Va'a Barra Grande - Boipeba, 2019
100 km em Canoa Havaiana, em 4 dias, no litoral da Bahia
100 km em Canoa Havaiana, em 4 dias, no litoral da Bahia
* participação na expedição organizada
por Alexandre Manzan e Marcelo Bosi,
por Alexandre Manzan e Marcelo Bosi,
na companhia de Bernardo, Carina, Guilherme, João Pedro,
Márcia, Mariana e Tatiana
No
final da tarde do dia 6 de fevereiro, uma quarta feira, me vi desembarcando no píer
da pequena cidade de Barra Grande, na Bahia, depois de um longo dia de viagem que
incluiu duas enfadonhas pernadas de avião, duas horas de carro e trinta minutos
de lancha. Não obstante o cansaço da jornada, naquele momento senti aquele
choque cultural revigorante típico dessas mudanças bruscas que só as viagens
são capazes de nos proporcionar.
Saí
de Curitiba de manhã cedo debaixo de um céu cinzento e chuvoso e, agora, ali
estava a Bahia, na sua melhor forma: ruas de areia, pessoas andando descalças,
céu azul, coqueiros com suas folhagens dançando ao vento, casinhas simples e
simpáticas a cada esquina.
Estava
ali pra participar de uma expedição de quatro dias remando canoa havaiana pelas
praias e estuários da região, proposta pelo amigo Alexandre Manzan, de
Brasília.
Logo
mais, no começo da noite, encontrei-me com os demais membros do grupo pra
compartilhar uma pizza. Ao todo éramos dez pessoas, sendo quatro mulheres. O
capitão da embarcação que remaríamos era o Marcelo Bosi, morador local, oriundo
de Brasília, e também, juntamente com o Manzan, organizador da empreitada.
Senti
que o grupo teve uma boa sintonia. As meninas já se conheciam de remar juntas
em Brasília, onde o Marcelo conduziu, por algum tempo, uma escola de remo Va’a
(como também é conhecida a Canoa Havaiana). Isso já deu ao grupo uma identidade
base.
O
dia seguinte foi dedicado aos ajustes finais de equipamentos e logística.
Aproveitando o cenário inspirador, no meio da manhã saí pra uma corridinha na
praia na companhia dos colegas de expedição.
No
final da tarde tive meu primeiro contato com a canoa. Reunimo-nos na praia para
fazer um briefing da viagem e o Marcelo me deu uma instrução básica sobre essa
que era, para mim, uma nova modalidade de remo. Aproveitamos que estávamos
reunidos e fizemos uma remada de uns trinta minutos, pra ver como o grupo se
adaptava à dinâmica.
Utilizaríamos
duas canoas, uma para seis pessoas (OC 6) e uma para quatro (OC 4), unidas por
duas travessas de madeira amarradas com tiras elásticas, formando, assim, uma
espécie de catamarã.
Pra
mim era uma completa novidade remar esse tipo de embarcação, e, por isso,
tinha, naturalmente, dúvidas sobre como me adaptaria à demanda: será que
estaria à altura do esforço físico exigido? Será que me adequaria bem à
dinâmica da remada em grupo? E o balanço do mar?
A ideia era fazermos uma viagem no estilo expedição,
de forma autônoma (sem barco de apoio), percorrendo em torno de 100 km de mar e
estuários nos próximos quatro dias, pernoitando em praias desertas e vilas de
pescadores pelo caminho. Os planos eram inspiradores, mas como seria a
realidade dos fatos?
A turma reunida
(Crédito da foto: Manzan, no timer)
(Crédito da foto: Manzan, no timer)
Em
função do estudo da maré e dos ventos predominantes na região, o Manzan e o
Marcelo marcaram a saída para as seis horas da manhã do dia seguinte. Para isso,
pouco depois das cinco estávamos na praia, carregando o material e fazendo os
ajustes finais.
Antes
de partir, reunimo-nos em círculo e o Marcelo conduziu uma concentração para o
início da jornada. Com o sol nascendo no horizonte, uma brisa suave acariciando
nossos rostos e as ondas do mar ali do lado a entoar aquele marulhar sagrado,
foi um belo momento, em que se percebia a excitação e a sintonia de cada um
pelo que estávamos prestes a iniciar.
