Travessia Petrópolis-Teresópolis
Três dias de caminhada na Serra dos Órgãos
* em parceria com Felipe Amante *
Dentre as muitas mudanças
tecnológicas e comportamentais dos últimos tempos, sem dúvida alguma essa
história de smartphone associado a redes sociais e internet em qualquer lugar
é das mais impressionantes. Aconteceu sutilmente, mas teve a força de um
tsunami no nosso modo de nos relacionar com o mundo e com tudo em volta.
De repente não nos afastamos mais
de nossos celulares, que ficam ligados 24 horas por dia, 7 dias por semana, ininterruptamente.
De repente, não responder a uma mensagem de whats app em poucos minutos virou
motivo de conflito. É lógico que é uma tecnologia fantástica, super útil e
coisa e tal, mas é inegável que já nos tornamos lamentavelmente dependentes dessa nossa bela criação.
Nesse sentido, fazer um trekking
como a Travessia Petrópolis-Teresópolis tem o grato benefício, dentre muitos
outros, de ser uma oportunidade de desconexão desse insaciável mundo virtual
que nos rodeia insistentemente. Avisa-se aos mais próximos que se vai estar “fora
do ar” por três dias, desliga-se o aparelhinho e, de repente, estamos de volta
ao mundo in natura.
Às seis horas da manhã do dia 1º
de agosto, uma quinta-feira, o Felipe e eu desembarcávamos na rodoviária de
Petrópolis, após uma incômoda noite espremidos e sacolejando nas poltronas
do ônibus que nos trouxe das longínquas terras de São Paulo e Curitiba.
Pegamos um táxi em direção à
portaria do Parque Nacional Serra dos Órgãos e devo dizer que, embora devesse
ser apenas uma rápida viagem ao início do nosso objetivo, foi um tanto
caricatural: o carro saiu e o alarme do cinto de segurança não parava de
apitar. Quem estava sem o tal
equipamento de segurança era o nosso animado motorista, que logo nos tranquilizou
dizendo que “vai parar de apitar daqui a pouco” (mesmo ele não colocando o
bendito cinto). Adotando um estilo de condução esportiva, com o rádio ligado em
alto volume numa estação de notícias local, que transmitia as últimas novidades
do cenário nacional meio que em tom de piada, não pude deixar de achar certa
graça na situação, de tão inusitada. O Rio de Janeiro tem mesmo um jeito de ser muito particular.
Tendo sobrevivido sem traumas à peculiar
etapa do táxi, chegamos à portaria do Parque por volta das sete e quinze da
manhã. A sugestão do trekking partira do Felipe, algumas semanas antes, e,
nesse ínterim, vínhamos nos preparando e estudando o percurso que nos propusemos
a fazer.
Eu já fiz essa caminhada onze anos atrás, com o estimado amigo D’Ângelo, e tenho ainda muito boas
lembranças dessa experiência.
Esse percurso é considerado por muitos como o mais belo trekking de
montanha do Brasil (ainda que esse tipo de classificação seja sempre um tanto
controversa). Atravessa a Serra dos Órgãos de uma cidade à outra, e pode ser
feita tanto no sentido que estávamos fazendo quanto no inverso.
Mapa geral da travessia:
em vermelho: 1º dia
em azul: 2º dia
em amarelo: 3º dia
Há diversas formas, estilos e
ritmos de percorrer esse caminho, que, em distância, soma cerca de 30 km. A
forma mais tradicional, digamos assim, era a que estávamos adotando: fazê-lo em
três dias, com dois pernoites em acampamentos na montanha, levando nossa
autonomia de comida e equipamentos na mochila.
Não se deve enganar pela
distância aparentemente curta do trajeto, pois a altimetria acumulada é
bastante significativa, tornando a progressão bastante lenta e desgastante,
justificando, dessa forma, a divisão em três etapas diárias, permitindo assim
que sobre tempo e disposição para a devida contemplação das lindas paisagens do
caminho.
