No
livro “Uma simples revolução – novos rumos para uma sociedade perdida” (Editora
Sextante, 2016), que terminei de ler há alguns dias, o sociólogo italiano
Domenico De Masi analisa com impressionantes clareza e honestidade os rumos que
a sociedade contemporânea vem tomando.
De
Masi considera que vivemos em uma época que ele chama de pós-industrial, que,
como o nome diz, vem depois da impactante era industrial, que marcou
profundamente o modo de vida de todo o mundo durante cerca de um século (mais
ou menos entre 1880 e 1980).
A
era industrial, como sabemos (ou deveríamos saber), criou e consolidou, dentre
outros paradigmas, a noção da competitividade, do “quanto mais, melhor”, da
jornada de trabalho de oito horas diárias, e, sobretudo, da vida centrada no
trabalho, tornando todos os demais temas periféricos.
Esse
modelo caiu como uma luva nos ideais capitalistas, que foram catapultados pela
euforia de uma imaginada prosperidade sem limites.
Fica
difícil para a nossa geração, que nasceu dentro desse molde, vislumbrar que
todo esse discurso é apenas a defesa de uma tese, dentre muitas outras,
provavelmente mais atraentes e eficientes do que essa que aprendemos.
De
fato a sociedade industrial fez do trabalho uma espécie de deus, ao qual todos
deveriam prestar seu culto. A tal ponto de, se por acaso alguém conseguisse escapar
do modelo, seria completamente alijado de valor social e até da própria identidade
como pessoa.
De
Masi nos alerta, no entanto, que esse modelo já está ultrapassado, muito embora
muitos possam não ter percebido, o que é normal em uma sociedade complexa como
a nossa.
O
ponto crucial de transição entre a velha sociedade industrial e a nova fase
pós-industrial foi e continua sendo o desenvolvimento da tecnologia, que aos
poucos vem transformando a vida das pessoas no sentido de, ao mesmo tempo que
nos abre diversas e fantásticas opções de como realizar velhas tarefas, torna
cada vez menos necessária a mão de obra puramente braçal das pessoas.
O
resultado dessa equação, segundo o autor, é óbvio: cada vez mais haverá menos
necessidade de mão de obra, dado esse que, combinado com o fato de que a
população mundial continua crescendo de forma acelerada, resulta que cada vez
mais viveremos em um mundo em que simplesmente não haverá emprego (e talvez nem
necessidade de trabalho) para toda a população economicamente ativa, pra usar o
termo da velha sociedade industrial.
E
qual seria a solução pra isso? A resposta a essa questão é o que dá o título ao
livro – uma simples revolução. De Masi defende que não há soluções milagrosas
ou grandes projetos que possam dar conta de resolver o problema. Muito menos
envereda pelo viés aparentemente lógico de pensar soluções capazes de criar
mais empregos (o que equivaleria a pensar em alargar as ruas para que coubessem
mais carros, como solução para os engarrafamentos). Pelo contrário: defende que deveríamos nos acostumar e nos
adaptar a um mundo em que cada vez se precisará trabalhar menos.
Ou
seja, ao invés de ficarmos desesperados e alarmados com as crescentes taxas de
desemprego, deveríamos assumir isso como um fato incontornável, e fazer desse aparente
limão, uma limonada.
Ele
lembra que vivemos em um mundo em gritante desequilíbrio, sob diversos aspectos,
desde a mais absurda desigualdade de distribuição de riqueza ["as 62 pessoas mais ricas na lista da revista Forbes têm um patrimônio equivalente ao de 3,5 bilhões de pobres, isto é, metade da humanidade atual"], até a igualmente desigual
distribuição de trabalho: enquanto alguns reclamam (com razão) de que trabalham
demais e nunca tem tempo pra fazer o que realmente gostariam, outros não tem
trabalho nenhum. Por que não, por exemplo, então, dividir melhor esse fardo
entre os dois grupos: quem trabalha demais passaria a cumprir a metade da
jornada, atribuindo a outra metade a quem está desocupado. É lógico que o
salário também seria dividido, e é aí que entra o entrave da resistência das
pessoas aceitarem esse tipo de medida.