Remos
n’água! Partimos. O Marcelo, como capitão do barco, ficou no leme, no último
assento da OC 6, de onde conduzia a direção a ser seguida e fazia constantes
observações sobre o ritmo e técnica da remada. Do meio da embarcação outro
remador se encarregava de ditar o ritmo das mudanças de lado da remada, que
acontecia a um ciclo de dez a doze repetições.
Muito
bacana essa dinâmica. Além do ato de remar em si, era necessário sentir o
impulso do barco à frente a cada apoio dos remos na água, e movimentar o corpo
em sintonia com essa energia. É uma atividade que requer alto nível de
concentração. Não há conversas entre os remadores e a atenção não pode ficar
dispersa.
Comparando
com o caiaque, com o qual tenho um pouco de experiência, há grandes diferenças:
a posição parece um pouco mais confortável, pois senta-se num ângulo mais
natural e o espaço para movimentar as pernas não é tão apertado; a mecânica da
remada parece ligeiramente mais amigável, talvez pelo fato de ser um trabalho
em grupo, o que dá uma consciência de inércia mais animadora; a necessidade de
concentração é bem maior, pois qualquer distração compromete o ritmo do grupo
ou mesmo o momento certo de entrar com o remo na água. No final das contas,
cada modalidade tem suas virtudes e exigências próprias.
A
pernada prevista rendeu muito bem. Cumprimos os 27 km até nosso destino do dia,
uma vila de pescadores na Ilha de Boipeba, sem desembarcar, em pouco mais de
três horas.
O
restante do dia foi empenhado em conversa fiada, reidratação, alimentação,
descanso e, no final da tarde, uma caminhada ao alto de um morro próximo pra
contemplar a paisagem e o belo pôr do sol sobre o horizonte distante.
Pernoitamos numa pousadinha local, com uma sútil sensação de que o mundo todo
balançava levemente pra lá e pra cá, no ritmo da canoa.
Igrejinha na Vila de São Sebastião, onde pernoitamos na primeira noite
Sintonia boa com a natureza
No
segundo dia da expedição contornaríamos toda a Ilha de Boipeba pelo estuário
que a circunda, e para tentar nos adequar ao ciclo da maré enchente e vazante
nesse sistema, acordamos cedo e às sete horas já estávamos com o barco na água.
Pouco depois entramos no estuário e o ambiente em volta mudou totalmente.
Superfície lisa, calmaria ao redor e margens próximas. A maré, no entanto, não ajudou,
conforme se esperava. Estava de neutra a levemente contra.
Às
onze horas paramos num barco-plataforma ancorado no meio do rio e desembarcamos
para degustar ostras frescas e água de coco gelada. Paradinha bem revigorante.
Umas
três horas depois deixamos o estuário pra trás e retornamos ao balanço do mar,
junto à Vila de Velha Boipeba. As praias que se seguiram pareciam cena de
filme. Águas ora transparentes, ora verde-esmeralda, temperatura
agradabilíssima, coqueiros a perder de vista na costa e um céu perfeitamente azul
sobre nós. Uma bênção.
No
começo da tarde paramos numa praia um tanto movimentada pra descansar um pouco
e, aproveitando a oportunidade, almoçamos uma deliciosa lagosta grelhada no
restaurante local, com direito a música ao vivo e aquela sensação de se sentir
em outro planeta.
Como
estávamos próximos do destino previsto para o dia, retornamos aos remos sem
pressa, e fomos aproveitando as piscinas naturais do caminho, com mergulhos
ocasionais naquelas águas incrivelmente cristalinas. A certa altura encontramos
um barco de pescadores e o Bernardo, um dos nossos colegas, negociou a compra
de um belo dourado, com planos de prepara-lo para o jantar.
Por
volta das cinco da tarde chegamos ao Pontal do Bainema, onde pernoitaríamos. O
local era uma praia isolada do vilarejo mais próximo e contava com a estrutura
de um bar, camping e banheiros, além da calorosa receptividade dos cuidadores
do lugar.
Embalados
por boa música e boas vibrações, montamos nosso acampamento e dedicamos as
horas seguintes a bater papo e curtir a peculiar paz daquele cantinho do
planeta.
O
Bernardo empenhou-se em preparar e assar o seu dourado em folhas de bananeira na
fogueira, que foi degustado por todos mais tarde, com indisfarçável entusiasmo, acompanhado de vinho branco, queijos, azeitonas e
outros petiscos que apareceram na hora.
