Caminho da Fé
Uma jornada de 307 km
percorridos a pé, em doze dias,
entre as cidades de
Águas da Prata e Aparecida
Segundo a digníssima Wikipédia,
“uma peregrinação (do latim per agros,
isto é, pelos campos) é uma jornada realizada por um devoto de uma dada
religião a um lugar considerado sagrado por essa mesma religião. Para
peregrinar há que ter em conta que não se trata apenas do ato de caminhar, ou
executar um trajeto com um determinado número de quilômetros; é reconhecido que
peregrinar carece caminhar motivado por ou para algo. A peregrinação tem,
assim, um sentido e um valor acrescentado que é necessário descobrir a cada
pessoa que a executa.”
Sentido, para que, finalidade...
São questões que nos parecem essenciais, acostumados que somos a esses valores
tão bem construídos ao longo de décadas de mentalidade industrial-produtiva.
O termo se adequa bem no caso do
Caminho da Fé, já que a motivação religiosa foi a inspiração inicial da ideia.
Mas nem todos que se lançam nessa
jornada tem razões especificamente religiosas, evidentemente. Cada um
tem seus próprios motivos.
Creio que, no final das contas,
tudo se encerra no sujeito da ação, e não na ação em si. Nós e nossos mundos
mentais, nossos devaneios, nossa imaginação, nossos moinhos de vento como se
fossem exércitos inimigos.
Quem nunca pelo menos pensou em
um dia sair caminhando por aí, meio sem rumo, sem hora pra voltar, sem
necessidade de motivos? Apenas apreciando a paisagem e deixando-se levar pelo
caminho à frente e pelos passos um depois do outro...
Suspeito que tenha sido mais ou
menos esse mito, incrustado em algum lugar nos meus labirintos, que me fez
aceitar o convite dos amigos Andréa e Newton pra fazer o Caminho da Fé.
Já havíamos feito esse percurso
(na verdade, ainda um pouco maior) em março do ano passado, de bicicleta, em
sete dias. Agora a proposta era fazê-lo caminhando, saindo da cidade paulista
de Águas da Prata e chegando a Aparecida, num total de pouco mais de trezentos
quilômetros.
Baseados na experiência do ano
passado e nas informações disponíveis, planejamos cumprir o percurso em doze
etapas, sem apoio externo, contando apenas com nossas mochilas como item
pessoal a nos acompanhar.
Saímos de Curitiba, de ônibus, à
zero hora do dia 11 de Outubro. Seis horas depois chegamos a São Paulo. Longa
espera de quatro horas na rodoviária e novo embarque em ônibus, com destino a
Águas da Prata, aonde chegamos às 14 h.
Nos instalamos então em uma
hospedaria chamada Pousada do Peregrino, que é meio que uma pousada oficial de
início do Caminho naquela cidade. Saímos pra almoçar, uma passadinha no mercado
e nos recolhemos novamente, a fim de preparar o espírito para a jornada
iminente.
Ao final da tarde foram chegando
outros peregrinos. Alguns vindos já de outros destinos (ciclistas), outros,
como nós, ali estavam para o início, e logo o ambiente foi tomado por um certo
ar de expectativa e alegres conversas e trocas de histórias. Bom pra animar,
mas não tão bom pra quem gosta mesmo é de um bom sossego.
No dia seguinte, 12 de outubro,
coincidentemente dia de Nossa Senhora Aparecida, acordamos cedo e logo
colocamos o pé na estrada, indisfarçavelmente um tanto ansiosos, como crianças
em noite de Natal, imaginando o que encontraríamos pela frente.
É muito bacana esse processo de
transmutação daquilo que se imagina na realidade dos fatos, da teoria na
prática. Ao mesmo tempo em que há uma alegria sincera e grande, há também certo
pesar, porque de muitas formas os sonhos são mais belos e enternecedores do que
a realidade que lhes corresponde.
A par de todas as questões
possivelmente espirituais, filosóficas ou emocionais que embalam uma jornada
como essa, há, logicamente, a incontornável demanda de esforço físico inerente
à brincadeira. De acordo com nosso planejamento, deveríamos percorrer entre 20
a 35 km diariamente, dia após dia. Como nos adaptaríamos a tal exigência?
