Breve relato da infecção
Retornei de uma viagem (de avião)
de uma semana a Brasília, onde fui visitar meus pais, no dia 13 de março. Dois
dias depois, subitamente, me senti ligeiramente indisposto, com uma sensação
estranha de dores musculares e aquele sentimento de que havia algo errado. Logo
suspeitei de que podia ter sido contaminado pelo famigerado Sars-Cov-2. Deixei
o dia passar e fui monitorando os sentimentos físicos. Os sintomas não
arrefeceram e não se agravaram com o passar das horas, mas tinha certeza de que
havia algo errado.
No dia seguinte fui a uma
consulta no setor de atendimentos de emergência do Hospital Geral de Curitiba
(hospital militar da guarnição), já com quase certeza de que realmente estava
com a doença. A consulta com o jovem médico tenente foi atenciosa e protocolar.
No exame clínico constatou-se que estava com os parâmetros básicos (temperatura
e oxigenação) em ordem. Me disse então que o exame laboratorial pra confirmar
ou não a suspeita do contágio somente poderia ser feito no dia seguinte,
terceiro dia dos sintomas, e o resultado só sairia mais dois dias depois (que
já seria o quinto dia de sintomas). E me recomendou voltar pra casa e ficar em
repouso, sem tomar qualquer medicação. “Se os sintomas se agravarem, volte a
procurar atendimento médico. Caso contrário, é só ficar em casa e aguardar”,
disse-me.
Na tarde desse dia “fiz uma
reunião com a minha diretoria interna” e decidi assumir que estava realmente
infectado, ainda que pudesse não estar de fato. Adotamos então, de imediato, um
protocolo de isolamento total dentro de casa. Me fechei no nosso quarto de
casal e a Mari e a Thaís restringiram ao máximo o contato comigo. Ao mesmo
tempo fiz uma análise rápida e sincera da situação, com relação à orientação
que havia recebido do médico que me atendera pela manhã em contraste com o que sabia da doença e dos possíveis tratamentos disponíveis. O ponto
crucial se mostrou claro: adotar ou não o tal do polêmico tratamento
precoce. A Mari fez contato com parentes
dela que criaram certo alarme com a situação e recomendaram imediata
intervenção medicamentosa específica. Fiz contato então com dois amigos de
confiança, solicitando indicações de médicos que pudessem me orientar a
respeito. Entrei então em contato com os profissionais indicados (via Whatsapp)
e expliquei o quadro. Um deles me disse explicitamente que não recomendava o
chamado tratamento precoce, porque, segundo ele, a evolução da doença não seria
influenciada por esses remédios. O outro me recomendou adotar imediatamente uma
série de medicamentos e se dispôs a me passar as receitas e toda a orientação
pelo celular.
Fiquei então entre a cruz e a
espada. Em que parecer confiar? O que fazer? Cabe ressaltar que esse tratamento
dito precoce só funciona se adotado nos primeiros dias de sintomas, e que, pelo
que pude avaliar nas rápidas pesquisar que fiz, poderia trazer alguns efeitos colaterais
e até eventuais riscos (como afinal, qualquer remédio). Consultei novamente
minha “diretoria interna” e resolvi adotar o protocolo de tratamento.
A Mari foi à farmácia e voltou
com uma sacola cheia de caixinhas coloridas, com pílulas, injeções, xaropes,
uma dessas maquinhas de inalação e um oxímetro de dedo. Uma parafernália. Confesso
que, não tendo nenhum costume de usar medicamentos, fiquei um tanto chocado com
a quantidade de química que estaria ingerindo nos próximos dias. Fiz até uma
tabela pra organizar os diversos horários e detalhes de ingestão das tais
cápsulas e afins.
No dia seguinte, uma
quarta-feira, o terceiro dia dos sintomas, retornei ao hospital pra fazer o
exame laboratorial pra confirmar ou não o contágio. Examezinho bem
desconfortável, com aquele cotonete sendo introduzido pelo nariz.
Os sintomas não se alteraram
muito. Continuei sentindo dores musculares generalizadas mas leves, sensação
febril sem, no entanto, apresentar de fato números de febre no termômetro, e
uma leve dor ou ardência por trás dos olhos. E de vez em quando, repetindo-se
ciclicamente, uma intensificação da sensação de indisposição.
O desconforto maior, por assim
dizer, talvez tenha sido mesmo psicológico, devido à preocupação com duas questões
principais: como seria a evolução da doença e se conseguiríamos manter a Mari e
a Thaís em segurança (bem como se já não havia se dado o contágio delas no
período anterior aos sintomas, quando não havíamos tido nenhum cuidado especial
de contato entre nós).
Com relação ao primeiro ponto,
confesso que não estava lá tão preocupado assim, devido apenas a um sentimento difuso
de confiança interna do que a qualquer fato concreto. E confiança não
exatamente em que tudo evoluiria bem, mas baseada na constatação de que não
havia muito o que fazer, afinal de contas. Acho que era mais um sentimento de
entrega do que de confiança propriamente dita. E a respeito da proteção da Mari
e da Thaís também estávamos fazendo o máximo que podíamos nas circunstâncias, e
restava então torcer para que desse certo.
Na sexta-feira, quinto dia dos
sintomas, saiu o resultado do exame laboratorial, confirmando a presença do
vírus no meu organismo.
Nos dias que se seguiram o quadro
se manteve estável. Na verdade, aqueles sintomas iniciais de dores musculares e
sensação febril praticamente desapareceram a partir do quinto ou sexto dia.
Não tive perda de paladar nem de olfato, como dizem ser comum, nem dificuldade
de respirar e nem tosse. Minha oxigenação também se manteve num patamar de
normalidade, oscilando entre 96 e 98.
