Ardência
(breve poema, breve caminho)
Céu cinzento.
Vento frio.
Estrada, curvas, subidas.
Já fiz esse percurso inimagináveis vezes.
Mas hoje há algo diferente no ar.
Tento descobrir o que.
E tudo se mistura na minha cabeça.
A música que ouvi não sei quando, nem onde.
As notícias desafortunadas das últimas semanas.
As pernas queimando sobre os pedais.
Um torpor impregnado por trás do olhar teimoso.
Dos lados, passando, tudo parece fora de foco, de sentido,
de lugar.
Ovelhas, pessoas, lixeiras, casas fechadas, caminhões e
cachorros.
Tudo parece vazio, distante, ingrato.
E tudo se mistura na minha cabeça.
Tento me lembrar por que estou ali, fazendo o que estou
fazendo.
Tento me lembrar dos preceitos dos maiores filósofos de
todos os tempos.
Tento falar comigo mesmo.
E ao mesmo tempo que parece funcionar, soa ridículo.
Quem fala?
Quem pensa?
Quem ouve?
Olho no relógio.
O bendito tempo, que não passa, não se importa, não está
ali.
E tudo se mistura na minha cabeça.
Vem uma subida forte e penso: você é um homem ou um rato?
Gosto de ver as rodas girando.
Gosto do vento deslizando pelos meus braços e rosto.
Gosto, no fundo, dessa sensação de leve desespero.
Já não sei se sofro ou se me divirto.
E sem conseguir entender, sigo girando os pedais.
E continuam passando cachorros deitados pelos cantos.
Carros e motos roncando seus motores idiotas.
Pequenas pedras estalando sob os pneus.
Alguém fazendo barulho com uma máquina de cortar grama.
E tudo se mistura na minha cabeça.
É liberdade.
Ou talvez não.
Uma angústia parece me apertar o coração.
Preso nessa mente que olha e ri e reclama e se preocupa e
fala sobre tudo, o tempo todo.
Nesse corpo que arde e se expande e se contorce e se contrai
e chora e sente cada pequeno detalhe.
Nesse labirinto que vai, que vem, que dá voltas, sobe e
desce e não sai do lugar.
Se é assim, então que assim seja.
Não quero muito.
No fundo, ainda acho graça do teatro.
E quanto mais insólito tudo parece, mais instigante fica.
E tudo se mistura na minha cabeça.
O filme que recomendaram e que não vi.
O livro que deveria ter lido e que não li.
Aquele curso que queria fazer e que não fiz.
Aquela viagem que me encanta e que não realizei.
Os amigos a quem deveria dar atenção e que não dei.
Os olhares que não contemplei.
As mãos que não apertei.
Os crepúsculos que não apreciei.
Tudo se mistura.
E sei, ou sinto, nesse emaranhado de dores, tempos, marchas e
pedais, que a vida é, no final das contas, irrealizável.
Hoje há algo diferente.
Aquele que olha e sente está diferente.
Como sempre está.
Sem mérito nem culpa.
As coisas estão aí.
E tudo se mistura na minha cabeça.
(Curitiba, Maio de 2020)
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