Após fazer os devidos registros
de entrada na portaria do Parque, demos os primeiros passos montanha acima às
oito da manhã. Esse primeiro dia é marcado por uma longa e agressiva subida
que, no final das contas, soma mais de 1.200 m de ascensão.
O Felipe preenchendo os formulários de entrada no Parque
Portaria do Parque em Petrópolis
(... e o guarda parque conectado no mundo virtual)
[crédito da foto: Felipe]
O desgaste da viagem de ônibus (desde
as 15 horas do dia anterior) e da noite mal dormida rapidamente se dissipou ao
primeiro contato com aquele belo ambiente natural. Apesar do natural incômodo
inicial da pesada mochila castigando as costas e os ombros, respirar ar puro,
sem barulho em volta, e realizando uma atividade tão simples é uma
bela combinação de elementos.
Aos poucos fomos entrando no
ritmo, ganhando altura e deixando o mundo dos mil afazeres pra trás.
O dia estava perfeito: aquele sol
tímido despontando aos poucos por entre as poucas nuvens e as várias encostas
de montanha, temperatura agradável e um convidativo céu azul como pano de
fundo.
Chegando ao Abrigo e camping do Açu
Por volta das 13 horas
alcançamos o local conhecido como Castelos do Açu, onde existe um abrigo de
montanha mantido pela administração do Parque (uma casa com alojamento, cozinha
e banheiro), próximo ao qual montaríamos nosso acampamento desse dia. É um belo
recanto! Não tanto pela beleza cênica em si, que também é apreciável, mas
principalmente pelo contexto da situação: o sagrado silêncio em volta, a
distância da civilização, o fato de não ter quase ninguém por perto, o amplo
azul do céu sobre um mar de montanhas a perder de vista.
Montamos nossas barracas, fizemos
um lanche a título de almoço e em seguida recolhemo-nos para um breve e muito bem
vindo descanso.
No meio da tarde saímos para uma
caminhada sem pressa pelas redondezas, que emendamos com a subida a uma elevação
próxima, onde nos sentamos pra esperar e apreciar o pôr do sol que já se
aproximava. Verdadeiro espetáculo, contemplado em agradável silêncio e
reverência.
Castelos do Açu
Pôr do sol (17:33 h)
(17:36 h)
Implementar essas brincadeiras dá
certo trabalho, mas nessas horas a sensação de que vale a pena é tão
arrebatadora que funciona como um impulso de ânimo que deixa aquele sentimento
leve de estar no lugar certo, na hora certa, fazendo o que devia ser feito.
No começo da noite preparamos
nosso jantar (básico: macarrão com atum) em nossos fogareiros, junto ao nosso
acampamento, na simplicidade dos elementos que trazíamos em nossas mochilas.
No segundo dia acordamos bem cedo
a fim de apreciar o nascer do sol, que agora despontava a leste, sobre um manto
de nuvens e névoa que chegava a parecer irreal, tamanha a beleza.
Nascer do sol (06:25 h)
Interessante também, nessas
situações, a percepção do tempo que nossa consciência assume. Primeiro há uma
sensação de distanciamento do passado recente muito maior do que ocorre de
fato, ou seja, parecia que estávamos ali há muito mais do que apenas 24 horas.
Há também uma percepção diferenciada do normal em relação ao dia que começa:
como não há compromissos com horários marcados nem várias tarefas a serem
desempenhadas (a não ser caminhar e chegar no próximo acampamento), a mente se
molda a essa perspectiva simplificada de atividade a ser realizada, e devo
dizer que há um enorme prazer nesse formato. Tudo o que é preciso fazer é
desmontar a barraca, arrumar a mochila e caminhar por algumas horas até o
próximo destino, cuidando pra se manter na trilha nesse percurso. Não será necessário
negociar nada com ninguém, comprar nada, atender nenhuma ligação nem tomar nenhuma
grande decisão – pelo menos por hoje.