Nesse primeiro dia, em que
percorremos 31 km até a cidade de Andradas, a grande adversidade ficou por
conta do forte calor, que nos fazia sentir como se estivéssemos em um forno.
Quando chegamos ao nosso destino, no começo da tarde, os termômetros marcavam
41 graus.
Engana-se quem (nunca tendo tido
a salutar experiência de caminhar longas distâncias) pensa que sair andando por
aí é algo leve e de fácil execução, como sugerem certas imagens que tem o poder
de atrair nossa atenção e interesse. Depois de certo tempo, o caminhar se torna
incrivelmente penoso, tudo dói, tudo incomoda, e não é nada raro a alegria
acabar antes do destino planejado. E é aí que entra a importância dos motivos
pessoais, do imaginário interno de cada um, do nível de convicção que se aplica
à fórmula.
E assim fomos seguindo um dia
após o outro. Nosso ritmo consistia em acordar cedo, normalmente por volta das
cinco horas. Tomar café da manhã, arrumar as poucas coisas na mochila e partir,
por volta das seis. Aí então caminhávamos até o destino previsto. Chegando à
localidade, instalávamo-nos em uma pousada e então o que sobrava do dia era
destinado ao necessário descanso, como preparação para a jornada seguinte.
Fizemos reservas em todas as
pousadas do caminho, a fim de evitar qualquer imprevisto.
Havia um grupo de cerca de doze
pessoas (organizadas por uma agência de viagens) que estava fazendo o mesmo
percurso, com a mesma divisão de dias que a gente. Assim, acabamos ficando
juntos em algumas hospedagens e trocando experiências e boas conversas (na
verdade, da minha parte, mais ouvi do que falei, mas já foi bem válido). Como
as pousadas são sempre bem modestas e intimistas, acabamos percebendo que essa
coincidência também nos acarretava um certo inconveniente, pois o grupo era bem
animado e dado a efusivas interações, naquele estilo de meio não levar em conta
o mundo fora do seu micro universo. Com o passar dos dias, acabamos decidindo
fazer algumas alterações em algumas das nossas reservas, com o objetivo de nos
preservar um pouco do agito dos nossos colegas de caminho.
Encontramos também alguns outros peregrinos,
e esses encontros são sempre interessantes e motivo de troca de experiências e
conversas. Creio que cruzamos com três pessoas fazendo o caminho sozinhas, uma
mulher e dois homens, bem como com um grupo de cerca de seis homens, todos na
faixa de sessenta anos pra mais. Encontramos também, um pouco mais à frente, um
grupo de três homens, pai, filho e cunhado, fazendo parte do caminho apenas
(quatro dias).
E tivemos também um inusitado e
casual encontro com um camarada raríssimo que estava fazendo o caminho
correndo, sozinho, sem qualquer apoio, levando consigo apenas uma mini mochila
de hidratação (ficamos sabendo alguns dias depois que ele (per)correu 430 km em
oito dias... Fera demais!). Por coincidência encontramos com esse mesmo cara
quando fizemos o caminho de bike no
ano passado, quando ele também estava correndo sozinho no seu estilo
minimalista.
Houve também um grupo de um homem
e três mulheres com que cruzamos em que todos usavam sandálias (tipo papete) e
uma das mulheres estava de chinelo. Aliás, descobrimos que essa é uma forte
tendência dentre os caminhantes mais inveterados. A velha e boa simplicidade
como solução.
E tivemos também o prazer de
estabelecer um bom vínculo de contato com um grupo de duas mulheres (e o marido
de uma delas, como motorista de apoio), com quem nos encontramos por diversas
vezes, e caminhamos juntos durante todo o último dia. Enfim, cada um, uma
história, um mundo.
Percebi que boa parte dessas
pessoas que encontramos não tinha nenhuma motivação especificamente religiosa,
mas outra parte tinha. Pode ter sido uma falsa impressão, mas me pareceu que os
religiosos aparentavam uma alegria e convicção nitidamente superiores às dos
demais.
O forte calor foi um verdadeiro
desafio nos três primeiros dias. Esteve realmente muito quente. Mas depois o
tempo virou e tivemos uma boa sequência de dias nublados e de temperatura incrivelmente
agradável. O quarto dia foi o único em que choveu, uma chuva fina, mas
constante por cerca de duas horas.
