Talvez
uma das mais necessárias tarefas a desempenharmos ao longo da vida seja manter
a capacidade de nos encantar com os caminhos que percorremos, com as pessoas
que encontramos, com os desafios que surgem inevitavelmente no nossa jornada. Que
consigamos manter esse brilho no olhar e essa inquietação na alma que nos leva
à ação, à busca, e, esperamos, a descobertas enriquecedoras.
E
qual será a fórmula pra manter essa equação funcionando? Penso que um dos
ingredientes é justamente a ação, estar no caminho, permanecer em busca do pote
de ouro no final do arco-íris. A teoria, qualquer que seja, distorce nossa
percepção da realidade e nos incita a permanecer indefinidamente nesse
labirinto sem saída do campo das ideias.
O
“problema” é que a realidade é dura, multifacetada e não se sujeita às nossas
vontades e planos. Como diz aquele ditado: na prática, a teoria é outra.
Planejei
essa pequena viagem, portanto, pra praticar algumas ideias que vivem a bater às
minhas portas mentais. A ideia principal era dar uma rodada de moto, e,
aproveitando a saída, tentar dar uma desconectada do ambiente urbano usual.
Montei
um roteirinho passando pela simpática e bucólica região das serras catarinense
e gaúcha, prevendo ainda pernoitar em campings nas três paradas do percurso.
Saí
de casa na manhã de uma quarta-feira, com tempo bom, céu azul entre nuvens e
temperatura amena. Seguindo pela BR 101 no sentido sul, curtindo a solitude do
meu capacete, fui acometido por uma repentina sensação de desolação, fruto da
extração abrupta do meu mundo cotidiano.
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["Solitude é o estado de privacidade de uma pessoa, não significando, propriamente, estado de solidão. Pode representar o isolamento e a reclusão, voluntários ou impostos, porém não diretamente associados a sofrimento. Uma distinção foi feita entre solitude e solidão. Nesse sentido, essas duas palavras se referem, respectivamente, à alegria e à dor de estar sozinho.[1][2][3]
Solitude pode ser usada positivamente para adicionar oportunidades de meditação, concentração, introspecção ou oração individuais e alcançar um estado de paz e consolo."] (Fonte: wikipédia)
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Querendo
ou não, vamos nos acostumando com as coisas ao nosso redor, com as pequenas
rotinas, com os mesmos caminhos e pessoas que encontramos todos os dias, e
deixar tudo isso de lado meio de repente sempre causa esse desconforto já
conhecido nessas situações.
No
meio da tarde cheguei à cidadezinha de Bom Retiro, no estado de Santa Catarina,
às margens da BR 282, e me embrenhei pelas estradinha de terra da região em
busca do local de acampamento que havia previsto conhecer, ao qual cheguei ao final de uma
íngreme subida, no alto de uma grande elevação.
Alguns
cachorros me deram as boas-vindas, meio me saudando meio querendo me morder. Em
seguida apareceu o mentor do local, João, que me cumprimentou alegremente, me explicou
como funcionavam as coisas e me deixou à vontade. Com
era um dia de semana, havia apenas eu de hóspede no espaço.
Conheci
esse camping através das redes sociais. O casal João e Daia, e o pequeno
Antônio, de dois anos de idade, desenvolvem ali um modelo de vida baseado na
simplicidade, no baixo consumo e no aprendizado dos processos de construção da
própria casa, criação de animais e plantio de horta e pomar pra consumo
próprio. Além de terem à disposição um belo visual e um silêncio encantador
como pano de fundo para suas tarefas diárias. Desnecessário dizer o quão inspirador
é um projeto de vida como esse.
No
final da tarde dei uma caminhada pelas redondezas, surpreendendo-me com
cenários belos e inesperados à espera de um olhar disponível à contemplação.
À
noite o sono foi embalado pelo aconchego da barraca e pela sensação boa de se
sentir um tanto isolado. Caíram alguns pingos de chuva e fez um friozinho
gostoso.
Acordei
cedo e não resisti à tentação de aproveitar aquele belo cenário pra sair pra
uma corridinha, e assim aquecer as articulações e dar uma relaxada nos
sistemas. Acontece que estava no meio de uma encosta de um enorme morro, e não
havia nada plano em volta, de tal forma que o rápido passeio foi um tanto
radical em termos de altimetria.