Assim, tomamos nosso café da
manhã com calma, arrumamos nossas coisas e colocamo-nos a caminho.
O percurso desse segundo dia seguia subindo e descendo grandes encostas de elevações, ora atravessando pequenos trechos de mata nos vales, ora elevando-se aos cumes ou esgueirando-se à beira de pequenos precipícios.
O percurso desse segundo dia seguia subindo e descendo grandes encostas de elevações, ora atravessando pequenos trechos de mata nos vales, ora elevando-se aos cumes ou esgueirando-se à beira de pequenos precipícios.
O visual realmente é belíssimo, fazendo
justiça aos que o consideram um dos mais belos cenários de montanha do Brasil.
Dos pontos mais altos é possível ver, a leste, a sequência de picos que se
alinham como os tubos de um órgão musical, originando-se daí o nome da Serra.
[crédito da foto: Felipe]
Trecho de escada conhecido como "elevador"
[crédito da foto: Felipe]
Felipe exercitando suas habilidades de escalador
Em determinado ponto, já próximo
da parte final, atingimos uma passagem conhecida como “cavalinho”, que é uma
pedra protuberante ao lado de uma encosta vertical que se abre para o vazio
muitos metros abaixo. Passamos sem dificuldade, mas realmente requer certa
atenção, pois um descuido ali pode custar caro.
Chegamos ao nosso local de
acampamento desse dia por volta das 13:30 horas. Novamente o camping ficava ao
lado de um abrigo mantido pela administração do parque. Vale destacar que só é
permitido acampar nesses locais pré determinados, e que a entrada no Parque segue
uma série de regras de controle, como, por exemplo, a limitação da quantidade
diária de visitantes. Por isso é preciso agendar a atividade que se pretende
realizar várias semanas antes, através do site da administração, pagando as devidas taxas de acesso, sem direito a devolução ou
mudanças.
Nesse segundo dia caminhamos o
dia inteiro sem encontrar ninguém. Fomos encontrar outros montanhistas já na
área do abrigo da Pedra do Sino, aonde acampamos. Nesse local havia vários
grupos que tinham subido de Teresópolis, pernoitariam no abrigo e desceriam no
dia seguinte.
Descansamos um pouco à tarde e
por volta das cinco horas saímos para mais uma caminhada até o topo da Pedra do
Sino, distante cerca de meia hora de onde estávamos. Do seu cume é possível
avistar, ao longe, o contorno da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, e ao
redor e mais próximo, os aglomerados de construções das cidades serranas da
região. Sem dúvida, é um belo visual. O pôr do sol, no entanto, foi
prejudicado, em função de muitas nuvens que se acumulavam a oeste, confirmando
a prevista mudança de tempo que se aproximava.
Pedra do Sino. Ao fundo, a Baía de Guanabara
Pôr do sol (17:29 h)
Muito bom esse ritmo de trilha de
dormir cedo e acordar cedo. Às 20 horas já havíamos concluído nosso jantar e
então só nos restava o aconchego de nossas barracas e de nossos sonhos.
No sábado acordamos novamente de
madrugada e retornamos ao cume da Pedra do Sino pra tentar ver o nascer do sol.
No entanto o tempo estava bem fechado, com muita neblina, e infelizmente não
foi possível apreciar o espetáculo que deve ser o sol nascendo no horizonte
visto de um local como aquele.
Nascer do sol, dentre a névoa (06:33 h)
Retornamos, preparamos nosso
desjejum com bastante calma e, em seguida, iniciamos a desmontagem do nosso
acampamento para iniciar o último dia da nossa travessia. Nesse curto intervalo
o tempo fechou completamente, com a neblina bem espessa circulando ao nosso
lado. A visibilidade caiu para não mais do que 15 metros, mas considerando que
a trilha desse último trecho era muito bem demarcada, não era algo que
preocupasse. Se tivéssemos tido essas condições no dia anterior, teria sido bem
complicado.