Mais
do que isso, De Masi sugere que as pessoas façam uma simples revolução nos
próprios conceitos, libertando-se do estigma do trabalho como via única de
realização pessoal, e passem a se dedicar e a encontrar sentido em afazeres
como o convívio social, a apreciação musical, o cultivo de amizades, o
aprendizado da literatura, das artes plásticas, das artes cênicas e assim por
diante. É como um reaprender a viver!
O
autor comenta também que outros parâmetros da sociedade industrial precisam ser
revistos e descartados, como, por exemplo, a ideia de uma produtividade crescente
e ilimitada, que é, de certa forma, o credo central da sociedade capitalista
que cresceu e se inflamou sobre os pilares dos velhos modelos de produção. Segundo
ele, essa ideia é simplesmente irrealizável, e precisa ser desconstruída o
quanto antes.
Em
seu lugar temos que compreender e adotar uma postura de cooperação e de
sustentabilidade. Ou seja, não “produzir e consumir mais, mais e mais”, mas sim
apenas o que for necessário e coerente com o que a nossa estrutura de matéria
prima suporta ser produzido.
É
evidente que o modelo industrial alavancou (pra melhor) diversos aspectos da
nossa vida, no entanto, também nos tornou reféns de uma visão extremamente
estreita da vida, viciados em resultados, em números, em produção, em posse de
bens materiais, e nos levou a uma tremenda confusão entre viver bem e nos
tornarmos apenas uma peça do grande jogo no tabuleiro.
O
que vemos, de maneira geral, são as pessoas trabalhando a vida inteira em busca
de uma sonhada estabilidade ou riqueza que, a rigor, nunca chega, corroborando
aquele velho ditado que diz que “quando somos jovens, temos saúde e tempo, mas
não temos dinheiro. Quando nos tornamos adultos, conquistamos certa riqueza,
ainda temos saúde, mas não temos tempo pra desfrutar. Finalmente quando
envelhecemos, atingimos certa estabilidade financeira e, com sorte, obtemos
algum tempo livre pra aproveitar, mas aí já não temos a disposição necessária
pra fazer o que gostaríamos.”
A
simples revolução proposta por De Masi é romper com esse ciclo vicioso,
buscando um modelo de sociedade que seja mais justo e harmonioso para todos.
Vale
a pena a leitura, a reflexão e, eventualmente, a revisão dos próprios conceitos.
O que você pensa sobre isso? Deixe seu comentário.
“Uma
vida bela é aquela em que as paixões ressurgem e se renovam sempre; em que o
risco nunca deixa de atrair a nossa curiosidade; em que todos os eventos –
inclusive o trabalho – assumem a modalidade de jogo, com as suas regras e as
suas apostas, os seus riscos e os seus azares, as suas destrezas e os seus
golpes de sorte, os seus felizes imprevistos e os seus momentos de reflexão. O
oposto do jogo (em que tudo é imprevisível) é a burocracia (em que tudo é
procedimental).”
(Domenico de Masi, em "Uma simples revolução", pág 338)
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P.S:
Embora o autor não aborde especificamente a questão do “desemprego crônico” do
ponto de vista de medidas diretas de distribuição de riqueza, penso que essa é
uma medida da qual não será possível fugir, cada vez mais, com o passar do
tempo.
O
fato é que há uma outra grande desigualdade que cresce também de forma
galopante no mundo: a desigualdade de capacidade de aprender e de habilidade
técnica das pessoas. Me parece que, de certa forma, a vanguarda tecnológica
avança em ritmo muito mais acelerado do que a grande maioria da população
consegue acompanhar. Quantas vezes já nos deparamos com alguma novidade
tecnológica que nos exigiu certa dedicação e estudo pra ser compreendida e
assimilada? Na verdade isso acontece todo dia, e a sensação é que cada vez mais
multidões vão se tornando obsoletas frente a essa avalanche de inovações e
criações.
O
resultado é que essa defasagem terá que ser custeada por alguém, em algum momento.
Talvez num futuro próximo tenhamos que criar formas de dar condições de
sobrevivência a essa grande massa que cada vez mais vai se desencaixando dos
novos modelos que vão sendo criados [na verdade, acho que isso já acontece].
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