Na
volta bati um bom papo com o jovem casal organizador do espaço, em que me
contaram um pouco de sua história de vida, de seus planos para o futuro e de
sua visão de mundo. Essas conversas são sempre muito ricas, porque nos mostram
outros modelos de vida, outras possibilidades, outros mundos, e, quem sabe, até
deixem algumas sementinhas jogadas na nossa psique.
Assista no link abaixo:
No
meio da manhã coloquei o pé na estrada em direção ao destino pretendido do dia,
a simpática Urubici, distante cerca de 100 km de onde estava.
Cheguei por lá na
hora do almoço, comi alguma coisa em um restaurantezinho local e, como ainda
era cedo, resolvi fazer uma caminhada em meio à mata pra conhecer a Cascata do
Avencal – uma bela queda d’água de 100 m de altura – por uma trilha que chega
até o local onde ela chega ao solo. Cenário inspirador para uma tarde
ensolarada como aquela!
No
meio da tarde dirigi-me ao camping Terras do Sul, situado no fundo de um belo
vale, onde já havia ficado em uma outra ocasião. Montei minha barraquinha e
dediquei o finalzinho da tarde pra apreciar o silêncio e a paz do lugar.
Mais
tarde fiz um jantarzinho com os apetrechos que tinha, na companhia de um céu
absolutamente estrelado e ninguém em volta. Dormi um sono profundo e tranquilo.
O
terceiro dia amanheceu envolto em uma densa névoa, dando certo ar de mistério à
paisagem circundante, com o Rio do Bispo correndo vigoroso ali do lado. Pouco a
pouco, porém, foi se dissipando, revelando um animador céu azul quase sem
nuvens a criar um belo contraste com o verde da vegetação.
Saí
para uma corridinha pelas redondezas, com o coração leve e as pernas nem tanto,
em função da brincadeira do dia anterior. Correr num cenário como aquele, numa
hora como aquela, é um verdadeiro exercício de integração e de meditação ativa.
Poucas atividades são tão simples e tão gratificantes como a corrida.
Voltei
revigorado pelo fluxo de energia pensando em arrumar minhas coisas e partir
mais ou menos logo para o destino do dia, que envolveria um trecho razoavelmente
longo de estrada de terra, e por isso seria bom faze-lo com folga de tempo.
Mas
enquanto desmontava a barraca e ajeitava as coisas, o Dani, dono do terreno e
mentor do espaço, aproximou-se e puxou assunto. Quase sem perceber conversamos
sobre diversos assuntos por cerca de uma hora. Na sequência chegou ao local
onde estávamos um rapaz do Rio de Janeiro, que estava trabalhando ali como
gerente do hostel, como breve intervalo em uma viagem de bicicleta na qual
pretendia chegar até Ushuaia, no extremo sul do continente. Mais bate papo e
troca de experiências e impressões. Quando vi, já era quase onze horas da
manhã!
Terminei
de organizar minhas coisas e coloquei a GS de volta à estrada, com a intenção
de continuar seguindo ao sul. Fui até a cidadezinha de Bom Jardim da Serra, em
um trecho de estrada absolutamente maravilhoso, ladeado por belas encostas,
encantadores bosques de araucárias e casinhas coloridas isoladas no meio do
nada. Já percorri esse trajeto em outras ocasiões, de carro, de bicicleta e
também de moto, e é sempre um prazer estar ali.
Parei
em um posto de serviços, abasteci e perguntei ao frentista como estava a
estrada que seguia em direção ao Rio Grande do Sul. “Tranquilo”, disse-me,
dirigindo um olhar observador à moto e ao motociclista.
Estradas
de terra são sempre uma caixinha de surpresas. Podem ser muito divertidas, mas
também podem ser fonte de dor de cabeça. Pilotar uma moto de mais de duzentos
quilos de peso, acrescida de bagagem, nessas circunstâncias, sempre exige um
pouquinho de habilidade e desapego por eventuais desgastes extras que o equipamento
pode vir a sofrer. Pesados os prós e contra, resolvi encarar a brincadeira.
A
paisagem, belíssima, e a pilotagem, um tanto tensa e muito divertida, marcaram
o trecho. Foco nos metros à frente e no equilíbrio do conjunto
moto-motociclista, mas a visão periférica captando o espetáculo de visuais bucólicos
desfilando pelos lados.