Vale comentar também sobre a
altimetria bastante acentuada do percurso. Toda a região é bem montanhosa. Todo
o tempo ou se está subindo ou descendo, uma serra depois da outra, e essa
geografia abrupta cobra um preço alto da musculatura e, em particular, dos pés
dentro dos calçados, a todo momento sendo espremidos pela onipresente
gravidade. E, ao contrário do que ocorre quando se está pedalando, as descidas
não representam descanso.
Acho que nós três nos adaptamos
bem ao esforço físico requerido e realizamos todas as etapas sem qualquer
incidente ou maiores problemas. O que não quer dizer que tenha sido fácil.
Muito pelo contrário. Pessoalmente, constatei o que já sabia: que caminhar
longas distâncias é duro, lento, quase penoso. Talvez não seja à toa que é uma
forma clássica de pagar promessas ou oferecer uma espécie de sacrifício aos
deuses. É um exercício que provoca um cansaço estrutural, profundo, que de
alguma forma mexe com a gente. Acho que esse estado de profundo cansaço físico
nos dá uma sensação de realização e de paz de espírito, difícil de explicar.
Muitos associam o caminhar a uma
espécie de meditação em movimento. E faz todo sentido. Os movimentos
repetitivos, contínuos, simples na sua essência, nos induzem a um estado mental
de relaxamento e de desconexão com os infinitos detalhes que vivem a nos
atormentar no cotidiano. Pode ser também que o próprio desconforto da situação
absorva quase toda a atenção que em situações normais se ocupa de outras
futilidades. O fato é que a jornada toda me pareceu um excelente processo de
higiene mental.
É evidente que outras formas de
percorrer distâncias (como, por exemplo, pedalar, remar, pilotar motocicleta ou
dirigir carro) são infinitamente mais lúdicas e divertidas [opinião pessoal,
logicamente], mas talvez seja justamente aí que esteja a riqueza dessa volta ao
essencial que o caminhar nos proporciona. A não distração nos coloca em um
estado mental muito especial.
No nosso décimo dia tivemos uma
jornada particularmente dura. Pra ficar em uma pousada que sabíamos ser um
pouco melhor do que a inicialmente prevista, acabamos fazendo uma alteração no
nosso ponto de parada no dia anterior, o que acrescentou cerca de 4 km ao
percurso do dia seguinte. Nessa décima etapa foi também o dia de subir a temida
Serra da Luminosa, uma longa e íngreme subida que exige muito do físico e do
mental. E, pra completar, na chegada a Campos do Jordão (o destino do dia), a
pousada que havíamos reservado ficava do outro lado da cidade, o que
acrescentou mais alguns quilômetros extras ao previsto. Resultado: acabamos
caminhando 40,5 km, das 06:40 da manhã às 18:50 h, com as devidas (e não
longas) paradas pra descanso e alimentação. Foi um dia bem intenso!
A chegada a Aparecida, nosso
destino final, no último dia, foi novamente sob forte calor e sob o efeito do
cansaço acumulado ao longo do caminho. Pra quem não tem o enfoque religioso
relacionado ao santuário de Nossa Senhora Aparecida essa chegada acaba sendo um
pouco esvaziada de emoção e de significado. Se fosse à beira de um rio de águas
límpidas e frescas, à sombra de algumas árvores, com pouca gente e muito silêncio
em volta, certamente teria me tocado mais. Mas as coisas são como são.
Creio que um contraponto
importante a comentar é que, ainda que algo em torno de noventa por cento do caminho seja
por estradas de terra e região rural, o contexto todo ainda é urbanizado
demais. Ficar hospedado em pousadas ao final de cada jornada tem o lado bom de
normalmente nos proporcionar um bom descanso, um bom banho e coisa e tal. Por
outro lado quebra o encanto do isolamento que se vive enquanto se está andando
e nos remete de volta, um pouco, ao mundo real. Uma peregrinação como essa é um
formato bem diferente de um trekking em trilha em região montanhosa, por
exemplo. Cada formato com suas belezas e limitações.
Uma grande vantagem desse caminho
é o fácil acesso em termos de distância de qualquer lugar no centro-sul do
Brasil e a preparação que existe em termos de opções e posicionamento das
hospedagens, localizadas a distâncias estratégicas entre si, oferecendo variadas
possibilidades de montagem das distâncias a serem percorridas a cada dia. É um
excelente exercício pra quem sonha em percorrer o famoso Caminho de Santiago de
Compostela, na Espanha, que serviu de modelo e inspiração para o Caminho da Fé.
