tênis e fui. Duas subidas
ao topo do morro e algumas voltas na praia e tudo parecia melhor. Nada como o
corpo aquecido e ligeiramente cansado pra acalmar a alma e instigar novas
ideias.
Após um bom banho, fiz meu
almoço, arrumei minhas coisas e pé na estrada.
Trechinho difícil... Apenas 190
km até Curitiba, mas com trânsito pesado, chuva fina, frio intenso e todo o
contexto da aproximação a um grande centro urbano.
Às dezessete horas estava em
casa. A Ducati, perfeita e impassível, como a dizer: “já acabou?”; a Mari e a
Thaís nos seus afazeres; a rua de casa como sempre foi... E é assim, a gente
vai e volta e no final quem muda somos nós mesmos (ainda que só um pouco de
cada vez).
Na véspera de sair pra essa
viagem, a Mari comentou comigo, em tom um tanto crítico (normal nesses
momentos...): “quer dizer que você vai ficar três dias zanzando por aí, é?”
Palavra curiosa e sonora: zanzar. Fui pesquisar. Segundo as definições da
Oxford Languages (dicionário do Google), é um verbo intransitivo que significa “andar ao acaso, sem destino
certo ou passear ociosamente”. Tenho, pois, que reconhecer que ela tinha razão.
E como dizia Thoreau: “caminhar
sem rumo é uma grande arte”. Dediquemo-nos então ao aperfeiçoamento dessa arte.
Viva a vida!
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Observação sobre este blog: sinto que este formato/linguagem de apresentação de textos e imagens adotado nesta plataforma fica cada vez mais desatualizado e limitado em termos de recursos tecnológicos e atrativos para o eventual leitor/visitante destas histórias, em comparação com o dinamismo e abrangência de outros formatos, como um vídeo bem editado, por exemplo, tão em voga atualmente.
É lógico que cada tipo de linguagem tem o seu valor e o seu espaço, mas fico pensando se não é o caso de pensar em uma adequação aos tempos e recursos mais atualizados.
Vamos pensando e vendo...
E você, o que acha disso?
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"Desfruta de verdadeiro lazer quem tem tempo
pra melhorar o estado de sua alma."
(Henry David Thoreau)
Gratidão
Força Sempre