Por
volta das quatro horas cheguei à pequena cidade de São José dos Ausentes,
distante ainda cerca de 60 km de Cambará, onde pretendi pernoitar. A essa
altura o céu azul e o belo dia de sol haviam se perdido em algum ponto do
caminho, e começou a chover. Estrada de terra, chuva e moto pesada
definitivamente não é uma combinação auspiciosa. Avaliei a situação, pensei em
ficar por ali mesmo até o dia seguinte, mas acabei decidindo tocar em frente.
Vesti
a roupa impermeável e lancei-me ao caminho. Apesar do prognóstico um tanto
preocupante, deu tudo certo, e por volta das cinco e meia da tarde adentrava à
pequena Cambará do Sul, parecendo um cowboy vindo de terras distantes.
Devido
à chuva incessante, abdiquei da ideia de acampar. Dirigi-me ao Hostel Cape
Town, que também já conhecia de uma outra ocasião em que passei pela cidade, e
por lá passei a noite.
No
dia seguinte, montando a bagagem na moto para a última pernada da viagem,
conheci o Cláudio, natural de Sergipe, que, juntamente com sua companheira,
estava em uma viagem pela América do Sul a bordo de um Fusca ano 1970. Batemos
altos papos sobre seus planos, histórias da estrada, modus operandi, etc. Muito bacana a conversa e a coragem deles em
empreender um projeto como esse.
"Lindomar", o fusca do casal Fusconautas
O
primeiro trecho de cerca de 50 km, saindo de Cambará, foi novamente em estrada
de terra, a certa altura descendo uma íngreme serra, onde fica o Cânion
Malacara. E novamente sob chuva, desde a saída. Aproveitei pra usar a expertise desenvolvida no dia anterior e
encarei o percurso sem maiores sustos.
De
volta às baixas altitudes do litoral, logo estava de volta também à conhecida
BR 101. Dali era só virar para o norte e pilotar até em casa, a cerca de 600 km
de distância.
O dia rendeu bem, apesar da chuva ou chuvisco que caiu insistentemente quase o tempo todo. Às 17:30 estava de volta ao aconchego do lar, satisfeito por concluir
bem o passeio, e já pensando em quando será o próximo...
O
comportamento da BMW 1200 GS nessa viagem (assim como em todas as ocasiões) foi
impecável e impressionante. Desde estradinhas de terra bem travadas, passando por subidas e
descidas bem íngremes, buracos, pedras, estradas asfaltadas secundárias com
muitas curvas, auto estradas amplas e movimentadas, sol, chuva, enfim, em condições
diversas a moto é espetacular.
Na
volta pra casa, pela BR 101, em um trecho, fiz 295 km sem apear da montaria [sim, não tem nada demais nisso] (e só
parei porque estava com o combustível na reserva)! Isso é quase um
estado de epifania! Pilotar por longas distâncias e longos períodos tem um
prazer todo especial.
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["Epifania significa aparição ou manifestação de algo,
normalmente relacionado com o contexto espiritual e divino. Do ponto de vista
filosófico, a epifania significa uma sensação profunda de realização, no
sentido de compreender a essência das coisas. Ou seja, a sensação de considerar
algo como solucionado, esclarecido ou completo. Muitos religiosos, filósofos,
místicos, escritores e cientistas confirmam através de relatos históricos que
passaram por algumas experiências epifânicas. Etimologicamente, este termo se
originou a partir do grego epiphanéia, podendo ser traduzido literalmente como
“manifestação” ou “aparição”.] (fonte: significados.com.br)
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Cada
vez que dou essas saidinhas fico pensando que deveria fazer mais disso, e uma
hora dessas, quem sabe, sair pra dar uma volta maior. Esse é um caso que se
encaixa muito bem naquele ditado que diz que pra quem entende nenhuma explicação
é necessária, e pra quem não entende nenhuma explicação é possível.
E
mais do que paisagens e sensações motociclísticas, viajar é uma forma de tentar
expandir um pouco nossa sempre teimosa visão de mundo. Conhecer pessoas, lugares
e experiências é uma forma rica de aprendizado à qual deveríamos dar mais valor
e atenção. Fica aqui o convite.
Vamos
juntos?
Assista no link abaixo a um pequeno vídeo com algumas imagens da viagem:
Percurso realizado, 1.340 km no total
"Caminhar sem rumo é uma grande arte."
(Henry David Thoreau)