Sentamo-nos em volta da fogueira, depois do jantar, pra trocar ideias sobre os temas
propostos pelo Manzan para a viagem – o idílico conto “Walden”, de Henry David
Thoreau, e a emblemática expedição de Shackleton à Antártica, em 1914.
Essa
combinação de fatores fizeram dessa uma noite realmente muito especial. É
difícil ficar melhor do que isso...
Mais
tarde, entretanto, toda a euforia do momento foi desafiada quando o Bernardo
teve um inusitado acidente com um copo quebrado, que caiu sobre o seu pé num
ângulo exato para provocar um profundo corte sobre um dos seus dedos. Passado o
susto inicial, verificou-se que a extensão do ferimento demandava uma sutura,
caso contrário poderia causar uma inflamação no local ou, no mínimo, uma
inconveniente dificuldade de cicatrização.
Isso
seria um problema num local isolado como aquele, se não contássemos com as habilidades
cirúrgicas do nosso líder de expedição, Manzan, que prontamente sacou seu kit
de primeiros socorros padrão profissional e se dispôs a dar os pontos
necessários no pé do nosso amigo. Tarefa essa cumprida no balcão do barzinho
local, com atenta plateia, algumas cervejas e uma bela lua por
testemunha. No final deu tudo certo.
No
dia seguinte, refeitos do choque do momento e comentando o acontecido,
perguntaram ao Manzan onde ele tinha aprendido a fazer sutura. “É
que leio muito” – foi sua resposta, que arrematou de vez a proeza do ousado procedimento
da véspera.
O
clima de festa da noite anterior custou-nos certo tempo pra engrenar as coisas
na manhã seguinte. Somente às onze horas da manhã colocamos os remos n’água,
retomando nossa viagem.
Pontal do Bainema, visto pelo Mavic
Nascer do sol
Caminhada à vila de Moreré, na manhã do terceiro dia
Cerca
de quarenta minutos depois um forte estalo tirou todos da profunda concentração
em que nos encontrávamos. De imediato percebemos que algo havia quebrado. Uma
rápida inspeção nos mostrou que uma das hastes que unia as duas canoas havia
rompido. Por sorte, foi bem embaixo de um ponto de amarração, o que evitou uma
possível desestabilização da embarcação.
Estávamos
bem distante da costa e numa situação de mar não muito tranquila, digamos
assim. O Marcelo e o Manzan agiram rápido e fizeram uma nova amarração na haste
danificada, aliviando a parte que quebrou do esforço que se submetia a ela.
Assim
tocamos mais meia hora até uma praia próxima, onde paramos pra fazer um
conserto mais firme e eficiente. O pequeno incidente serviu para nos alertar
que estávamos em uma embarcação que exercia um constante esforço pra se
contrapor às forças também constantes do mar em volta, e que nesse tipo de
ambiente não se pode descuidar em momento algum, sob pena de se ver numa
eventual enrascada de uma hora pra outra.
No
começo da tarde iniciamos uma longa travessia, distante da costa, até uma ilha
que, inicialmente, nem víamos de onde estávamos. Foram quase três horas sobre
um mar turbulento, chacoalhando incessantemente, com aquela sensação de não
sentir o progresso do barco.
Mas
aos poucos fomos vencendo a longa distância e acabamos chegando à Ilha de
Quiépe, aonde fizemos uma rápida parada técnica e, em seguida, rumamos para o
nosso destino do dia.
No
final da tarde, já com o sol adernando no horizonte, entramos num pequeno rio e
poucos metros depois chegamos a um verdadeiro oásis, uma casa situada num lugar
isolado e paradisíaco, cuja moradora, Andréa (previamente avisada), nos recebeu
super bem e nos deixou totalmente à vontade.
Contou-nos
histórias de sua vida pessoal, em extensas e animadas conversas, e mais tarde
preparou-nos uma iguaria finíssima, polvo grelhado de entrada, com risoto de
polvo como prato principal (e ainda pudim de leite como sobremesa). Foi a chave
de ouro de um dia longo e fisicamente cansativo. Todos se recolheram cedo às
barracas, montadas em volta da casa, para uma merecida e silenciosa noite de
sono.
Capelinha na casa da Andréa, onde pernoitamos
No
quarto dia da expedição retornaríamos a Barra Grande, nosso ponto de saída.