Nessa última etapa a paisagem se transformou
totalmente, com praticamente o percurso todo em descida e a trilha
desenvolvendo-se em meio a uma bela mata de densa vegetação. No decorrer do
trajeto, a neblina virou uma chuva fininha, o que conferiu ao ambiente aquele
aspecto de mistério e de silêncio ainda mais profundo. Em certos pontos parecia
que estávamos em uma floresta dessas que se vê em filmes dos tempos medievais.
Por volta do meio dia atingimos o
fim da trilha na sede do Parque em Teresópolis, extremamente satisfeitos por
mais uma “missão cumprida”.
De lá ainda fomos caminhando mais alguns quilômetros até a cidade, onde desmobilizamos e nos preparamos para o retorno às nossas casas.
De lá ainda fomos caminhando mais alguns quilômetros até a cidade, onde desmobilizamos e nos preparamos para o retorno às nossas casas.
Um dos temas sobre o qual
conversamos bastante nesses três dias foi essa questão logística em um
trekking como esse, o que se constitui, em última análise, no que levar e o que
não levar, pesos e volumes, necessidades e confortos, e nos detalhes técnicos
dos equipamentos que se utiliza. O Felipe é um entusiasta e excelente
pesquisador desse tema, e tem razão em sê-lo, porque é dos mais relevantes em
qualquer tipo de expedição.
Existem inúmeros argumentos a
favor e contra as duas linhas principais de como pensar e fazer esse tipo de
atividade: a minimalista e a totalmente equipada. Não vou entrar em detalhes
desse debate aqui, neste momento, mas vale lembrar da questão a fim de deixar
claro que existem diversas formas de percorrer o mesmo caminho. No entanto, não
há formas certas e erradas. O que há, talvez, são maneiras mais e menos
eficientes, e aí a conversa fica interessante.
No final das contas cada caminho,
cada saída dessa, cada pequena experiência soma um pouquinho mais de
conhecimento e prática, e assim vamos aperfeiçoando e tentando achar o nosso
melhor set up.
Mas uma caminhada dessa vai muito
além das questões práticas que a envolvem, é lógico. Não é nada extraordinário,
mas ainda assim requer a ativação de algumas capacidades e gerenciamento de
algumas situações.
De certa forma, talvez um dos
prazeres dessa vivência seja justamente a sua mais autêntica simplicidade e a oportunidade
de afastamento do mundo cotidiano e de suas inúmeras e cansativas opções e
demandas.
Às vezes fico pensando sobre isso
e me parece que ao mesmo tempo em que criamos uma sociedade que tem muito a nos
oferecer em termos de acesso e confortos, tudo tem seu preço, nem que seja o
tempo e a energia necessários para usufruir disso tudo. E o simples fato de ter
muita opção já é uma condição estressante por si mesma.
Por isso sair para um
passeio desse é tão bacana: por um tempo definido (nesse caso, três dias) tudo
que se tem a fazer é caminhar, alimentar-se da comida que você mesmo carrega e
observar o mundo e a si mesmo.
E aí, vamos juntos?
*** *** ***
Primeiro dia
(1.233 m de ganho de elevação/ 152 m de perda de elevação)
Segundo dia
(739 m de ganho de elevação/ 740 m de perda de elevação)
Terceiro dia
(24 m de ganho de elevação/ 1.178 m de perda de elevação)
*** *** ***
- Meu muito obrigado mais uma vez ao amigo e parceiro Felipe Amante. Relações de confiança se constroem nas provações. Que venham outras!
- Aos amigos Guilherme Gardelin e William, que participaram dos planejamentos iniciais e tinham intenção de fazer a travessia conosco, mas tiveram problemas pessoais de última hora que os impediram, espero contar com suas presenças nas próximas. Força Sempre!
*** *** ***
"Agir, eis a inteligência verdadeira.
Serei o que quiser..
Mas tenho que querer o que for.
O êxito está em ter êxito,
e não em ter condições de ter êxito."
(Fernando Pessoa)
Gratidão
Força Sempre