Cumpri as recomendações
médicas recebidas a respeito do tratamento precoce (com alguns remédios
estendendo-se a até quinze dias de ingestão). Também não senti, de imediato,
nenhum efeito colateral relevante e evidente dessa overdose de medicamentos.
Nas semanas seguintes percebi pequenas e ocasionais alterações do processo de diurese e algumas ocorrências muito estranhas de dor de cabeça e algumas outras
pequenas anormalidades funcionais que parecem, agora, superadas.
Mantivemos fielmente nosso protocolo
de isolamento total por doze dias, sem sair do quarto, sendo tratado como um passarinho numa gaiola (rsrs...), recebendo comida e água, mas com direito a
internet, Netflix e livros à vontade. Mas não posso dizer que foi um período
produtivo ou agradável. Foi apenas sobrevivência. Pra mim, que sou meio viciado
em ar livre e movimento, foi uma provação.
Passado esse período de
quarentena, de risco de transmissão do vírus, passei a flexibilizar aos poucos
essa rotina de isolamento. Afortunadamente a Mari e a Thaís não apresentaram qualquer
sinal da doença e seguem bem.
Decorridos 33 dias dos primeiros sintomas,
sigo fazendo alguns exames médicos, a título de investigação de possíveis
efeitos colaterais silenciosos e também como check-up geral. Aparentemente tudo
está bem.
Aliviei radicalmente meu protocolo pessoal
de treinamento físico, mas estou retornando aos poucos, mudando (temporariamente)
a receita para caminhadas em vez de corridas, pedaladas evitando intensidade
(até onde isso é possível... e não é fácil) e exercícios funcionais
intercalados de intervalos mais generosos e cuidadosos. Até onde posso perceber
e sentir, tenho me sentido bem, consideradas as circunstâncias.
Agora, e com relação à questão
metafísica desses eventos? Quais os motivos por trás dos fatos aparentes? Quais
as razões? Qual será a “dinâmica transcendental” dessa engrenagem? Essa questão
me intriga e fascina desde sempre, e cresce de importância e evidência nessas
situações.
Nesse retiro forçado a que fui submetido,
me vi muito às voltas com essas reflexões. E fico pensando na questão da fé
religiosa, das crenças das pessoas, dos padres e papa e seus discursos carismáticos.
Fico pensando nas mensagens de otimismo que circulam por aí, nas interpretações
e leituras que procuram ver o “lado bom” do que está acontecendo à humanidade
nessa trágica pandemia. Há alguma “lógica” nisso tudo? Há alguma “lógica” na
vida?
A sensação que se sobressai em
mim com essa experiência é a de fragilidade e aleatoriedade de tudo, e em
particular no que diz respeito a esse nosso corpo físico. De repente, sem mais
nem menos, somos invadidos por um vírus invisível e tudo vira um jogo de
probabilidades e possibilidades insondáveis. Estamos aqui e no momento seguinte
simplesmente podemos não estar, independente de opinião, de crença, de vontade,
de querer ou não querer. Me parece que somos meros passageiros de um corpo e de
um mundo que não está sob nosso controle.
A respeito da questão política e
médica em torno desse assunto, seria melhor nem comentar. Vivemos uma situação
absurda. Verdadeiro caos de informação e de confiança. Parece que nem mesmo a
magnânima ciência pode nos socorrer neste momento de aflição. Tudo parece
virado de pernas pro ar. Estamos num verdadeiro “salve-se quem puder”. Triste
situação. Resta ter esperança de que passe o quanto antes, e que de alguma
forma possamos aprender alguma coisa com a tempestade, e com isso fazer algum
ajuste pra seguir em frente.
*** *** ***
No meio desse processo, no dia 19
de março (quinto dia de sintomas), recebi a notícia do falecimento do meu
querido pai, no auge dos seus 84 anos de idade. Havia ido a Brasília nos dias
anteriores a esses acontecimentos narrados aqui justamente pra dar uma assistência
e fazer uma visita a ele e à minha mãe, que vinham enfrentando alguns problemas
de saúde. Infelizmente seu quadro não evoluiu bem, e ele não resistiu a
complicações advindas de uma infecção urinária combinada, nos dias que se seguiram,
também ao contágio pelo Sars-Cov-2, segundo os relatos médicos (um tanto
confusos, lamentavelmente).
Não há palavras pra descrever o
sentimento que nos acomete nessas horas, e nem é preciso que houvesse. Não há o
que dizer... Fica o sentimento de gratidão pelo tempo que tivemos a oportunidade
de conviver, por tudo o que fez por todos nós, filhos e familiares, e a eterna
saudade.
*** *** ***
Obs: O meu agradecimento especial ao amigo Rogério Baggio, que prontamente me atendeu, me orientou e indicou o médico, seu amigo, que na sequência também me recebeu super bem e me orientou em todo o processo de tratamento e recuperação da doença.
Obrigado também ao amigo Eduardo Yao que igualmente me respondeu prontamente e me indicou um médico conhecido, com quem entrei em contato e me prestou esclarecimentos importantes no momento.
E um agradecimento todo especial também ao médico que me prescreveu e orientou com relação ao tratamento precoce e todo o processo de recuperação da doença [deixo de citar o nome apenas como forma de preservar a exposição do profissional].
*** *** ***
(Santo Agostinho, sermão 31)
Gratidão
Força Sempre
Meus sentimentos em relação ao seu pai, Assis. Difícil perder alguém, imagino nesse momento. Sigamos em frente.
ResponderExcluirForte abraço.
Manzan
A viagem que ninguém quer fazer. Mais ainda assim, alguns as fazem. Um grande abraço meu irmão.
ResponderExcluirMeus sentimentos Assis, :(, melhoras aí.
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