Como estávamos a aproximadamente apenas dez quilômetros do nosso destino,
acordamos sem pressa e fomos arrumando as coisas aos poucos. Às dez horas
despedimo-nos da nossa anfitriã, declaradamente emocionada com a nossa visita,
e colocamo-nos no nosso caminho.
O
trajeto, por dentro da baía de Camamu, não exigiu maiores esforços. Pouco
depois das onze horas estávamos de volta ao nosso ponto de saída, na praia de
Barra Grande. Missão cumprida!
Pequena ilha no meio da baía de Camamu
Reunimo-nos
novamente em círculo pra agradecer pela sorte de termos podido fazer aquilo a
que nos propusemos, e por estarmos todos bem. É indescritível a sensação de
satisfação em concluir uma expedição como essa. Sob todos os aspectos foi muito
bacana!
A
Bahia realmente tem uma personalidade muito marcante e cativante. Pra usar um
termo popular nos dias atuais, é uma terra “good
vibes”, que nos faz relembrar que não adianta mesmo correr freneticamente de
um lado para o outro, em busca sabe-se lá de que, e que tudo de que precisamos,
muitas vezes, nós já temos. O que é necessário é diminuir o ritmo pra perceber e
aproveitar.
Cabe
destacar ainda o cuidadoso trabalho do Alexandre Manzan e do Marcelo Bosi em
organizar essa expedição e proporcionar a nós, que nos dispusemos a participar,
toda a infraestrutura, segurança e conhecimento necessários para que
entrássemos apenas com a disposição em remar e curtir a trip. Assumir a responsabilidade de conduzir uma expedição como
essa não é pra qualquer um.
Vale ressaltar também a admirável habilidade e paixão do Manzan em montar e executar a expedição, indo muito além do processo meramente organizativo. Sua
preocupação em compartilhar e ensinar técnicas de orientação com bússola e em
propor e discutir temas filosóficos nos vários momentos de conversa atestam que
esse tipo de viagem é muito mais do que apenas percorrer um roteiro ou cumprir
uma meta. É, em essência, uma lição de vida.
A interação entre os colegas de expedição e com moradores locais foi também um ponto alto desses dias especiais que passamos aconchegados à mãe natureza. Trocar ideias e experiências, bater papo furado, rir de brincadeiras inocentes, respeitando cada um, é uma vivência que não tem preço.
Bom demais.
A interação entre os colegas de expedição e com moradores locais foi também um ponto alto desses dias especiais que passamos aconchegados à mãe natureza. Trocar ideias e experiências, bater papo furado, rir de brincadeiras inocentes, respeitando cada um, é uma vivência que não tem preço.
Bom demais.
Pôr do sol na praia de Barra Grande
Observações:
* Meu muito obrigado a todos os amigos que participaram dessa expedição, pela companhia, pelos bons momentos, pela disposição de viver a vida com plenitude. Aloha!
* Para conhecer os projetos realizados e acompanhar o Manzan, visite o site: http://www.alexandremanzan.com.br/
* O que é Canoa Havaiana!?: https://www.sestaro.com.br/o-que-e-canoa-havaiana/
* Em breve adicionarei aqui um pequeno vídeo da expedição (aguardando a devida edição).
* Para conhecer os projetos realizados e acompanhar o Manzan, visite o site: http://www.alexandremanzan.com.br/
* O que é Canoa Havaiana!?: https://www.sestaro.com.br/o-que-e-canoa-havaiana/
* Em breve adicionarei aqui um pequeno vídeo da expedição (aguardando a devida edição).
Carta topográfica preparada pelo Manzan
Dia 1: Barra Grande a Vila de São Sebastião
Dia 2: Vila de São Sebastião a Bainema
Dia 3: Bainema a Ilha dos Tubarões
Dia 4: Ilha dos Tubarões a Barra Grande
(Dados de GPS gravados pelo João Pedro)
"Fui para o bosque porque desejava viver deliberadamente,
defrontar-me apenas com os fatos essenciais da vida,
e ver se podia aprender o que ela tinha a ensinar-me,
em vez de descobrir à hora da morte que não tinha vivido.
Não desejava viver o que não era vida,
sendo a vida tão maravilhosa,
nem desejava praticar a resignação,
a menos que fosse de todo necessária.
Queria viver em profundidade e sugar todo o tutano da vida."
(Henry David Thoreau)
Força Sempre
Gratidão