Tenho que comentar também, já
como forma de agradecimento, o prazer de ter tido a companhia do casal de
amigos Andréa e Newton, que mantiveram o astral sempre elevado e um apuradíssimo
espírito de equipe. Aprendi muito nas inúmeras conversas que compartilhamos
juntos. Foi uma parceria sensacional. Muito obrigado, meus amigos.
Embora boa parte do mito de
percorrer grandes distâncias caminhando tenha sido realizado nessa viagem,
sinto que há ainda algumas ideias a serem vivenciadas nessa área, como, por
exemplo, caminhar não com ideia de peregrinação, mas do puro caminhar, como um bom
andarilho, bem como a experiência de um dia, quem sabe, experimentar esse
tipo de vivência em solitário.
No final das contas, lembrando o
que dizia o bom e velho pequeno príncipe, de Saint-Exupéry, “o essencial é
invisível aos olhos”. Pra enxergar a beleza e o sentido seja de um caminho como
esse, seja da própria vida, é realmente preciso ver além do que os olhos
alcançam.
Vamos juntos?
1º dia, 12 Out
De Águas da Prata a Andradas
31,67 km/ 837 m de ganho de elevação
Tempo total: 8h 43 min/ Ritmo médio de movimentação: 13:08 min/km
Cidade de Andradas
2º dia, 13 Out
De Andradas a Barra
21,88 km/ 621 m de ganho de elevação
Tempo total: 6h 42min/ Ritmo médio de movimentação: 13:51 min/km
3º dia, 14 Out
De Barra a Inconfidentes
33,07km/ 679m de ganho de elevação
Tempo total: 9h 39min/ Ritmo médio de movimentação: 12:56 min/km
4º dia, 15 Out
De Inconfidentes a Borda da Mata
22,59km/ 543m de ganho de elevação
Tempo total: 6h 09min/ Ritmo médio de movimentação: 13:22 min/ km
5º dia, 16 Out
De Borda da Mata a Tocos do Mogi
18,07km/ 706m de ganho de elevação
Tempo total: 5h 00min/ Ritmo médio de movimentação: 13:39 min/km
6º dia, 17 Out
De Tocos do Moji a Estiva
21,64km/ 813m de ganho de elevação
Tempo total: 6h 26min/ Ritmo médio de movimentação: 14:04 min/km
7º dia, 18 Out
De Estiva a Consolação
20,07km/ 648m de ganho de elevação
Tempo total: 5h 40min/ Ritmo médio de movimentação: 13:28 min/km
8º dia, 19 Out
De Consolação a Paraisópolis
21,88km/ 549m de ganho de elevação
Tempo total: 5h 59min/ Ritmo médio de movimentação:13:47 min/km
9º dia, 20 Out
De Paraisópolis a Luminosa
24,22km/ 656m de ganho de elevação
Tempo total: 6h 27min/ Ritmo médio de movimentação:13:41 min/km
10º dia, 21 Out
De Luminosa a Campos do Jordão
40,46km/ 1591m de ganho de elevação
Tempo total: 12h 07min/ Ritmo médio de movimentação: 13:36 min/km
11º dia, 22 Out
De Campos do Jordão a Gomeral
22,34km/ 562m de ganho de elevação
Tempo total: 6h 50min/ Ritmo médio de movimentação: 13:25 min/km
12º dia, 23 Out
De Gomeral a Aparecida
29,18km/ 166m de ganho de elevação
Tempo total: 7h 23min/ Ritmo médio de movimentação: 12:31 min/km
Distância total percorrida: 307,07km
Ganho de elevação total: 7.750m
"Mais forte do que nunca penetrou-o o sentimento do apátrida, do andarilho que não soube erguer um muro de casa, de castelo ou de convento entre sua própria pessoa e o grande medo, que pura e simplesmente corre sozinho através do mundo incompreensível e hostil; sozinho entre as estrelas frias e desdenhosas, entre os animais à espreita, entre as árvores pacientes e inabaláveis."
(Hermann Hesse, in "Narciso e Goldmund")
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